No momento não se trata de se fazer uma apreciação crítica do que ocorreu no passado. O que ocorreu no passado deve ser absorvido e entendido de forma que consigamos extrair lições e perceber que no bojo deste passado pode estar engendrada a própria solução dos atuais problemas que enfrentamos.

Proponho aqui, de forma simples e rápida, uma completa inversão da presente discussão. Em curtas palavras, esta inversão faz-se necessária. Se o planejamento voltou à voga, é momento de apreciar mais e melhor o centro nervoso da problemática, algo que dê plena consequência ao próprio planejamento. Refiro-me ao financiamento do salto urbano.

Planejamento e “tendências espontaneamente dadas”. O caso das rodovias.

O atual estado da arte do debate sobre as possíveis soluções à falência do transporte público de massas no Brasil obedece aos mesmos vícios observados no momento em que o planejamento econômico dava seus primeiros passos no Brasil, na década de 1950. De lá para cá já se passaram mais de 60 anos. Nosso país construiu um edifício industrial e financeiro completo, ambos fatores – diga-se de passagem – que faltavam na época em que o transporte rodoviário tornou-se prioridade máxima à estratégia de unificação econômica de nosso território.

Num mundo em que o transporte ferroviário ganha muita força, notadamente na Ásia, invariavelmente é motivo de pesadas críticas a “opção” feita pelo Brasil pela rodoviarização. As críticas, no geral, são pobres. Em primeiro lugar, a opção pelas rodovias inseriu-se numa lógica de internalização do capital estrangeiro na indústria automobilística, essencial para nosso processo de industrialização. Em segundo lugar, a instalação de grandes parques automotivos deu-nos condições de proliferação de pequenas, médias e grandes indústrias nacionais ancilares às grandes montadoras. A opção rodoviária não foi um fim em si mesmo. Logo, julgar a parte pelo todo tem conotação puramente diletante nesta matéria.

O terceiro ponto, essencial, é saber que na falta de um parque industrial completo e de um sistema financeiro capaz de suportar o esforço de reprodução industrial, a única forma possível de planificação está na absorção de tendências externas dadas objetivamente. E a tendência externa daquele momento era a da ampliação da indústria automotiva. Um planejamento de outro nível demanda um amplo sistema de crédito de longo prazo possibilitador de manutenção de déficits de investimentos por algum tempo. O exemplo chinês da indústria verde é basilar, pois o próprio Estado está disposto ao financiamento de déficits de forma que atualmente (após anos de investimentos pesados) suas empresas tomem a dianteira do processo em âmbito mundial.

Planejamento e tendências espontaneamente dadas. O caso atual do transporte público.

Curiosamente, os atuais formatos de debate sobre o transporte público nas grandes cidades obedecem aos mesmos limites vistos décadas atrás. Se no passado os limites do financiamento nos impuseram limites claros em nossa capacidade de planificar, na atualidade a planificação é sufocada por uma visão completamente estanque do problema do financiamento. Outras agendas se sobrepõem e o olhar para fora (“empréstimos a fundo perdido”) camufla a incapacidade de governos e “gestores” de perceberem o imenso potencial dormente em nosso já articulado sistema financeiro nacional.

Exemplo de agenda sobreposta está na deus ex machina que se transformou a chamada “sustentabilidade ambiental”. Os ônibus elétricos chineses são a obcessão do momento. Planos integrados de substituição de fósseis por eletricidade limpa são elaborados e ajustados. Muito papel e discussão. É um fim em si mesmo que desobriga os programadores de observar o todo em vez da parte. Quero dizer com isso que o mais interessante ao Brasil não está nos ônibus elétricos em si. E sim em estudar o caminho que os chineses percorreram para chegar a este nível, ao nível de apontar ao mundo qual a tendência futura a ser seguida. Como organizaram uma complexa cadeia produtiva para este fim? Como internalizaram tecnologia? Quantos empregos geram este tipo de atividade industrial? Quais indústrias ancilares apoiam a grande produção estatal e/ou privada? E o mais importante: como os chineses estão financiando este megaprojeto de nível mundial?

Certamente não estão financiando com empréstimos a fundo perdido no estrangeiro, nem tampouco com dinheiro carimbado no orçamento. Mas essa é outra questão que abordarei mais adiante. Retornando, o maior limite da planificação dos transportes urbanos no Brasil – além de deslocar a questão do financiamento – está numa visão do transporte coletivo como um mero meio para aumento da produtividade do trabalho e, no melhor dos casos, para aumento do tempo livre dos trabalhadores. Necessitamos escapar deste tipo de abordagem e absorver a indústria dos transportes como uma indústria com amplas possibilidades de geração de renda e emprego de qualidade.

O planejamento é a maior das artes e a maior das ciências. E, por ser ciência, este instrumento nos dá condições de fazer com que a vida deixe de correr atrás da arte. E há muitos anos a vida, mediada pelas leis de mercado, corre atrás da peça de teatro.

Por um planejamento de nível superior: concorrência entre estatal e privado.

Vou mudar um pouco o foco da discussão para abordar um problema crônico e que incide diretamente na qualidade de vida dos trabalhadores: o oligopolização privada dos transportes públicos de massas. Pois bem, um exemplo concreto reside em Brasília onde um oligopólio com ares de quadrilha organizada se reúnem para manipular os preços das tarifas, boicotar direitos sociais conquistados e, consequentemente, reproduzir um dos piores serviços de transporte público que tenho conhecimento no mundo.

O problema transmuta-se para a política. O oligopólio, e seu caráter ultraconservador, pauta a agenda do governo para este setor. Tem força política altamente organizada. Tem base material pela via do repasse de centenas de milhões de reais como compensação do “serviço prestado”. De problema puramente social e econômico, o transporte público na capital federal já é um caso, perene e grave, de ordem pública e fruto do privatismo selvagem que reinou no país na década de 1990.

Num capitalismo como o brasileiro onde o Estado tem a possibilidade de estruturar um amplo esquema de intervenção em qualquer estrutura de mercado, a solução para este tipo de estrangulamento encontra-se – na intervenção, mesmo que temporária – na composição, aparelhamento e financiamento de uma estatal com o claro objetivo imediato de impor a concorrência. Obrigando e indicando o oligopólio privado a se reestruturar, mirar no mercado, diminuir preços e custos.

Mas convenhamos que as soluções estão aí. Mas a complexidade de problemas políticos demandam soluções políticas. Mais uma vez o caso de Brasília. O oligopólio dos transportes tem força política clara, representação e assentos nos órgãos públicos. Se o problema não comporta solução nos marcos do local, que se encontre nos marcos da própria federação. Nada impede que o governo federal intervenha no sentido da reestatização de determinados serviços públicos locais. O caso de Brasília é enigmático neste aspecto, assim como o próprio problema do abastecimento de água em Manaus.
Reestabelecer marcos civilizados de concorrência entre o estatal e o privado é tarefa de primeira monta à solução do grave problema do transporte público.

Por um planejamento de nível superior: redirecionando os novos campos de investimento e o crédito de longo prazo.

Chega-se ao ponto em que a discussão sobre o transporte público deixa de se concentrar na parte, transitando ao todo. E o ponto nevrálgico desta problemática deixa de ser pautado pela moral academicista. Vem à tona a questão do transporte público como parte de um todo que envolve o Princípio da Demanda Efetiva (Keynes, Kalecki), logo insta-se a uma discussão relacionando transporte público e processo de desenvolvimento.

A centralidade do redirecionamento dos novos campos de investimento na chamada “mobilidade urbana” deve estar combinado – necessariamente – com o imperativo do crédito de longo prazo, capaz de basear um planejamento que também obedeça a critérios de longo prazo. Daí surge o problema político. O crédito de longo prazo no Brasil é quase inexistente e monopolizado pelo BNDES. A razão disto é a mentalidade das altas taxas de juros com o fim precípuo de combater a inflação pela contenção de demanda. E o combate a esta concepção de política monetária tem implicação direta numa consistente política de enfrentamento aos problemas urbanos. Está tudo relacionado.

Somente o crédito de longo prazo é capaz de financiar imensas obras de infraestruturas urbanas, dentre elas a multiplicação de novas linhas de metrô em todas as capitais brasileiras, o financiamento de novas capacidades produtivas em território nacional, a formação de clusters industriais voltadas ao transporte, a construção de rodoaneis e ferroaneis em torno de grandes centros urbanos, a formação de grandes corredores urbanos, a extensão da largura de vias e a intensificação do esforço de se viabilizar os subterrâneos das cidades para estacionamentos de carros.

A intensificação deste imenso esforço de capitalização financeira para projetos em infraestrutura urbana imprescinde da formação de sistemas financeiros locais voltados, única e exclusivamente, ao carreamento de crédito de longo prazo. No concreto, cito o exemplo do Banco Regional de Brasília (BRB) e o processo de sua transformação em banco de fomento. A transformação do BRB em um banco de fomento tem caráter estratégico. Deve se transformar em uma grande bandeira política.

Por um planejamento de nível superior: a concessão de serviços públicos.

Planejamento e financiamento são duas pedras de toque do processo. Elementos que envolvem estratégia pura, visão larga de longo prazo. O outro elemento são as empresas, nacionais de preferência, que servirão de rock bottom para ao salto urbano.

Chamo por demais a atenção ao crédito de longo prazo e sua centralidade. A outra ponta desta reta reside no direcionamento deste crédito, sobre quais circunstâncias e para qual modalidade de empresa. Podem ser empresas estatais já constituídas (TCB, por exemplo) ou mesmo empresas privadas interessadas nesta reserva de mercado (grandes construtoras). O Estado por si só não tem condições de dar solução a amplos problemas como os verificados no transporte público de massa. A noção de concessão de serviços públicos deve abranger a formação, inclusive, de uma tipologia de concessão que tem servido à própria Petrobrás.

Refiro-me às concessões de empresas públicas para empresas públicas, de forma que juridicamente tais empresas estatais concedidas tenham condições de utilização plena do mercado de valores para se financiarem e financiarem, também, grandes projetos. Por outro lado, a mesma lógica serve à concessão de grandes obras à iniciativa privada. Nos dois casos, tanto o crédito de longo prazo quanto o lançamento de títulos em bolsas de valores terão o poder de desatar o nó do financiamento, retirando o ônus do Estado e do município da utilização de pequenas margens do orçamento para investimentos.

Evidente que este tipo de concessão/privatização deve seguir uma ordenada lógica, sendo a principal delas o privilégio ao capital nacional em detrimento do capital estrangeiro e a própria estatização do planejamento dos investimentos e o poder do Estado sobre o orçamento da obra. Trata-se de uma hipoteca entre Estado e iniciativa privada que consiste na tomada, pelo Estado, da obra ou mesmo da própria empresa que não cumprir os acordos assumidos perante a sociedade.

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A ideia central nesta troca de ideias sobre transporte público não foi a de encerrar uma discussão densa e complexa, que merece muito mais estudos e reflexões a todos os interessados na solução do problema. Minha ideia foi apenas de lançar alguma luz sobre a necessária reflexão de ordem estratégica e que abarcasse mais determinações que, sob um ponto de vista particular, têm sido postas de lado, ao largo da margem. Tratou-se de uma simples contribuição ao debate. O debate é longo. Espero ter contribuído de alguma forma.