Crônica do Tempo em que Havia Futebol de Várzea

Campo de futebol de várzea em São Paulo -Brasil. Eram 1000 em 1970;    restam 20

  

Quando eu tinha vinte anos jogava num time de várzea, o «Independente» do Jardim D´Abril (Osasco). Na época esse era um time de «boleiros», ou seja, ali foi reunido alguns dos melhores do bairro do Jardim D´ Abril (bairro de Osasco -SP).

Modestamente, eu, ACAS, (então chamado de Carlinhos), envergava a camisa número nove. Certa feita, num domingo de manhã, nós fomos jogar com o «Palmeiras» de Pirituba.

Ali, a cancha era limitada de fundo e de um lado (em L) por um córrego que servia como esgoto da comunidade. Na cabeceira do campo, onde estava também o «vestiário», era a entrada possível ao campo de jogo, uma vez que do outro lado existia um barranco íngreme e cheio de pedras, onde se postava a torcida do «Palmeirinha», como era chamado. Não percebi de início; a maioria dos torcedores que se postavam no tal barranco, portavam pedaços de paus (galhos de árvores, cabos de vassouras e afins, … .).

Embora o campo de jogo não tivesse grama, um capim ralo e um tipo de cipó de finas folhas revestiam ao menos cinquenta por cento da cancha. Uma coisa era boa; o campo era plano, sem buracos, como aqueles que sempre jogávamos e a bola rolava sem mudar de trajetória, bom para o Independente, pensei eu; e assim pensaram também meus companheiros.

O jogo tem início. Eu dei a saída para o Hélio Preto, que da meia direita recuou para o João Tucano (que havia se casado no dia anterior), este levantou a cabeça e lançou o Zé Carlos (o craque do time), por cima da zaga palmeirense e que, de chaleira, tocou por cima do goleiro: um a zero para o Independente!

Em quatro toques, fizemos um gol. Isso nos motivou e despertou a torcida e o time palmeirense, que passou a meter o pé, ao mesmo tempo em que a torcida brandindo os paus ameaçava o juiz da partida.

Dada nova saída, o Cabo Paulinho roubou a bola do adversário e, de canhota enfiou uma bola adocicada entre os dois beques. Eu entrei; saí do goleiro e toquei para a meta vazia: 2×0!

Nova saída: o Chicão cortou o passe do Palmeiras e tocou para o João Tucano, que de voleio meteu no barbante (3×0). Nem é preciso dizer que a torcida invadiu o campo e fizeram a troca do juiz; por um de confiança do Palmeiras!

A partir daí, o Palmeiras começou a dar pontapés, com o beneplácito do juiz da casa. E eles seguraram o placar por, pelo menos, dez minutos. Mesmo assim, o Zé Carlos tentou, e fez; do meio do campo, um gol por cobertura (4×0).

Tão logo deram a saída, nossa zaga roubou a bola e tocou na ponta direita para o Pedrinho, que chutou lá do canto da área grande e acertou o ângulo (5×0).

Nova saída e o Osvaldinho tomou a bola do Palmeiras e foi derrubado covardemente, por trás. Houve um movimento do Independente para agredir o faltoso, porém, com a torcida adversária invadindo o campo, deixamos pra lá! O juiz, covarde, ainda marcou falta para o Palmeiras, onde um truculento beque disparou um canhão; felizmente a bola passou por cima da trave defendida pelo Matheus.

Na saída da bola, o Matheus lançou a bola para o Madalena, quarto beque, que driblou três jogadores adversários ao mesmo tempo e lançou na área: eu fui na bola, mas recebi um safanão nos ombros e senti um murro nas costelas: enquanto fiquei caído, tentando respirar, a bola sobrou para o Coronel, que desferiu um portentoso chute de canhota, que por pouco não joga, inclusive o goleiro, para o fundo das redes.(6×0).

Já eram passados cerca de trinta minutos de jogo e eu mal conseguia respirar: me passaram a bola, mas eu não conseguia correr. Dominei o balão e enquanto gemia de dores, dois adversários chegaram com força exagerada sobre mim: apliquei-lhes uma jogada que eu criei e batizei como «banho de cuia». Com a bola no chão, curvei o pé direito e a lancei para o alto, enquanto os dois passaram feitos touros numa tourada. Pra quê fiz isso!

Um dos dois que receberam o chapéu pulou com os dois pés nas minhas costas, o outro, não satisfeito com minha contorção no chão deu-me um chute na clavícula. Nesse instante, o pior aconteceu: meu time fugiu do campo ao mesmo tempo em que a torcida, pedaços de paus em punho, batiam-me ali mesmo no chão!

Eu me levantei com muito custo e defendia com os braços às dezenas de pauladas que levava. Nesse instante o Osvaldinho pulou no meio da grei enfurecida e, nós, de costas um para o outro, enfrentamos aquele dilúvio de impropérios e pauladas; mais cos chutes.

Vi então num relance que o Pedrinho já havia apanhado nossas roupas e se dirigia ao pequeno caminhão de aluguel que nos levava nos eventos de jogos pela várzea de São Paulo. Eu e o Osvaldinho éramos os únicos do Independente que ainda estava no campo, todos os outros já estavam em cima do caminhão, cerca de trezentos metros longe do campo.

Apanhei como um cachorro; o Osvaldinho também. Jamais esqueci a coragem e a solidariedade do Osvaldinho. Isso ocorreu há quarenta e nove anos; até hoje não esqueço a bravura do Osvaldinho, nem o último jogo que fiz na várzea de são Paulo.

Abandonei o futebol, certo que um curso de desenho mecânico seria muito melhor para mim, mesmo que tivesse que ficar em casa aos domingos, para executar trabalhos do curso de desenhista.

Devo informar aos leitores que eu e o Osvaldinho só paramos de apanhar, quando o presidente do Palmeiras entrou no campo e se colocou entre nós dois e os agressores, pedindo pelo amor de Deus que parassem com aquilo, pois se o Independente fizesse uma reclamação na Liga Amadora de Futebol de Osasco, eles nunca mais poderiam marcar jogos naquele campo.

Infelizmente comecei a falar do futebol de várzea a partir do meu último jogo. Mas ainda tenho algumas histórias mais alegres sobre o futebol de várzea para contar aos leitores, inclusive tenho algumas fotos da época.

Esta é apenas uma de minhas lembranças do futebol da várzea; que se acabou em São Paulo. (SIC) !!!!!!!

 

 

  Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.