Balzac: o autor favorito de Marx chega ao século 21
O termo originou-se a a partir de apenas um livro de Balzac, A Mulher de 30 Anos. Trata-se de um de seus piores romances. O autor, que se caracterizou por criar um minucioso mundo de personagens que apareciam e reapareciam em vários romances em diferentes fases de suas vidas, que foi o construtor de todo um mundo que sob o grande guarda-chuva da Comédia Humana, o criador de personagens e tramas extremamente completos e complexos, escreveu, em A Mulher de 30 Anos, uma história frouxa, desarticulada e meio sem pé nem cabeça. Ruim mesmo. Balzac devia estar apressado e premido por dívidas, o que frequentemente lhe acontecia. Apesar disto, o título do pequeno livro inspirou os brasileiros a criarem o termo “balzaquiana”, que só existe em nosso país.
Na época de Balzac e mesmo depois, a idade de 30 anos era um turning point decisivo para as mulheres. Quando aproximavam-se do precipício da quarta década, elas ou estavam caindo fora do mercado casamenteiro para tornarem-se tias – tolerados fracassos sociais – ou, se estivessem vivendo casamentos infelizes, estariam perplexas ante o irremediável, como a personagem de Balzac.
No século XXI, os romances de Balzac seguem recebendo novas traduções e edições como talvez apenas Dostoiévski e Tolstói. Ao menos no Brasil, a “culpa” inicial possivelmente deva ser atribuída ao monumental trabalho realizado por Paulo Rónai nos anos 50, que fezo trabalho de organização, revisão, anotação, introdução e comentários dos romances de A Comédia Humana, publicada pela Editora Globo entre 1946 e 1955. São 17 alentados volumes com 88 romances. Dentre estes, memoráveis obras-primas e outros, como A Mulher de 30 anos, são “romances de mero divertimento, escritos às pressas para ganhar dinheiro”, como disse Otto Maria Carpeaux.
Honoré de Balzac viveu apenas 51 anos e foi prolífico como poucos. É considerado o fundador do realismo na literatura moderna, mas é bem mais do que isso: é o autor clássico por excelência, um dos que solidificaram a popular forma do romance do século XIX. E ele conseguiu isto demonstrando sistematicamente como se fazer romances realistas realmente envolventes, grudentos. O esquema é simples mas complicado de imitar. Uma apresentação dos personagens e do contexto social – Balzac era um gênio em fazer isso sem ser maçante, caracterizando cada um dos protagonistas com amor e ironia, sem deixar de fazer considerações sociológicas nada desprezíveis –, depois vinha a construção do conflito, o clímax e o desenlace. Obviamente, o esquema não é tão simplório e havia variações, além de aguda e surpreendente análise psicológica.
Mas ainda estamos no terreno das reduções, pois o imenso painel de Balzac oferecia uma visão tão completa da sociedade francesa que Karl Marx costumava declarar que A Comédia Humana tinha sido mais importante para a sua compreensão da sociedade francesa do que os muitos tratados de economia, história e filosofia lidos por ele. A mesma opinião era partilhada por Friedrich Engels, que afirmou ter aprendido com Balzac “mais do que aprendi com todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período”. O monumental romance As Ilusões Perdidas, que ocupa um volume inteiro da Comédia, inclui tem todas as características citadas. Seu realismo vai ao ponto de apresentar detalhes da contabilidade de Lucien de Rubempré. Ela é apresentada em números. Sua matéria-prima era a sociedade francesa e a “comédia humana” era encenada em suas instituições sociais.
Curiosamente, o criador de O Pai Goriot, Eugênia Grandet, César Birotteau, A Prima Bette, Esplendor e Miséria das Cortesãs e de pequenas joias como Pierrette, não era considerado um escritor talentoso. Seu realismo radical fez com que não apenas seus contemporâneos o considerassem um escritor menor, como se fosse um documentarista dos costumes de uma época, cuja meta fosse a de expressar as modificações que ocorriam na sociedade francesa do século XIX, desde o período do Antigo Regime até o fortalecimento da burguesia.
Assim, Balzac discorria sobre temas que nunca antes haviam sido abordados em ficção, tais como a tensão entre as classes sociais na França, a economia, os meios de transporte, a recém-nascida profissão de jornalista, a vida nos cartórios, as concordatas, as práticas místicas como o espiritismo, a homossexualidade e a política num grau de detalhamento nunca antes visto, tudo dentro da forma do romance do século XIX.
Balzac construiu a Comédia Humana durante pouco mais de vinte anos. Morreu aos 51, após trabalhar incansavelmente por anos. Aliada à paixão pela literatura, havia a necessidade de pagar as dívidas que acumulava. Ele dormia pouco e era viciado em café, que consumia para manter-se acordado. A ideia de uma enorme série de livros que retratariam “todos os aspectos da sociedade” ocorreu-lhe em 1832, depois já ter escrito diversos romances. Quando a concebeu, correu para ao apartamento de sua irmã e disse: “Estou prestes a me tornar um gênio.” No início, o projeto chamava-se Études des Mœurs (Estudos de Costumes). Na Comédia, ele incluiu parte do que já tinha escrito e todos os romances seguintes. O mosaico de romances e novelas foi o trabalho de sua vida.
Ao mesmo tempo que sua obra, Balzac não deixava de lado a ideia de ficar rico com algum negócio. O primeiro desses empreendimentos foi a fundação de uma editora dedicada aos clássicos franceses. Embora os livros fossem muito baratos ou por causa disto, o negócio fracassou. Voltou aos negócios tipográficos depois de pedir dinheiro a amigos, no entanto, sua inexperiência causaram de novo sua falência. Depois, conheceu e se apaixonou por Laure de Berny, mulher casada com quem teve um caso. Ela lhe deu sociedade comercial a fim de abrir outra editora que não tardou em falir. Ele passou a empresa a um amigo que acabou rico como editor, mas que cobrou de Balzac boa parte do rombo com que esta lhe fora entregue. Sabe-se que, em certa época, devia cerca de 50.000 francos à própria mãe…
Esta aspiração por uma grande jogada comercial jamais abandonou Balzac. Anos mais tarde, teve a ideia de cortar 20 mil hectares (81 km²) de madeira de carvalho na Ucrânia e transportá-la até à França para vendê-la no país. Mais dívidas. O autor também fundou jornais cuja intenção era a de demonstrar uma total imparcialidade e equidistância. Também faliram.
Toda esta experiência de fracassos teve repercussão em sua literatura. Alguns de seus maiores romances focam-se em personagens obcecados pela ascensão social. Tais pessoas chafurdam em inglório pântano, envolvidas em questões amorosas — que muitas visavam exclusivamente o alpinismo social — , em negócios e heranças. O incrível número de romances de Balzac deve-se a um método de trabalho que incluía frequentemente 15 horas de por dia escrevendo e revisando. Nestes períodos, comia uma refeição ao final da tarde e dormia até meia-noite. Então, acordada e trabalhava até a tarde seguinte com pequenas pausas para tomar café preto. “O café é a bebida que desliza para o estômago e põe tudo em movimento.”
Engana-se quem pensa que a pressão das dívidas tornou-o um escritor descuidado. Poucas vezes isto aconteceu. Balzac era preocupadíssimo com a qualidade de seus textos, revisando-os compulsivamente. A intenção de Balzac era que a Comédia Humana tivesse 137 títulos, mas ele só obteve chegar aos 88 livros.
Se pudéssemos indicar quatro livros, não fugiríamos do lugar comum.
Eugênia Grandet (1833) conta a história de uma típica provinciana filha de pai rico e que é disputada por potenciais maridos. Ela se apaixona por seu primo que, aconselhado pelo de Eugênia, antes parte em busca de fortuna. Eugênia fica resignada à espera. Tal sinopse parece apontar para um romance triste e sentimental. Nada disso. Há uma grande ebulição em torno do personagem principal do livro, o pai de Eugênia, rico comerciante de vinhos que é um dos maiores avarentos da história da literatura.
O Pai Goriot (1834) conta a visceral história de um velho comerciante que se deixa arruinar para que as filhas, que o desprezam, possam frequentar a alta sociedade. Aqui estão também Rastignac, especie de alter ego de Balzac, jovem pobre e ambicioso da província que deseja enriquecer em Paris a qualquer custo; e Vautrin, personificação do diabo que aparecerá em vários romances da Comédia Humana. Mais que a história do personagem-título, contam-se aqui as transformações porque passa Rastignac, de interiorano ingênuo a cínico e inescrupuloso.
Ilusões Perdidas (1843) é o mais longo dos romances de Balzac, ainda mais se somarmos a ele sua continuação, Esplendores e Misérias das Cortesãs. No romance está o maior dos personagens balzaquianos, o poeta Luciano de Rubempré, que deseja sair da província para se famoso em Paris. Em sua tentativa, Luciano deixa-se influenciar por todos com quem cruza numa Paris onde é proibido ser ingênuo. O livro também inclui David Séchard, um impressor que inventa um tipo de papel barato, mas que sucumbe à concorrentes que se associam para destruí-lo.
A Prima Bette (1846) é outra das obras-primas de Balzac. Pertence ao subgrupo “Os Parentes Pobres”, do qual faz parte também O Primo Pons. Neste livro, a ressentida, pobre e solteirona Lisbeth Fischer, a personagem-título, vinga-se minuciosamente de todas as humilhações verdadeiras e imaginadas, que sofreu ou teria sofrido de seus parentes ricos. Suas vítimas, várias sem nenhuma estatura moral, vêem nela um exemplo de fidelidade e sinceridade. Um estupendo estudo sobre o ressentimento.
Fonte: Sul 21