O ignóbil anticomunismo de Renato Janine Ribeiro
Sob o pretexto de explicar que o Partido dos Trabalhadores (PT) não é comunista, ele revolve o que há de mais putrefato da ladainha que tenta separar Marx dos marxistas. Segundo o professor, pelo que ele lê nos blogs e em cartas que recebe “enquanto colunista”, os ataques aos “comunistas” do PT são infundados.
Renato Janine Ribeiro então se propõe a “esclarecer algumas coisas”. E a partir daí não se vê mais nada com clareza. Na melhor das hipóteses, seguem-se explicações que desvendam só um pedaço da charada. As análises são difíceis de entender, defeituosas na lógica, contrárias aos fatos ou tudo isso ao mesmo tempo. Ao fim e ao cabo, quem pensou que poderia entender a decantada diferença entre petismo e comunismo fica na mesma. E o mistério continua, como o da feira de Acari.
O máximo que dá para saber é o que Fernando Henrique Cardoso (FHC) já cansou de explicar: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Galvão Bueno, o narrador esportivo da TV Globo, não explicaria melhor, a julgar pela sua sentença de que, afinal, só um time pode ser o campeão brasileiro.
Programa e ideais
A primeira grande descoberta do professor é a de que “todos têm o direito de divergir do Partido dos Trabalhadores e do comunismo”, “mas é errado confundir um com o outro”. Para evitar a burrice dos seus interlocutores, é “melhor aclarar alguns pontos, para que os adversários do PT ou do comunismo possam criticá-los sem incorrer nessa confusão”. Então vamos lá:
O PT não é ou foi comunista, nem por seu programa nem por sua história.
Pelo programa, ou ideais, que segundo Renato Janine Ribeiro são a mesma coisa, a diferença é que “o princípio de todo partido ou militante comunista é a abolição da propriedade privada dos meios de produção”.
Ele não diz onde leu isso ou por qual caminho chegou a essa conclusão inacreditável para um professor.
“Quer dizer que só a sociedade pode ser dona de fábricas, fazendas, empresas. Já residências, carros, roupas e hortas para uso pessoal ou familiar não precisariam ser expropriadas de seus proprietários privados. A casa em que eu moro não é ‘meio de produção’. Menos ainda, minha roupa. Mesmo a horta, em vários países comunistas, ficou em mãos particulares. Seja como for, o ponto de partida do comunismo é: a propriedade privada dos meios de produção — fazendas, fábricas — é injusta e, também, ineficiente. Deve ser suprimida. Sem essa tese, não há comunismo”, sentencia, baseado em algum método de análise tirado sabe Deus de onde. A questão da propriedade seria a maior diferença.
Aí ele faz um parêntese:
“Até o presente, esse projeto não funcionou. Para Marx, a questão não era moral, mas econômica. A propriedade privada acabaria se mostrando ineficiente. Seria superada por uma forma superior de propriedade, a coletiva. Ora, até hoje a propriedade privada se mostrou mais produtiva. E ninguém conseguiu mostrar na prática (ou teorizar) o que seria a propriedade ‘social’ dos meios de produção. Houve, sim, propriedade estatal deles. Mas Marx era claríssimo: o Estado tinha que ser abolido. Nunca propôs ampliá-lo. Nem reduzi-lo. Ela ia mais longe do que os próprios liberais: queria suprimir o Estado. Era o contrário do que fizeram os Estados comunistas, que reforçaram a polícia e controles de toda ordem. Eles suprimiram a propriedade privada, mas não o Estado: criaram um monstro policial que Marx jamais aceitaria.”
Bem, com essa contundência não dá para dizer que Renato Janine Ribeiro é um preguiçoso. Ele deve ter se esforçado muito para estudar todos os teóricos do marxismo e todas as práticas do socialismo (comunismo, segundo ele). Não há porque duvidar do professor. Ele se esforça também para explicar a essência do PT. O partido “namorou em seus inícios a ideia de um socialismo vago, mas nunca se bateu pela abolição da propriedade privada dos meios de produção”.
Vulgarização de Lênin
Para dissipar qualquer dúvida que porventura ainda exista sobre as intenções de Luis Inácio Lula da Silva ao criar o PT, Renato Janine Ribeiro informa que ele não era uma agente da CIA infiltrado para arquitetar uma armação contra a “verdadeira” esquerda, a comunista, e que o seu partido nasceu “de um inovador movimento sindical”, ao passo que “Lênin fora áspero na crítica ao ‘sindicalismo’, que padeceria de uma ilusão reformista, querendo melhores salários em lugar da revolução”.
Outra vez: onde ele leu essa mentira deslavada, essa vulgarização grosseira, não foi dito. Lênin era um intelectual refinado, que se dedicou a fundo ao estudo do sindicalismo — para ele, escola de socialismo.
Depois dessas esclarecedoras considerações, Renato Janine Ribeiro volta ao tema que se propôs esclarecer.
“Daí vêm duas consequências curiosas e paradoxais quanto ao comunismo. Para ele, o fim da propriedade privada não é só um projeto. É uma certeza científica. O marxismo pretende ser a ciência das relações humanas. É científico que um dia virá o socialismo. Disso decorre que, sendo uma ciência, o marxismo no poder não admite discordância. O dissidente é um errado. E por que autorizaríamos os errados a falar? Eles só atrasarão a rota da história… Seria mais econômico e melhor, para a humanidade, calá-los. Daí, o caráter não democrático dos regimes comunistas (é por isso que, na democracia, a liberdade de expressão significa que podemos erra, renunciamos à certeza). E disso decorre, também, que os marxistas fora do poder não têm pressa. Um dia, chegará o comunismo. No poder, enfatizam que o socialismo é uma necessidade histórica. Fora do poder, enfatizam que a história não precisa ser apressada. Dão-se bem com a adversidade. Derrotados, sabiam ser serenos, para usar a virtude que mostravam em tempos nefastos: a história lhes daria, um dia, razão.”
Ô, gente malvada esses comunistas! Maquiavélicos!
Tem mais:
“É paradoxal, não é? A mesma convicção de que o marxismo seja uma ciência leva os comunistas, no poder, a não tolerar a oposição, e fora do poder a fazer tudo o que é acordo, mesmo dos mais espúrios, a aguentar qualquer derrota, a esperar. Ora, é digno de nota que o PT nunca aceitou o pressuposto do marxismo como ciência. Por isso mesmo, também recusou suas consequências. Nunca reprimiu divergências ao feitio comunista. E sempre teve pressa (exceto, talvez, depois de chegar à Presidência). Não foi à toa que, entre petistas e comunistas, as relações nunca tenham sido fáceis. A queda do Partido Comunista tradicional, o ‘partidão’, acaba coincidindo com a ascensão do PT. Não restou espaço ao PCB. Mudou de nome, abriu mão do fim da propriedade privada, manteve uma excelente retórica, foi para a direita.”
Sobre o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), nenhuma palavra.
A alma do marxismo
Uma das formas mais usadas para se falar vulgarmente sobre marxismo é associá-lo ao autoritarismo, como faz Renato Janine Ribeiro nessa overdose de vulgaridades. O “comunismo” é mostrado como um sinistro desígnio contra a criatura humana, associado a rios de sangue, tiranias, fuzilamentos e às maiores atrocidades de que são vítimas especialmente as crianças e os inocentes.
O primeiro foco de explicação para essa antipatia ao marxismo reside no fato de existir uma indiferença em relação à sua alma — na definição de Lênin —, a dialética. A dificuldade está em procurar compreendê-lo com espírito científico, isento de paixões e sem a carga irracional de ódio, herdada em boa parte de preconceitos incutidos por anos de anticomunismo. Mesmo quando ele não é excluído da categoria de fenômeno social — o marxismo é ensinado até nas universidades norte-americanas —, procuram a todo custo destituí-lo de sua alma. É assim que os espíritos se fecham ao seu conhecimento, possivelmente com medo de a ele se converter.
Outra resposta a esse foco de crítica ao marxismo passa pelo esclarecimento de que para compreendê-lo é preciso compreender a sua essência revolucionária. Revolução não é outra coisa senão o reajustamento dos quadros institucionais de um país, de modo a atender mais satisfatoriamente às necessidades da sociedade. E se isso acontece é porque as formas que se procura modificar já não correspondem às demandas do convívio coletivo. O reajustamento do poder é um processo revolucionário longo. A Revolução Francesa, por exemplo — que nem era marxista —, não se limitou à tomada da Bastilha. Ela prosseguiu na forma de uma série de reformas políticas, sociais e econômicas que se realizaram até que se completasse a modificação da estrutura da sociedade.
O desenvolvimento do processo revolucionário também não implica inevitavelmente em uso da violência, em insurreição. Aliás, a história demonstra que são precisamente os interessados em manter um sistema social já inadequado os primeiros a recorrer à violência para continuarem no poder. Estes sim precisam de golpes e de guerras para afogar descontentamentos e revoltas. Em síntese: a compreensão da essência revolucionária do marxismo nada mais é do que o exame e a interpretação do processo histórico e da realidade social dele derivada.
Perspectivas para o futuro
Neste exame e interpretação, busca-se soluções para os problemas — o que não significa outra coisa senão a abertura de perspectivas para um futuro menos incerto e mais promissor. Essa essência revolucionária pode ser observada na política atual do PCdoB. Guiados pelos princípios fundamentais da luta revolucionária — a análise concreta da realidade concreta —, os marxistas do PCdoB entendem que a essência da tática está na leitura real da correlação de forças em cada momento. Se a realidade mudou, mudemos a tática.
A compreensão desta essência revolucionária implica também em compreender que podem surgir contradições entre a ordem das coisas (o programa político) e a força das coisas. O revolucionário francês Saint-Just, que ficou conhecido pela publicação do livro O Espírito da Revolução e da Constituição da França — no qual ele considerava a morte do rei como necessária à estabilidade do novo regime — dizia: “Talvez nos leve a força das coisas a resultados que não imaginávamos.” Trocando em miúdos: para compreender a realidade, é preciso pensar a realidade.
Pensar é apreender os fatos pelo pensamento e compreendê-los como processo em contradição — a mola do movimento real das coisas. Logo, se a realidade é dialética e se pensar é apreender a realidade, pensar é apreender dialeticamente os fatos.
Poder de imaginação
Os fatos, portanto, não podem ser banidos da história para que prevaleça uma interpretação apressada dos acontecimentos. Renato Janine Ribeiro tende a só ver o que quer ver, só reconhece o que quer reconhecer. Questão de atitude mental. Ou, por outra, de condicionamento mental. Ele não vê o mundo além do que permitem as fórmulas tradicionais consagradas e petrificadas do exercício do raciocínio. Galileu, acossado pelos aristotélicos das universidades, disse que, para estes, filosofar não era outra coisa senão folhear os textos de Aristóteles — nos quais fatalmente seriam encontradas todas as soluções para todos os problemas.
As grosserias de Renato Janine Ribeiro revelam um velho problema: a distorção dos fatos para provar uma tese falsa. Neste caso, ele simplesmente deixa a essência de Marx de lado ao pretender esclarecer o “comunismo”, o que equivale a sair à cata de mitos na tentativa de fugir da realidade. Karl Marx não é apenas mais um nome no balaio de gatos de gurus que andam por aí falando descompromissadamente. Ele é, antes de qualquer outra coisa, um cientista que se destaca na história do pensamento social. Sua teoria difere substancialmente das idéias voláteis que são propagadas por gente que ganha a vida montando frases de efeito e expelindo perdigotos.
A interpretação científica dos seus princípios radiografa casos de sucesso e fracasso em uma sociedade, gera novas interpretações da realidade, cria novos paradigmas e equações para entender e explicar o que ocorre no mundo. O medo é o de que as grandes massas compreendam a sua alma e tomem seus destinos nas mãos — seguindo a máxima marxista de que não basta interpretar o mundo, mas, sim, transformá-lo. Daí o esforço milhões de vezes repetido para tentar vulgarizar o marxismo, prática ignóbil a que recorre agora Renato Janine Ribeiro.
Não há dúvida de que as experiências socialistas carregam nas costas distorções grosseiras no que diz respeito à interpretação do marxismo. Repassar os motivos que as levaram a cometer erros, no entanto, seria chover no molhado. O que importa é constatar que seus acertos pesam muito mais em qualquer balança honesta que se utilize para analisar os processos históricos.
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A íntegra do artigo:
O PT não é comunista
Por Renato Janine Ribeiro
De vez em quando, leio em blogs ou mesmo em cartas que recebo enquanto colunista deste jornal ataques aos “comunistas” do PT. Ora, é importante esclarecer algumas coisas. Todos têm o direito de divergir do Partido dos Trabalhadores e do comunismo. Mas é errado confundir um com o outro. Melhor aclarar alguns pontos, para que os adversários do PT ou do comunismo possam criticá-los sem incorrer nessa confusão.
O PT não é ou foi comunista, nem por seu programa nem por sua história.
Vamos ao programa ou, se quiserem, aos ideais. O princípio de todo partido ou militante comunista é a abolição da propriedade privada dos meios de produção. Quer dizer que só a sociedade pode ser dona de fábricas, fazendas, empresas. Já residências, carros, roupas e hortas para uso pessoal ou familiar não precisariam ser expropriadas de seus proprietários privados. A casa em que eu moro não é “meio de produção”. Menos ainda, minha roupa. Mesmo a horta, em vários países comunistas, ficou em mãos particulares. Seja como for, o ponto de partida do comunismo é: a propriedade privada dos meios de produção – fazendas, fábricas – é injusta e, também, ineficiente. Deve ser suprimida. Sem essa tese, não há comunismo.
A maior diferença é a questão da propriedade
Um parêntese: até o presente, esse projeto não funcionou. Para Marx, a questão não era moral, mas econômica. A propriedade privada acabaria se mostrando ineficiente. Seria superada por uma forma superior de propriedade, a coletiva. Ora, até hoje a propriedade privada se mostrou mais produtiva. E ninguém conseguiu mostrar na prática (ou teorizar) o que seria a propriedade “social” dos meios de produção. Houve, sim, propriedade estatal deles. Mas Marx era claríssimo: o Estado tinha que ser abolido. Nunca propôs ampliá-lo. Nem reduzi-lo. Ela ia mais longe do que os próprios liberais: queria suprimir o Estado. Era o contrário do que fizeram os Estados comunistas, que reforçaram a polícia e controles de toda ordem. Eles suprimiram a propriedade privada, mas não o Estado: criaram um monstro policial que Marx jamais aceitaria.
Pois bem, o PT namorou em seus inícios a ideia de um socialismo vago, mas nunca se bateu pela abolição da propriedade privada dos meios de produção. Daí que, nos seus primórdios, fosse até acusado de ser uma armação contra a “verdadeira” esquerda, a comunista. Dizia-se que Lula seria um ingênuo, ou um agente da CIA aqui infiltrado. Além disso, o PT nasce de um inovador movimento sindical; ora, Lênin fora áspero na crítica ao “sindicalismo”, que padeceria de uma ilusão reformista, querendo melhores salários em lugar da revolução. Tínhamos um abismo entre o projeto petista e o comunista. Finalmente, o lado libertário do PT – o fato de reunir descontentes com a cultura dominante, machista, racista etc. – desagradava a quem achava que a contradição decisiva da sociedade seria o conflito do capital com o trabalho. Havia marxistas no PT, talvez ainda os haja, mas sempre foram minoria.
Daí vêm duas consequências curiosas e paradoxais quanto ao comunismo. Para ele, o fim da propriedade privada não é só um projeto. É uma certeza científica. O marxismo pretende ser a ciência das relações humanas. É científico que um dia virá o socialismo. Disso decorre que, sendo uma ciência, o marxismo no poder não admite discordância. O dissidente é um errado. E por que autorizaríamos os errados a falar? Eles só atrasarão a rota da história… Seria mais econômico e melhor, para a humanidade, calá-los. Daí, o caráter não democrático dos regimes comunistas (é por isso que, na democracia, a liberdade de expressão significa que podemos erra, renunciamos à certeza). E disso decorre, também, que os marxistas fora do poder não têm pressa. Um dia, chegará o comunismo. No poder, enfatizam que o socialismo é uma necessidade histórica. Fora do poder, enfatizam que a história não precisa ser apressada. Dão-se bem com a adversidade. Derrotados, sabiam ser serenos, para usar a virtude que mostravam em tempos nefastos: a história lhes daria, um dia, razão.
É paradoxal, não é? A mesma convicção de que o marxismo seja uma ciência leva os comunistas, no poder, a não tolerar a oposição, e fora do poder a fazer tudo o que é acordo, mesmo dos mais espúrios, a aguentar qualquer derrota, a esperar. Ora, é digno de nota que o PT nunca aceitou o pressuposto do marxismo como ciência. Por isso mesmo, também recusou suas consequências. Nunca reprimiu divergências ao feitio comunista. E sempre teve pressa (exceto, talvez, depois de chegar à Presidência). Não foi à toa que, entre petistas e comunistas, as relações nunca tenham sido fáceis. A queda do Partido Comunista tradicional, o “partidão”, acaba coincidindo com a ascensão do PT. Não restou espaço ao PCB. Mudou de nome, abriu mão do fim da propriedade privada, manteve uma excelente retórica, foi para a direita.
Em suma, há muito a criticar ou a elogiar no PT, mas será errado criticá-lo (ou elogiá-lo) por ser comunista.
Depois de meu último artigo, recebi de Fernando Henrique Cardoso amável e-mail. O ex-presidente se diz leitor da coluna e, confiando na minha boa-fé, desmente que seu governo tenha restringido a apuração dos escândalos da privatização das teles e da compra de votos para a reeleição. Esta existiu, diz, mas por parte de políticos locais. É importante o seu depoimento. E lembro aos leitores que o eixo de meu artigo estava na tese de que as questões de corrupção, que pareciam tão claras quando o lado do bem se opunha à ditadura, se transformaram num cipoal desde que PT e PSDB se digladiam. Agradeço a carta e a gentileza do ex-presidente.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.