A fase marighelliana do rapper Mano Brown
Há cerca de três anos, quando minha mãe (Isa Grinspum Ferraz) começou a produção do documentário “Marighella” (sobre o líder comunista e guerrilheiro assassinado em 1969 pela ditadura), ela me perguntou quem seria o rapper mais interessante para fazer uma música para a trilha do filme.
A ideia era dialogar também com as novas gerações e com a população de um modo mais amplo, e o rap parecia um bom caminho.
Não precisei pensar muito para responder: “O cara é o Mano Brown. Sem nenhum pingo de dúvida”. Para mim, Brown é não só o maior rapper brasileiro, mas também uns dos maiores gênios da música nacional das últimas décadas.
Eu já tinha mostrado para minha mãe, desde a adolescência, faixas como “Homem na Estrada”, “Fim de Semana no Parque”, “Diário de Um Detento” e “Negro Drama”. Lembrando disso, ela topou na hora.
Mas e para ele topar? Todos sabemos que o acesso a Mano Brown não é fácil. E dessa vez não foi diferente. Demorou um ano e meio para conseguirmos fazer ele aceitar a empreitada. A produção do filme já estava bem adiantada.
De cara ele pediu para assistir o primeiro corte, de cerca de quatro horas. A partir daí se encantou com a história de Marighella, começou a pesquisar mais e pediu para conhecer Clara Charf, viúva do líder.
As coisas começaram a fluir, até desembocar na música “Marighella: Mil Faces de Um Homem Leal” – que fecha o filme e ganhou clipe.
Recentemente, pouco antes da estreia do filme, foi pedido para que eu fizesse uma entrevista com o Brown para ser usada pela assessoria. Não tive muito tempo de preparar, mas não dava para perder a oportunidade.
Algumas perguntas tinham mais a ver com a divulgação do trabalho, e as cortei da versão que publico aqui. Minha intenção, neste NR, não é divulgar filme nenhum, mas sim colocar no mundo essa entrevista em que Brown fala coisas tão interessantes sobre sua identificação com Marighella.
Quando cheguei na casa em que fui encontrá-lo (sede da produtora do clipe), o cumprimentei e tentei puxar assunto. Comentei que estava ouvindo bastante as músicas do começo dos Racionais, como “Voz Ativa” e “Negro Limitado”.
Ele me olhou meio estranho e falou: “É mesmo? Você não acha muito radical?”. Fiquei um pouco tenso, e achei que a partir daí a entrevista seria difícil. Mas não, o papo fluiu muito bem, como você verá a seguir.
NR – Como você tomou contato com a história do Marighella?
Brown – Uma vez falaram pra mim que eu parecia com o Marighella. Depois, há uns 8 anos encontrei a Clara (Charf) e ela me falou sobre ele. Aí esse nome ficou: Marighella. Eu sabia que era um cara dos nossos, mas ainda não tinha me aprofundado nas ideias dele. Eu também já tinha ouvido rap’s que citavam ele, e um pouco antes de eu ser chamado pra fazer a música, um amigo meu tinha pichado o nome do Marighella em um muro lá na minha quebrada, junto com outros como Che Guevara, Malcom X, Sabotage… Então eu já estava tendo contato aos poucos.
NR – E o convite para o filme?
Brown – Me disseram que era o filme da sobrinha do Marighella, aí eu falei que topava fazer. Eu, então, pedi pra ver o filme, porque queria ver como era a obra da diretora, eu queria entrar no contexto. Eu tinha que fazer uma música que combinasse com o filme, não simplesmente um rap sobre o Marighella. Tinha que combinar no som, no jeito de cantar, de falar…
NR – E conhecendo melhor a história do Marighella, você concordou que vocês se pareciam? Como foi essa identificação?
Brown – Parece mesmo. A origem dele é a mesma que a minha, baiano com italiano. Preto com branco. O nariz parece… E a adrenalina, ele gostava disso, era sonhador, visionário também. Quase um santo, eu diria. Se você for ver, os grandes heróis da humanidade também tiveram que pegar em armas pra lutar por suas causas. Se matou muito em vão, se matou muito em nome de Cristo também. E o Marighella lutava por uma causa até bem mais justa do que o cristianismo, que era justiça, liberdade de religião, e tantas outras liberdades.
NR – Quando aceitou fazer a música você falou para a diretora: “Eu vou fazer porque não é o seu povo que precisa de heróis, mas o meu povo”. Para quais brasileiros você acha que a história do Marighella serve como lição de resistência, como exemplo?
Brown – O brasileiro no geral. É bom saber que você teve um cara que acreditava na justiça, acreditava no país. Era um cara do povo que acreditava no povo dele. Ele via condições de o Brasil ser grande já naquela época. E via que o que não deixava o país ser grande era a corrupção, a desinformação, a alienação. E ele lutou contra isso de todas as formas, ensinando, sendo político… E num certo momento chegou a conclusão de que contra a força, só usando a força. Contra a força, a força.
NR – E a história do Marighella ainda é pouco conhecida de modo geral, principalmente nas periferias, entre as classes baixas… Então o seu rap leva essa história pra muita gente que nunca teve acesso a ela…
Brown – Foi essa a minha maior inspiração, aproximar o Marighella da periferia, mostrar que é um cara como nós. Um cara de um valor inestimável, gigante para a história do Brasil e para a raça negra também.
NR – E sobre o processo de composição do rap, ouvi você dizer que não queria apenas contar uma história, mas “somar”, contribuir com algo novo. Como foi isso?
Brown – Para dialogar com o filme, eu não podia copiar o estilo da diretora. Eu tinha que entender a forma de ver dela, mas fazer a minha, pra somar mesmo. Como se eu colocasse um bonezinho ali em cima do fraque, bem no meu estilo. Então assisti o filme umas quatro vezes, pra ver o caminho que a autora seguiu e seguir um outro complementar, mas diferente. Porque é arte. Música é arte e cinema é arte.São duas artes, elas não podem se copiar. E tem ali no rap a minha visão, claro, mas eu também não quis “entortar” a história do Marighella pro lado que eu quisesse. Quis levar ele pra periferia, mas não “entortar” a história dele pra fazer com que os caras gostassem. Existe uma verdade. Era um cara que gostava de samba, carnaval, de fazer poesia, mas também pegava uma arma e assaltava um banco. É um herói mesmo, que deu a vida por uma causa.
NR – Em “Voz Ativa”, lá no começo dos Racionais, vocês falam que o Brasil precisava de um líder, um herói como Malcom X foi na América…
Brown – Marighella! Se fosse fazer essa música Parte 2 seria o Marighella, com certeza. É um herói brasileiro, mas foi bloqueado ao povo saber da história dele. Porque quando os caras ouvem se identificam rápido. Pensam: porra, era um cara comum, que jogava bola, se fantasiava no carnaval… mas era um monstro, de inteligência e de disposição, de foco. Eu queria ter um cara desses na minha família!
NR – Naquela época (ditadura) havia uma clareza maior de quem era o inimigo, contra o que lutar. Como é a resistência hoje? Contra o que?
Brown – Resistência contra qualquer forma de injustiça. Injustiças cotidianas, pequenas ou grandes. Pequenos racismos, grandes racismos. A luta é fazer a teoria virar prática. Não ficar só falando, mas fazer mais. Às vezes, sair da música e ir pra escola, por exemplo. Nos anos 1990 tudo foi muito cantado, nos anos 2000 tá sendo vivido. Talvez a música tenha dado mais espaço à prática. Se faz o que se cantava nos 90.
Tem muita coisa pra melhorar ainda. No Brasil todo. O país tá mais antenado com o mundo, mas falta muita coisa. Falta escola, universidade gratuita pra todos. Tem muita repressão ainda. Tem ainda uma guerra de poderes no novo Brasil, tem ainda uma esquerda e uma direita. De vez em quando eles convivem, negociam. Mas quando não dá certo quem paga é o povo.
NR – Por que os brasileiros devem ver um filme como “Marighella”?
Brown – Porque o país está em um momento novo e o brasileiro precisa saber que tem gente com a cara dele que faz tempo que é grande. Tem Zumbi, tem Marighella.
NR – E entre várias músicas do Racionais compostas depois do último CD, por que vocês escolheram fazer um clipe justamente de “Marighella”?
Brown – O Marighella precisava de um clipe, de uma apresentação, mostrar a figura dele. E é uma música compacta, que já dava um caminho pro clipe. Foi uma música que foi impactante de fazer. Acima da média. Bati três carros… fiquei doente (risos). Marighella é pesado, fui mexer com o cara… foi uma fase, essa fase marighelliana. Parei tudo pra fazer a música, não tinha como fazer mais nada. É uma puta responsa. Falar de mim é uma coisa, falar de outros é foda.
Fonte: Nota de Rodapé