2 – As críticas à continuidade das políticas neoliberais

Em 2003, tendo em vista a evidente continuidade das políticas macroeconômicas, os seus críticos passaram a esgrimir contra o governo Lula os mesmos argumentos endereçados ao governo anterior. Esses críticos, muitos deles antigos apoiadores ou militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e de outras organizações de esquerda, vinham se sentindo crescentemente alienados com a guinada à direita do PT a partir de 1989, e sua acomodação ao jogo político institucional (ver Morais e Saad-Filho, 2005).

Essa postura crítica havia se intensificado durante o processo eleitoral, especialmente após a publicação da “Carta ao Povo Brasileiro” (Lula 2002) em junho de 2002, em meio a uma grave crise cambial e de refinanciamento da dívida federal desencadeada pelos mercados financeiros domésticos. A crise especulativa serviu para pressionar os principais candidatos a presidente da República a assumirem um compromisso público de que, se eleitos, respeitariam os contratos vigentes em relação à dívida pública doméstica e externa, e apoiariam um programa de auxílio emergencial a ser prestado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), negociado pelo governo que findava. Esse programa concedia um grande empréstimo para evitar o estrangulamento cambial, e continha as habituais cláusulas restritivas às políticas monetária e fiscal a serem implementadas pelo futuro governo. Na sua “Carta”, Lula comprometeu-se em implementar o programa do FMI e cumprir seus condicionantes (1).

Essa produção crítica, geralmente ensaística, não raro significava um rompimento político-ideológico com o governo Lula por parte de acadêmicos ditos “heterodoxos”. A sensação de estranhamento e perplexidade desses analistas com a continuidade das políticas neoliberais se agravava pelo fato de que economistas ligados à Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro – conhecido centro da academia conservadora – passaram a ocupar posições-chave no Ministério da Fazenda, enquanto o Banco Central continuava a ser dirigido por economistas ortodoxos e profissionais oriundos do mercado financeiro.

Por exemplo, Paula (2003b: 8-9) e Paulani (2003: 25), partindo de pontos de vista teóricos distintos, fizeram uma crítica severa às políticas neoliberais, e atacaram a afirmação das autoridades econômicas do governo Lula de que só haveria uma “macroeconomia legítima e racional” (aquela praticada no governo FHC) por tentarem fugir ao debate sobre a teoria e a ideologia implícitas nessas políticas. Paulani (2003: 23) apontava também que uma política monetária que tem como único objetivo a meta de inflação e como único instrumento a regulagem da taxa básica de juros resultaria em sobrevalorização da moeda pela entrada de capitais de curto prazo, comprometendo os resultados da conta corrente do balanço de pagamentos. Para Paulani (2003: 29), o erro dessa política de combate à inflação estava na presunção de que a alta dos preços se devia a uma inflação de demanda, enquanto sua aplicação deprimia o investimento e o crédito de forma permanente. Na mesma linha, Sicsú (2003) argumentou que, embora a taxa de juros seja eficaz em conter a inflação, o seu uso isolado pode ser contraproducente, porque pressões inflacionárias podem ser devidas também a deficiências de oferta ou choques externos, e, no Brasil, ao alto custo fiscal determinado pelo uso permanente de taxas de juro elevadas por razões de política econômica. Concordando com essas críticas, Cardim de Carvalho (2003: 77) aponta o risco de se manter a economia em recessão permanente, chamando a atenção de que, devido ao custo fiscal da política monetária, a política fiscal perdia seu papel anticíclico.

Por fim, Cardim de Carvalho (2003: 27), analisando os acordos do Brasil com o FMI, argumentou que as políticas neoliberais continuadas por Lula limitavam o poder discricionário das políticas macroeconômicas. Ele também indicou que não se pode atribuir ao FMI a autoria das políticas neoliberais, já que o governo Lula, assim como o seu antecessor, “[apropriava-se] das políticas do Fundo como suas”.

Portanto, independente da orientação teórica desses economistas heterodoxos, havia um razoável consenso sobre as insuficiências das políticas neoliberais, bem como sobre as suas consequências macroeconômicas adversas, o que era evidenciado pelas baixas taxas de crescimento do PIB nos dois mandatos de FHC, e pela contínua vulnerabilidade das contas externas. Por fim, os economistas heterodoxos insistiam que as políticas neoliberais eram incompatíveis com políticas industriais e de transferência de renda promovendo a retomada do crescimento econômico e a redução da desigualdade de renda e riqueza.

Apesar dessa convergência, não havia unanimidade nessa literatura quanto às causas da continuidade das políticas macroeconômicas. É o que veremos na próxima parte desta série de artigos.

Notas:

(1) Outros três candidatos proeminentes também firmaram compromisso público semelhante em apoio ao programa do FMI.