Bem-vindos ao Novo Grande Jogo

Não surpreende que as primeiras escaramuças da Primavera Árabe no Norte da África – lutas populares por democracia – tenham deixado apavorados a maioria dos governos ao longo da Rota da Seda. Mais que democracia, o que viram ali foi o espectro da islamização. Daí o bloqueio de Facebook e Twitter, a instalação de filtros de internet made-in-China – combinados à ausência de qualquer rede de notícias semelhante à Al Jazeera para disseminar a Palavra. 

Os homens-fortes centro-asiáticos têm razão de andarem temerosos, olhando atrás a cada passo – de fato, aterrorizados – com o que está acontecendo no Egito e na Síria. Islam Karimov no  Uzbequistão, e Nursultan Nazarbayev no Cazaquistão estão no poder, cada um, há 21 anos. Emomalii Rakhmon permanece na presidência do Tadjiquistão desde a sangrenta guerra civil dos anos 1990s.  

Sim, houve transição política no Turcomenistão em 2007, quando morreu o esfuziante Saparmurad Niyazov. Mas a serpente continuou a serpentear como sempre serpenteara também no governo do novo líder, Gurbanguly Berdymukhamedov.    

O caso mais complexo é o Quirguistão, que passou pela sinistra Revolução da Tulipa em 2005 e pela Revolução anti-Tulipa em 2010. Hoje, o Quirguistão é república parlamentar pluripartidária, mas continua naufragado em miséria, com sérios antagonismos entre norte e sul e o Vale Ferghana, campo minado de disputas étnicas.

Noutros pontos, prevalecem reformas cosméticas. O Parlamento é hoje um pouco menos caricato no governo de Karimov – do que seria, em tese, sob Nazarbayev.

Mas esqueçam eleições livres e justas, mídia independente ou verdadeiro debate multipartidário. O Uzbequistão poderia facilmente se converter numa Síria Centro-Asiática, com guerra civil entre o sistema Karimov, o exército, os radicais, o Movimento Islâmico do Uzbequistão (MIU) alinhado com os Talibã e a oposição secular. Quanto à porosa fronteira tadjique-afegã, continua a ser atração extremamente atraente para o Islã radical.

Entreguem-me na minha base a tempo[1]

A Ásia Central é crucial, porque está no coração da Eurásia – e, pois, no coração  do Novo Grande Jogo, no qual se confrontam essencialmente EUA versus Rússia e China, com vasto sortimento de playersmenores, como Irã, Turquia e Paquistão.

No que tenha a ver com o jogo hardcore de poder chamado Novo Grande Jogo, ninguém ali sequer cogita, remotamente que fosse, de democracia. Washington parece dar a impressão de que a Ásia Central é área de influência russa – e chinesa. Nada disso. Não há projeto que seduza mais o establishment de inteligência norte-americana que as bases militares dos EUA, por toda a Ásia Central.

No final de junho, as autoridades do Uzbequistão deixaram a Organização do Tratado de Segurança Coletiva [ing. Collective Security Treaty Organisation (CSTO)]. Esse CSTO é um fórum que existe há dez anos, de questões político-militares, que reunia Rússia, Belarus, Armênia e, até a defecção do Uzbequistão, os cinco ‘-stãos’ da Ásia Central.

Tashkent disse[2] que se separava da CSTO por causa de “diferenças” relacionadas ao Afeganistão. A verdadeira razão, segundo Vadim Kozioulin, especialista em Ásia Central: uma complexa negociação com Washington para, talvez, ‘devolver’ aos EUA a base militar de Khanabad, que passou a ser usada pela Rússia desde que Karimov expulsou de lá os EUA, em 2005.

Os uzbeques podem por a mão em uma montanha de bugigangas, se o negócio sair: armas, toneladas de equipamento não militar que, se não tiver esse destino, será deixado apodrecer no Afeganistão e, o principal prêmio, o status de “aliado estratégico dos EUA”.[3]

O objetivo central de Washington em tudo isso é – e o que mais seria?! – acrescentar mais um elo no progressivo cercamento do Irã. É há também o objetivo de Tashkent – torpedear o projeto que é hoje menina-dos-olhos do presidente Vladimir Putin da Rússia: uma União Eurasiana.[4]

O Tadjiquistão, por sua vez, acirra a disputa entre Moscou e Washington em torno do aeroporto militar de Aini, a apenas 15 quilômetros da capital Dushanbe. Tadjiquistão hospeda a 21ª Divisão Russa, com mais de 6 mil homens, na maior base russa fora da Rússia, de todo o mundo.

Washington já está no Quirguistão via a pequena base de Manas, próxima da capital Bishkek – crucial para a guerra do Afeganistão. Mas Bishkek quer muitos rublos pelo aluguel, a Moscou, de três outras bases.

O resumo de tudo é que essas elites centro-asiáticas imensamente corruptas já salivam, antecipando o momento em que a OTAN deixará o Afeganistão, em 2014. Mas os EUA, seja como for, permanecerão lá, com aqueles 20 mil e tantos “conselheiros”. E a todos esses regimes, Washington mantém a oferta proverbial que eles não podem recusar: apoio político.

Uma coisa é certa: Putin fará o diabo; quem tentar deter Moscou pagará caro.

Agora, sobre a ‘comunidade internacional’ real

O Novo Grande Jogo corria solto, quando os presidentes de China, Rússia e os quatro “-stãos” (menos o Turcomenistão idiossincrático) reuniram-se em Pequim, no início de junho, para a reunião de cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) [orig. Shanghai Cooperation Organisation (SCO)].[5]

Importantíssimo, os presidentes do Afeganistão, Irã, Paquistão, Turcomenistão e Mongólia, além do ministro de Relações Estrangeiras da Índia também participaram daquele encontro. Não poderia haver melhor cenário para que a OCX anunciasse – via Moscou e Pequim – outra visão de mundo, a deles, absolutamente diferente da visão de mundo ocidental.

Eis aqui, então, parte considerável do que a verdadeira “comunidade internacional”, a real – não aquela ficção de que falam Washington, Londres e Paris – pensa sobre episódios chaves do Novo Grande Jogo.

A OCX é absolutamente contrária ao esquema de escudo de mísseis de EUA-OTAN. Quanto aos ‘-stãos’ centro-asiáticos, melhor que se mantenham afastados da OTAN: se houver crise regional, terá de ser resolvida regionalmente. A OCX quer “um Afeganistão independente, neutro e em paz” (o Afeganistão já foi promovido ao status de observador da Organização de Cooperação de Xangai); é o mesmo que dizer, com outras palavras, que Rússia e China farão o que for preciso fazer e possam fazer para apagar a influência dos EUA sobre Kabul.

A OCX condena intervenções ditas “humanitárias” à moda do que foi feito contra a Líbia, e todo os tipos de sanções unilaterais. A OCX privilegia a lei internacional da velha escola que produziu a Carta da ONU – e trabalhará a favor de uma futura reforma do Conselho de Segurança da ONU. Sobre a Síria, a única solução é o diálogo político, no qual Moscou, sempre sensível, incluirá o Irã.

A OCX considera “inaceitável” um possível ataque contra o Irã. Ao mesmo tempo, e importantíssimo, nem Pequim nem Moscou querem ver alguma hipotética bomba nuclear iraniana.

Haverá crescente cooperação econômica entre os estados-membros da OCX. Passos futuros incluem um Banco de Desenvolvimento da OCX. Moscou continua a ser o principal parceiro comercial dos ‘-stãos’ centro-asiáticos.

E um desenvolvimento muito intrigante: a Turquia, estado-membro da OTAN – e parte da rede chamada “escudo de mísseis” dos EUA – foi admitida como “parceira para diálogos”, na Organização de Cooperação de Xangai. Nada de admissão, pelo menos ainda não, nem para Índia nem para o Paquistão. Mas é inevitável que, em futuro próximo, esses países também se tornem membros plenos, assim como o Irã.

Ainda não se pode falar de uma OTAN oriental. A Agência de Notícias Xinhua, em movimento de despistamento, insiste que a Organização de Cooperação de Xangai é uma “parceria”, não uma “aliança”.

O que está blowing in the wind?

A OTAN, evidentemente, tem ideias diferentes. Convidou quatro “-stãos” (exceto, outra vez, o Turcomenistão) a participarem da reunião de cúpula da aliança, em Chicago, em maio. A OTAN tem anseio ainda mais forte que o da OCX por “parcerias”. Mas, em idioma da OTAN, “parcerias” significa “bases militares.

Dizer que a OTAN e a OCX estão em rota de colisão é dizer pouco. Já há muito tempo o foco da OCX deixou de ser o fundamentalismo islamista – como o dos Talibã no Afeganistão. De agora em diante, como o ministro Sergei Lavrov das Relações Exteriores da Rússia deixou bem claro, a OCX terá política comum para qualquer tipo de crise na região – e, por falar nisso, também para crises fora da região.

A principal e mais grave dor de cabeça que a OCX terá de enfrentar, em clave local, será o Uzbequistão. Wily Karimov está aumentando as apostas como se não houvesse amanhã.

A Rede Norte de Distribuição da OTAN [orig. NATO’s Northern Distribution Network (NDN)] para o Afeganistão inclui Uzbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão. O que o trio realmente quer é lucrar o mais possível por ser território de passagem. Dado que a agenda real (oculta) da OTAN não é qualquer “securitização” da Ásia Central, mas criar uma barreira que impeça o avanço da influência de Rússia e China, está montado o cenário para episódios épicos de barganha e corrupção desenfreadas.

O que é e continua bem claro é que, nessa nova rodada do Novo Grande Jogo, o que menos o ocidente deseja ver operante é alguma “democracia”. Por esse motivo, o ocidente não facilitará processo algum que ameace soprar algum sopro de Primavera Árabe na direção dos países da Rota da Seda.

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[1] Orig. Get me to my base on time. Todos que trabalhamos nessa tradução lembramos de “Get me to the church on time” [“Amarrem-me, prendam-me, chamem o Exército, mandem-me pelo Correio, mas… entreguem-me na Igreja a tempo”], de My Fair Lady, cantado na Broadway em 1957 por Stanley Hollowly, já vestido a caráter, que sai para beber com os amigos feirantes, na véspera do casamento. Inesquecível. Pode ser visto e ouvido em http://www.youtube.com/watch?v=6jYsyD3Hiw4 [NTs].

[2] http://vz.ru/politics/2012/6/29/586039.html

[3] http://www.ng.ru/printed/270542

[4] http://www.reuters.com/article/2011/10/03/us-russia-putin-eurasian-idUSTRE7926ZD20111003

[5] Pepe Escobar, Al-Jazeera, em http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2011/06/2011620115216348413.html. Ver também, sobre o mesmo encontro, 13/6/2012, MK Bhadrakumar, “OCX: para enfrentar tempos de mudanças”, em português em http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/06/ocx-para-enfrentar-tempos-de-mudancas.html [NTs].

Fonte: Al-Jazeera, Qatar
http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/07/2012722133942605266.html

Traduzido pela Vila Vudu