Coisas Da Lusofonia: Vestido D´Alma

 


“Pois eu sou ao mesmo temo e acima de tudo Português, Açoriano, Europeu, Americano e Brasileiro e, por tudo isso, Romântico Hispânico e Ocidental. E gostaria de ser Homem de Todo o Mundo”!
Declaração de Vitorino Nemésio-açoriano e cidadão do mundo
(Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva nasceu na Ilha Terceira, Açores, em 1901; faleceu em Lisboa, em 1978. Era: ficcionista, poeta, biógrafo, historiador, escritor, cronista, ensaísta, apresentador de televisão, epistológrafo, professor, jornalista e intelectual).

Casa Típica Açoriana no Rio Grande do Sul- Brasil


-De certa forma e, com efeito, brasilianistas nativos e eu, participamos da procura das identidades lusófonas. O caminho da procura, pelo que podemos perceber, nos leva a todos a caminhar na direção daquilo que desejamos conhecer. Quanto mais esclarecidos somos, mais conhecemos nossas raízes.


Data do Século XVII, o registro da vinda de casais açorianos para o Brasil. Obviamente, esse dado histórico está intimamente ligado com as heranças culturais populares que iriam operar no Brasil. Foi devido ao resultado da “Resolução Régia do Rei Dom João V”, que no ano de 1746, determinou a abertura das inscrições para casais açorianos para embarcar para a região sul do Brasil. Os estados do sul (Santa Catarina e Rio Grande do Sul) foram os primeiros a receberem os açorianos (SC: Lagoa dos Esteves, Urussanga Velha, Pedreiras, Barra Velha, Içaras, Praia do Rincão); RS: São José do Norte, Estreito, Tavares, Mostardas, Santo Antônio da Patrulha, Capela Grande de Viamão, Porto dos Casais (Porto Alegre), Taquari, Santo Amaro, Piratini e Canguçu). Aí foram formadas as primeiras comunidades açorianas no Brasil. Foram 87 casais e suas respectivas famílias, que saíram em 21 de outubro de 1747 (há 275 anos) das Ilhas Terceira, Graciosa, Vila do Porto, São Jorge, Pico e Faial; num total de 461 pessoas. Desembarcaram em Santa Catarina em 6 de janeiro de 1748. (À mesma época, em data posterior, desembarcaram também no Pará). Coube a esses açorianos pioneiros, e aos seus descendentes, um papel importante no plano cultural. Ainda hoje, quase trezentos anos depois, encontramos símbolos culturais açorianos: na culinária (principalmente frutos do mar e peixes), na música (pajadas ou “cantigas de desafio” e/ou “ratoeira”), além da chamarrita (ou chimarrita); uma moda muito alegre e rapidinha, tipo um valseado na ponta dos pés. A dança de chamarrita é muito praticada ainda hoje nos centros de tradições gaúchas-CTGs, sendo uma das contribuições açorianas à cultura do Rio Grande do Sul), nos costumes e religião (vestidos ou cobertas d´alma), no artesanato (rendas, bordados, etc.).


Já escrevi sobre as pajadas, especialmente sobre a poesia campeira em décimas “espinélas”, que se faz no Rio Grande do Sul e que teve seu grande nome em Jayme Caetano Braun (falecido). As Pajadas, que ainda persistem graças a grandes pajadores, como Paulo de Freitas Mendonça (com o qual me correspondo), José Estivalet, Arabi Rodrigues e Pedro Júnior Fontoura, dentre outros; estou pesquisando sobre um assunto que envolve costumes, religião,  tradição e espiritualismo; que eu desconhecia: a “coberta” / ou “vestida” d´alma.
Quanto às “cobertas d´alma”, veremos a seguir:
 

“Coberta d´alma”
É uma tradição antiga, ainda praticada no litoral içarense (catarinense), além de extensa região do Rio Grande do Sul. Consiste em uma cerimônia para um morto, no sétimo dia de seu falecimento.
Quando morre uma pessoa, a família procura alguém da idade próxima do morto e convidam-na para fazer a “cobertura d’alma”.


Levam o convidado numa loja, compram todas as peças de roupa necessárias para ele, inclusive peças íntimas. Eu, ACAS, encontrei em pesquisa, que as famílias mais pobres, ou as mais conservadoras, não compram novas roupas d´alma; utilizam mesmo uma roupa usada do recém-morto.
 

No sétimo dia, à tardinha, todos se reúnem na casa do falecido. Enquanto os demais familiares esperam na sala, o convidado para cobrir a alma entra num quarto acompanhado de um familiar, que vai entregando-lhe peça por peça da roupa dizendo alto para todos ouvirem:

                – Veste a camisa (cita o nome do morto)

                – Veste a calça (cita o nome do morto)

Tudo em voz alta para ser ouvido na sala.
 

Já vestido, o convidado entra na sala, cumprimenta e abençoa os presentes.
 

Se ele representa o pai que morreu, filhos e netos pedem-lhe a benção.
 

Se foi uma criança, os mais velhos o abençoam.
 

Se houver missa de sétimo dia todos vão à Igreja.

Caso contrário, fazem algumas orações e se sentam para jantar.

A comida consiste nos pratos preferidos da pessoa morta, servida em doses generosas ao convidado, agradado por todos como se fosse realmente a pessoa morta que estivesse ali.

Se tiver predileção por uma fruta, o convidado deve comê-la.

Se fumar, o convidado deve fumar.

Terminado o jantar, um familiar de mais autoridade leva o que veste a coberta d’alma até a porta e olhando para o horizonte proclama:

                   – Fulano (cita o nome do morto) tu já recebestes a roupa nova!

                   – Já recebestes o jantar!

                   – Já te demos de comer!

                   – Já te demos de beber!

                  – Já rezamos por ti!

                  – Já demos tudo o que tínhamos que dar!

                  – Vai com Deus; descansa em paz e deixa-nos em paz!

Durante toda a cerimônia é chamado pelo nome do morto!

A cerimônia encerra-se aqui.


Depois da cerimônia, estabelece-se uma forte relação entre a família e o convidado, que passa a ser, moralmente, da família. Se o pai morreu, os filhos consideram-se filhos de quem vestiu a alma, visitam-se mutuamente, ouvindo inclusive as opiniões um do outro sobre os assuntos familiares.

Segundo algumas pessoas, a alma do falecido permanece na Terra e na casa, até a cerimônia. A alma fica perambulando, vagando pelos arredores até a coberta d’alma ser feita. Se a cerimônia não for feita a alma ficará vagando, não encontra a paz nem deixa ninguém em paz. É praticada por todo o tipo de famílias: brancas e negras, ricas e pobres, tanto do litoral catarinense como do solo gaúcho.
 

Obs: eu me interessei por este ritual. Não tinha certeza se era de origem açoriana. Um dos textos, amealhado na Internet e analisado por mim (de Derlei Catarina), diz que existe em Porto Alegre um estudioso que afirma ser este ritual de origem judaica, trazido para o Brasil pelos cristãos novos que não podiam praticar o judaísmo e tinham sido batizados em Portugal para não serem queimados na fogueira da Inquisição. Como já pesquisei bastante também a presença dos judeus no Brasil, creio que pode haver uma relação da presença judia entre os açorianos; porém essa relação, se verdadeira ou falsa, ainda é assunto de pesquisa, principalmente para quem pode se dar ao luxo de pesquisar na Torre do Tombo, em Lisboa. (Calcula-se que, em 1497, à época do descobrimento do Brasil, os judeus representavam aproximadamente 15% da população portuguesa; fato ímpar. A primeira sinagoga construída em Portugal data de 1210 !).  Essa “desconfiança” parece ser procedente, pois a história demonstra que os primeiros casais judeus (cristãos novos) que vieram ao Brasil, partiram lá do Algarve, na Vila Algarvia de Castro Marim. Registro também, que já são quase um milhão e meio de portugueses e descendentes que residem no Brasil; e que, entre os portugueses ou seus descendentes, estava o Sr. Dario Couto e Costa, meu finado avô materno, além do Manoel Affonso, sucessor do primeiro e meu avô postiço, de quem, erroneamente, herdei o sobrenome materno!

 

 

 

Referências:

livro: Espírito Santo, Miguel Frederico do: Açorianos no Sul do Brasil: da Prata do Potosi ao Ouro das Gerais. In A Presença Açoriana em Santo Antônio da Patrulha. Porto Alegre, EST, 1997, pág.16
site: www.blogdataniaregina.com.br/2009/06/coberta-dalma.html
autores: Célia Silva Jachemet, Lélia Pereira Nunes e Irene Maria Blayer, autor revelado no corpo do texto, além de textos dispersos na Internet, sem autoria revelada.

 

 

         Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.