Da Economia Política à Política Econômica: o Novo-Desenvolvimentismo e o governo Lula – Parte 3
2 – As críticas à continuidade das políticas neoliberais (continuação)
Como vimos anteriormente, os economistas heterodoxos convergiam na crítica às insuficiências da política econômica neoliberal. No entanto, não havia unanimidade nessa literatura quanto às causas da continuidade das políticas macroeconômicas. A divisão principal se dava entre aqueles que consideravam essa continuidade como produto da fraqueza ideológica do governo Lula, que tinha escolhido trocar de valores ao chegar ao poder (Cardim de Carvalho, 2003; Paulani, 2003), e aqueles que defendiam ser tal continuidade fruto de uma situação contingente de correlação de forças políticas, que impunha o abandono das propostas petistas de administração do Estado professadas antes das eleições (Barbosa e Souza, 2010; Morais e Saad-Filho, 2005; Novelli, 2010; Sallum Jr. e Kugelmas, 2004).
A divergência entre essas posições tinha por clivagem a caracterização do período de crise cambial, desvalorização do real e virtual suspensão do refinanciamento da dívida mobiliária federal nos seis meses que antecederam às eleições de outubro de 2002: especificamente, se essa contingência teria força suficiente para tornar a adoção das políticas neoliberais uma imposição decorrente de um realismo político indeclinável ou, pelo contrário, se se tratava de um ato de vontade deliberadamente velado pela suposta ameaça de crise. Paulani (2003) alega que a crise não chegou a ameaçar a economia de um colapso; isso só ocorreria caso fosse iminente um default na dívida externa e um descontrole inflacionário. Entretanto, segundo ela, as reservas internacionais mantiveram-se estáveis até o final de 2002, em torno de US$ 36 bilhões, apesar da fuga de capitais, não indicando, assim, a iminência de um colapso cambial. Nem tampouco ocorreu o propalado choque inflacionário em decorrência da desvalorização do real. Apesar da taxa de câmbio ter ido de R$2 por dólar, em junho, para R$4, em setembro, quando ocorreu o aceite da carta de intenções com o FMI, a pressão inflacionária se dissipou já no início de 2003.
Em contraste, Morais e Saad-Filho (2005) argumentaram que a crise de 2002 assumiu tal gravidade que – no âmbito da institucionalidade vigente – ela tendia a levar o país a um colapso cambial e monetário. O refinanciamento da dívida pública foi virtualmente paralisado a partir de maio, e a sua consequente monetização pressionou o mercado de dólares, levando a uma rápida desvalorização do real. Só em setembro – depois de firmado o acordo do FMI – o valor da moeda nacional começou a se recuperar. Essa crise, devida à desconfiança dos capitais financeiros no candidato à frente nas pesquisas eleitorais, poderia levar ao colapso cambial e da dívida pública, evento inaceitável para qualquer força política sem objetivo revolucionário e que disputasse o pleito com reais chances de vitória, como era o caso do PT e de seus principais aliados. A natureza inevitavelmente ensaística desse debate, carregado de subjetividade e dependendo estreitamente de argumentos contrafactuais dificulta uma convergência sobre o tema; assim, seu mérito e suas conclusões permanecem em aberto.
Apesar de suas opiniões divergentes sobre a natureza da crise e as opções disponíveis ao primeiro governo Lula, esses dois grupos duvidavam – em graus variados – da capacidade do governo assegurar a retomada do crescimento econômico e de vir a ser bem sucedido politicamente. Nesse contexto, há também análises mais matizadas, como a abordagem política de Boito Jr. (2006). Partindo de um estudo da composição de classes dos governos FHC e Lula, Boito Jr. (2006: 74) conclui que não se pode considerar o segundo apenas como uma “continuidade pura e simples” do seu antecessor, entendendo que Lula “amplia e dá uma nova dimensão” à estabilidade da política burguesa iniciada por FHC, embora estabelecendo uma relação diferente com as diversas frações do capital brasileiro e internacional. Esse autor não descartava, no entanto, a ocorrência de um processo de desenvolvimento sob um modelo “liberal-desenvolvimentista”, em que pese a sua “dinâmica moderada e instável”.