O timing da coluna no WaPo merece atenção: a missão de Kofi Annan gorou e Lakhdar Brahimi está saindo das sombras. Brahimi é o especialista em conflitos que envolvam forças islamistas — logo vêm à cabeça o Líbano, o Afeganistão – preferido do ocidente. Tem currículo consistente na arte de criar a ilusão de que haja negociações em curso onde nenhuma negociação exista, e a real discussão prossiga, inalterada, no campo de batalha. Kofi é independente demais; Brahimi obedece, em tempo integral. No momento, o ocidente quer muitíssimo Brahimi.

Em segundo lugar, a luta na Síria está trocando de marcha. A guerra civil começa a pleno vapor. O suprimento de mísseis Stinger, da Turquia para os rebeldes sírios, está pensado para mudar completamente o jogo. Contra esse pano de fundo, a visita que a secretária de Estado Hillary Clinton dos EUA fez nesse fim de semana a Istanbul também é altamente simbólica. Foi pensada para inflar a moral murcha da liderança turca. Isso dito, Teerã avalia que também pode ser inspirador avançar sobre o ocidente – Washington incluída – com vistas aos movimentos futuros. No momento, Teerã já se habituou à retórica de Clinton, nuvem para encobrir a angústia.

Em terceiro lugar, Rússia e China recolheram-se às coxias e estão cuidando, cada uma, da própria vida rotineira. Assim, a arena da paz ficou deserta. Todos os spots estão acesos, mas o palco está vazio. Então o Irã avança, com uma abertura letalmente atraente e super excitante.

É difícil dar simplesmente as costas à oferta iraniana, embora seja também oferta intrigante de aproximação a uma porta que, sabe-se lá, talvez abra diretamente para o jardim florido. Claro: é oferta que não serve aos EUA – e, provavelmente, Salehi também sabe disso. Mas ninguém perde nada por tentar.

Salehi alerta que o Irã não permitirá que EUA e Turquia marchem sobre a Síria como se marchassem sobre grama fofa. A guerra civil será sangrenta, dura e longa e é possível que faça os 15 anos de conflitos no Líbano parecerem piquenique. (Por falar nisso, dos cacos do Líbano brotou o Hizbullah.) Obviamente, a aposta é alta, para o Irã, porque vive na mesma região, e o Irã defenderá seus interesses essenciais absolutamente a qualquer custo. Mas o ocidente ou a Turquia suportarão uma guerra longa na Síria?

Salehi destaca que usar o islamismo como instrumento de política tampouco funcionará. Por quê? Porque o aliado natural dessas forças históricas é o Irã, não os EUA e a Turquia. É o mesmo que dizer que, no longo prazo, só o Irã pode vencer na Síria (ou no Egito), com ou sem mudança de regime. Além do mais, o Afeganistão também é prova de que a volta do chicote no lombo do chicoteador é inevitável, se o mundo cristão tenta manipular forças islâmicas.

Contudo, o Irã está interessado em cooperar com o ocidente, dado que seus interesses repousam, primariamente, na estabilidade regional e em campo de jogo limpo e aplainado. Assim sendo, o Irã deseja jogar o mesmo jogo que jogou quando auxiliou a invasão dos EUA ao Afeganistão para derrubar o regime dos Talibã e quando se mostrou tão extraordinariamente comedido no Iraque (onde o Irã, se quisesse, poderia ter tornado as coisas muito mais sanguinolentas para os EUA.)

A grande questão é a natureza da ‘cooperação’ que Teerã tem em mente. Salehi deixa bem claro que o Irã considera inaceitável que Bashar seja derrubado da noite para o dia. É indispensável que haja alguma transparência e clareza no processo, antes de Bashar deixar o governo. Bashar, afinal, também é parte da nação síria e tem também seus direitos.

Assim sendo, Salehi tenta o ocidente com uma proposta: a comunidade internacional deve conseguir que Bashar candidate-se e concorra a uma eleição à presidência da Síria, eleição livre e justa, sob supervisão internacional. Afinal, só a nação síria tem direito e competência para rejeitá-lo.

Agora… A proposta de Salehi será aceita em Washington ou Ankara (Istanbul), Riad ou Doha? A resposta é rotundo “não”. O espectro que assombra o ocidente é que, em eleições livres e justas, é perfeitamente possível que os sírios escolham Bashar como âncora de estabilidade para seu país. Sem dúvida, sim, o fator NHA (“Não Há Alternativa” a Bashar) tem seu peso, se se espera que a frágil sociedade multicultural síria não rache em pedaços.

Para piorar, eleição livre e justa na Síria (depois da que houve no Egito, com resultado diferente do previsto) sempre será anátema para os xeiques árabes do Golfo. É ideia perigosa, essa de o chefe de estado ser eleito. Se a perniciosa ideia funciona para a Síria, o povo saudita bem pode começar a pensar que também merece a mesma prerrogativa, afinal, já na segunda década do século 21. E muito obviamente, tampouco os EUA quererão libertar o gênio da garrafa democrática. Salehi jogou uma bela cartada. Abaixo, podem lê-lo, de viva voz, no artigo publicado no Washington Post.


Assumir a liderança, na solução para a Síria
Por Ali Akbar Salehi, no Washington Post

 

Os humanos frequentemente erramos quando não aprendemos com a história, mesmo a história recente. Guerra civil no Levante não é coisa do passado remoto. Com a Síria mergulhando em violência sempre crescente, os 15 anos de guerra civil no Líbano deveriam servir como assustadora lição sobre o que acontece quando se rompe a tessitura de uma sociedade.

Quando o Despertar Islâmico – também chamado Primavera Árabe – começou em dezembro de 2010, todos vimos as multidões em levante, clamando por seus direitos. Todos testemunhamos a emergência de movimentos civis que exigiam liberdade, democracia, dignidade e autodeterminação.

Em Teerã, acompanhamos deslumbrados e felizes aqueles desenvolvimentos. Afinal, um movimento de cidadãos a exigir as mesmas coisas que muitos árabes desejam hoje foi o que levou à emergência de nossa República Islâmica, em 1979. Ao longo das últimas três décadas, o Irã afirmou e reafirmou consistentemente que é dever de todos os governos respeitar os desejos e clamores do próprio povo. Mantivemos essa posição enquanto se desenrolava o Despertar Islâmico, sem mudanças enviesadas que variassem conforme a localização do movimento civil. Sempre estivemos a favor da mudança para atender aos clamores populares, fosse na Síria, no Egito, ou em qualquer outro ponto.

Mas o que querem para a Síria outros membros da comunidade internacional? Infelizmente, tem havido respostas conflitantes aos movimentos civis que varrem o mundo árabe. Exemplos gritantes dessas contradições veem-se no Bahrain e no modo como alguns países responderam à brutalidade da repressão contra a população naquele país.

A resposta europeia à crise na Síria tem sido particularmente contraditória. Pouco, praticamente nada, se diz sobre a presença de número sempre crescente de extremistas armados na Síria. Apesar de sempre preocupados com o crescimento do extremismo no Afeganistão, a milhares de quilômetros de distância, os líderes europeus não dão sinal de preocupação ante o fato de que, muito rapidamente, poderão ter um Afeganistão bem ali, à porta de casa.

Tomando emprestadas palavras de meu respeitado amigo Kofi Annan, que há poucos dias renunciou ao posto de enviado especial da ONU para o conflito sírio[1], depois de ver seus esforços para construir a paz serem repetidamente boicotados, meus militares sozinhos não conseguirão por fim à crise, e qualquer agenda política que não seja nem inclusiva nem compreensiva também falhará.

O Irã busca uma solução que interesse a todos. A sociedade síria é um belo mosaico de etnias, fés e culturas, e será reduzida a cacos, se o presidente Bashar al-Assad for deposto por meio violento. A ideia de que, depois da remoção violenta do presidente sírio, seja possível algum tipo de transição ordeira não passa de ilusão.

Embora os esforços de Annan para por fim a crise estejam encerrados, seu plano de seis pontos para mudança política mantém-se vivo e forte. Por que continuar a semear a discórdia, quando a situação pode ser resolvida racionalmente, com sabedoria e prudência? Os que apoiam a violência na Síria não veem que jamais conseguirão o que querem, pelos meios que usam.

Mudança política abrupta sem um mapa do caminho para uma transição política administrada só levará a situação cada dia mais precária que desestabilizará uma das regiões mais sensíveis do mundo. O Irã é parte da solução, não do problema. Como o mundo testemunhou durante a última década, atuamos como força de estabilização no Iraque e no Afeganistão, dois outros países muçulmanos jogados hoje em torvelinho. A estabilidade de nossa região é essencial para a paz e a tranquilidade mundiais.

Algumas potências mundiais e certos estados na região têm de parar de usar a Síria como campo de batalha para definir disputas por influência. A única saída para o impasse é oferecer aos sírios uma chance de encontrarem, eles mesmos, a saída.

Tomando em consideração o plano de seis pontos de Annan, o Irã espera conseguir reunir países que pensem da mesma forma para implementar três pontos essenciais: obter imediato cessar-fogo, para por fim à matança; enviar ajuda humanitária ao povo sírio; e preparar o terreno para um diálogo que resolva a crise.

Anuncio aqui a disposição do Irã para receber, como anfitrião, uma reunião de países comprometidos a implementar imediatamente esses passos, com vistas a por fim à violência. Como parte de nosso compromisso com resolver a crise, reitero nossa disposição para facilitar conversações entre o governo sírio e a oposição e para realizar no Irã, esse diálogo.

Além disso, alinhado com o plano de seis pontos de Annan, declaro mais uma vez o apoio do Irã a um processo de reforma política na Síria, que permita que o povo sírio decida sobre o próprio destino. Aí se inclui assegurar que os sírios têm pleno direito de votar em eleições livres e justas, a serem organizadas, sob supervisão internacional.

Com o mês sagrado do Ramadan aproximando-se do fim, rezo para que os sírios possam quebrar seu jejum em paz e estabilidade, o mais rapidamente possível – em nome dos interesses dos sírios e de todo o mundo.

 

Fonte: Indian Punchline

Traduzido pela Vila Vudu