As certezas que tenho sobre a Síria
Fala-se em “combates mortais” em Damasco e Aleppo, a segunda maior cidade. Até o Estadão e a Folha enviaram repórteres para apoiar o levante “rebelde”. Não se tem certeza de tantas coisas sobre o futuro deste que é o mais antigo país do mundo árabe. Mas, qualquer que seja o destino do atual presidente, é preciso que deixemos registrado pelo menos algumas certezas.
Até quando o governo Assad resistirá?
Desde março de 2011, na onda do que a grande imprensa vem chamando de “Primavera Árabe” – não gosto e nunca gostei desse termo – também a Síria vem presenciando levantes que pretendem derrubar o seu presidente legitimo e constitucionalmente eleito, o médico Dr. Bashar El Assad. A imprensa nunca o chama dessa forma. Refere-se a ele como “ditador”. E sabemos que a cobertura dessa “grande” imprensa e sua indignação é completamente seletiva. Nunca chamou Hosni Mubarak de ditador do Egito, ainda que ele tenha sido por 30 anos. Sempre foi amigo dos EUA. Tratava-o de “presidente” Mubarak. A mesma coisa com os ditadores depostos pelas massas árabes da Tunísia e Iêmen. Em ambos os casos, até pouco antes de caírem, eram tratados de “presidentes”.
Já publiquei muitos artigos nestes quase um ano e meio de levantes e revoltas na Síria. Apontei, citando estudiosos e analistas internacionais de maior renome, que a situação na Síria em nada tem a ver com a de outros países árabes, cujos levantes são justos. Também já tratamos do fato que o caráter e o conteúdo de classe de um governo e de um estado não são dados apenas pela forma como ele é escolhido. A apologia que se faz ao voto direto é absurda. Ao acaso os governos que emergiram das revoluções russa, em 1917, chinesa em 1949 e cubana em 1959 podem ser tratados de antidemocráticos? Qual o padrão e o parâmetro com que devem ser comparados? Com a democracia burguesa estadunidense?
O que dá o caráter de classe e o conteúdo de um governo e de um estado são as tarefas que ele assume perante o seu povo, perante a maioria de sua população. Seu projeto político, sua plataforma, seu programa de ação. Como ele se posiciona no cenário internacional, ao lado de que países e de que campos políticos ele se coloca.
Quanto a isso nunca restou dúvidas sobre a Síria. É o último governo laico e republicano que restou em todo o Oriente Médio. Uma região completamente dominada pelos Estados Unidos, que fincaram bases em quase todas as monarquias árabes do Golfo Pérsico-Arábico, em especial Kuwait, Arábia Saudita, Bahrein (onde esta baseada a 4ª Frota dos EUA) e Qatar. Onde não conseguia fincar base militar, acabou por invadir, derrubar e assassinar seus presidentes, como foi no caso do Iraque com Saddam Hussein e na Líbia com Muammar Kadafi.
A própria Liga dos Estados Árabes hoje é instrumento tanto dos EUA, quanto das monarquias feudais do Golfo e à serviço do sionismo. E nisso, os norte-americanos não cochilam. Tudo fazem para proteger Israel e essa é a questão central. Além da ajuda anual de três bilhões de dólares que faz parte do orçamento aprovado pelo Congresso dos EUA, diversas outras formas de ajuda e proteção são ofertadas pela potência imperial aos sionistas. Por isso relutaram até o último dia para abrir mão de seu histórico aliado no Egito. Praticamente morreram abraçados ao ditador Mubarak. Chegaram a fazer acordos inconfessáveis até com a Irmandade Muçulmana, antes execrada, mas agora aliada dos EUA, para que os nasseristas não ganhassem as eleições no Egito (acabaram ficando em terceiro lugar no primeiro turno).
Agora, é preciso ocupar a Síria. É preciso mudar o regime de qualquer forma. E não se trata aqui de defender a democracia. Esse país árabe de 22 milhões de habitantes, mesmo sem ter petróleo algum, é o maior incômodo para a política estadunidense na região e para Israel. Uma pedra no sapato do imperialismo. O governo Bashar em um ano legalizou dezenas de partidos políticos. Televisões e jornais funcionam amplamente, sem nenhuma censura. Uma nova constituição foi escrita, mantendo a laicidade do Estado sírio. E a população foi ás urnas referendá-la com quase 90% de aprovação, mesmo com o boicote da oposição armada (há outra oposição que participa da política, da mesa nacional de diálogo, que legalizou seus partidos e que é contra o levante armado para derrubar o governo e nunca pede que potências estrangeiras ataquem o país). E, finalmente, um novo parlamento foi eleito e já tomou posse em fevereiro, com 12 partidos que elegeram parlamentares. Eleições limpas, diretas, democráticas.
Que mais querem os EUA? Querem tirar o presidente Bashar. Mas não é porque ele é um “ditador”. Os norte-americanos têm amigos ditadores em todo o mundo. Bashar incomoda exatamente por isso: ele não é amigo do império do Norte. Ao contrário. Ele forma com outro campo, com outro eixo, a que o Departamento de Estado chama de “Eixo do Mal” (sic). Esse campo combate a ocupação estadunidense do Oriente Médio. Esse campo defende a Palestina para os palestinos e isso gera profundas contradições com os sionistas e os israelenses. Esse campo faz aliança com o Irã, o maior demônio que a mídia inventou nos dias atuais. Nesse eixo ainda tem espaço para o Líbano e o Iraque. Os grupos Hezbolláh, a quem a imprensa chama de “terrorista” (sic) e a maior parte dos grupos da resistência palestina.
Mas, mais do que isso, a Síria hoje soma com a China e a Rússia. Essas duas potências, com assento no CS da ONU, já vetaram três resoluções dede 4 de fevereiro, que tentavam impor mais sanções à Síria, mas que, na prática, abririam espaço para uma intervenção armada externa, até com forças da OTAN.
Ainda assim, fica a pergunta: até quando o governo do presidente da Síria vai resistir? Aqui, rigorosamente, é uma pergunta que poucos têm a resposta. Poderia resistir ainda por muito tempo, a depender de fatores diversos que veremos a seguir. Ou, acabar caindo, cedendo lugar para novas forças e grupos políticos ascenderem ao poder central do país, levando a Síria a um rumo completamente imprevisível no momento atual.
Que certezas nos restam sobre a Síria?
Se por um lado não há certezas sobre o destino do governo e do presidente Bashar Al Assad, quais certezas nos restam nesse momento crítico que vivemos? Resumo a seguir as minhas principais certezas pessoais.
1. A Síria sofre ataque externo de potências estrangeiras – Pode parecer estranho, na medida em que a imprensa mostra as coisas como “guerra civil”, “rebeldes em luta” e outras bobagens mais. O que todos os analistas sérios e independentes têm nos alertado é que de 40 a 60 mil insurgentes entraram no país, principalmente pela fronteira com a Jordânia e o Iraque, de várias nacionalidades – são chamados de jihadistas – e financiados fortemente pelas monarquias do Golfo;
2. A chamada “oposição” ao governo não se entende e não tem programa – A imprensa apoia aberta e descaradamente a ação dos grupos externos que chama de “oposição” ao governo. Mas, tais grupos não tem unidade política alguma. Algum leitor já viu algum documento dessa gente? Quais são as suas propostas? Qual é seu programa? A única coisa que os unifica é serem pela deposição imediata do governo e serem amigos dos Estados Unidos. Nada mais;
3. Os EUA apoiam a derrubada de Bashar não por ele ser um “ditador”, mas por ser inimigo dos EUA – Aqui, qualquer que venha a ser o desfecho, essa é uma certeza que temos: se Bashar fosse amigo dos EUA e de Israel, se não apoiasse a causa palestina com firmeza, jamais existiria esse movimento, essa onda forte contra ele que presenciamos na atualidade;
4. A batalha que se trava na Síria é por uma nova ordem mundial – Não nos iludamos: o que estamos presenciando no Oriente Médio em geral e na Síria em particular é a consolidação na prática do que vimos chamando de um novo mundo, multipolar e não mais unipolar, até hoje sob a égide e o comando dos Estados Unidos. O único espaço que tem restado para a China e a Rússia em toda a região é exatamente manter com a Síria as relações amistosas que têm mantido há mais de duas décadas. Perder esse espaço, em especial o espaço geopolítico do estratégico porto de Tartuz, essas duas potências além de não terem mais ponto de apoio algum na região, não terão mais sequer um milímetro de acesso ao Mar Mediterrâneo;
5. O Exército “Livre” da Síria é a OTAN dentro do país – Claro que a imprensa nunca falaria isso, mas quem arma, treina e financia esse grupo de mercenários estrangeiros que age na Síria é a OTAN, braço armado do imperialismo estadunidense, francês e britânico. São apoiados financeiramente pelas monarquias do Golfo e tem apoio tácito do setor de inteligência de Israel;
6. A organização Al Qaeda passa de “terrorista” à aliada dos EUA – Claro também que a imprensa nunca admitirá isso. Nenhum dos seus correspondentes em qualquer lugar do OM dirá qualquer coisa a esse respeito. Apenas colunistas do campo progressista e antiimperialistas mostram isso às claras (vejam estas páginas: http://www.globalresearch.ca/, http://www.atimes.com/ e http://www.voltairenet.org/en). Atentados que eram considerados terroristas em todos os países que essa rede atua, agora praticados na Síria são apenas “ataques civis de rebeldes contra o governo” (sic). Os recentes atentados que mataram alguns generais sírios, a responsabilidade pelos assassinatos não cabe aos culpados, mas às vítimas, como diz Thierry Meyssan da Rede Voltaire Net;
7. A queda da Síria será o enfraquecimento do Irã e a desestabilização do Líbano – Disso nunca tive dúvidas. O caminho para Teerã passa por Damasco. Para derrubar, isolar ou enfraquecer a República Islâmica do Irã será preciso antes derrubar o governo de Damasco e, se possível, destruir toda a infraestrutura desse país árabe como vem sendo feito. Esse é um dos grandes objetivos do imperialismo;
8. Salafistas e os sunitas da Irmandade Muçulmana sonham com novo Califado na Região – Também aqui está claro. E são fortes essas correntes. Ficaram adormecidas em várias localidades, em especial no Iraque e na Síria, mas agora colocam suas forças às claras e estimulados pelo imperialismo para enfraquecer o setor mais progressista das sociedades árabes, em geral laicos e de esquerda. Esse pessoal sonha com um Califado Árabe, na sua essência conservador e fundamentalista, com a sharia como seu primado;
9. O problema no OM não é religioso, mas político – Apesar da força dos sunitas que menciono acima, a divergência não é religiosa, mas essencialmente política. Existem lutadores antiimperialistas na Síria que são sunitas, xiitas, alawitas, drusos, maronitas, cristãos ou ateus. Tais pessoas sabem exatamente quem são seus inimigos principais. A imprensa e a mídia-empresa ocidental insistem em apresentar o problema como sendo religioso, de lutas de facções muçulmanas, de cristãos e judeus contra muçulmanos. Existem sim, não negamos, componentes religiosos, mas essa não é a questão central;
10. Certa esquerda no Brasil e no mundo insiste em aliar-se ao imperialismo – Não preciso nominar, dar nome aos bois como se diz. Sabemos quem são. Certas pessoas que posam de esquerdistas e alguns de ultraesquerdistas, seguem afirmando que o que vem ocorrendo na Síria é uma “revolução popular” (sic). Quanta ingenuidade. Ou seria mesmo aliança aberta com o imperialismo? Só a história nos dirá. O que lamento profundamente é presenciar todos os dias, em redes sociais, em clubes sírios, em artigos postados em páginas na Internet, pessoas autoproclamadas de “esquerda” fazer eco de suas vozes com as do império norte-americano. Lamentável.
Este artigo não é conclusivo. De fato, quando lemos as páginas internacionais comprometidas na luta anti-imperialista, entendemos a real situação na Síria, o que lá esta em jogo, quais forças estão em disputa na batalha que se trava. No campo das ideias e no chão sírio.
Pessoalmente, sinto falta de uma reação da verdadeira esquerda no país. Em solidariedade ao povo sírio. Em defesa da soberania do país. Não se trata aqui de apoiar e defender o governo. Trata-se de defender que a solução para a Síria deve ser encontrada pelos sírios e não pelas potências estrangeiras. Deveríamos pensar em organizar um ato que diga alto e em bom som: Fora Imperialismo da síria e do Oriente Médio! OTAN, Tirem suas patas da Síria!
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Sociólogo, escritor e arabista. Foi professor de Sociologia da Unimep entre 1986 e 2006. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos de SP de 2007 a 2010. E-mail: [email protected].