Introdução ao Manifesto Comunista
“Introdução ao Manifesto Comunista”, Ed. Verso, NY, 2012
I
Na primavera de 1847, Karl Marx e Frederick Engels concordaram em unir-se à chamada “Liga dos Justos” [Bund der Gerechten], desdobramento da “Liga dos Proscritos” [Bund der Geächteten], que existira antes, sociedade revolucionária secreta formada em Paris nos anos 1830s influenciada pela Revolução Francesa, de trabalhadores alemães – a maioria alfaiates e marceneiros – e ainda constituída, principalmente, de artesãos radicais exilados. A Liga, seduzida pelo “comunismo crítico” dos dois, ofereceu-se para publicar um Manifesto rascunhado por Marx e Engels como sua plataforma política e, também, para modernizar a organização acompanhando aquelas novas orientações. De fato, o movimento foi reorganizado no verão de 1847. Passou a chamar-se “Liga dos Comunistas” [Bund der Kommunisten], comprometida com o objetivo de “derrubar a burguesia”, promover “o governo do proletariado”, por fim “à velha sociedade que repousa sobre contradições de classe [Klassengegensätzen] e estabelecer “uma nova sociedade sem classes ou propriedade privada”. Um segundo congresso da Liga, também realizado em Londres, em novembro-dezembro de 1847, aceitou formalmente os objetivos e os novos estatutos, e convidou Marx e Engels a redigir o novo Manifesto, em que se exporiam os objetivos e políticas da Liga.
Embora ambos, Marx e Engels tenham preparado rascunhos e o documento claramente manifeste pontos de vista comuns, o texto final, quase com certeza, foi redigido por Marx – pressionado duramente pela Comissão Executiva, porque Marx, como outras vezes, praticamente só conseguia concluir seus escritos se pressionado por prazo rigidamente demarcado e relembrado. A ausência virtual de rascunhos sugere que tenha sido redigido rapidamente [i]. O documento resultante, de 23 páginas, intitulado Manifesto of the Communist Party [Manifesto do Partido Comunista] (mais conhecido, a partir de 1872, como O Manifesto Comunista), foi “publicado em fevereiro de 1848”, impresso na sede da Workers’ Educational Association [Associação dos Trabalhadores da Educação] (mais conhecida como Communistischer Arbeiterbildungsverein, que sobreviveu até 1914), na casa n. 46 da Liverpool Street no centro de Londres.
Esse pequeno panfleto é, de longe, a peça mais influente de escritura política desde a Declaração dos Revolucionários Franceses, dos Direitos do Homem e dos Cidadãos. Por sorte, chegou às ruas apenas uma ou duas semanas antes de eclodirem as revoluções de 1848, que se espalharam como fogo em mato seco, de Paris para todo o continente europeu. Embora tivesse horizonte firmemente internacional – a primeira edição anunciava, esperançosa, mas infelizmente erradamente, que se seguiriam edições do Manifesto em inglês, francês, italiano, flamengo e escocês – o documento só teve impacto inicial exclusivamente na Alemanha. Por pequena que fosse a Liga Comunista, teve papel não insignificante na Revolução Alemã, no mínimo através do jornal Neue Rheinische Zeitung [Nova Gazeta Renana] (1848–49), editado por Karl Marx. A primeira edição do Manifesto teve três reimpressões em poucos meses, foi publicada em capítulos no Deutsche Londoner Zeitung, revista, corrigida e reformatada para 30 páginas em abril ou maio de 1848, mas desapareceu de circulação com o fracasso das revoluções de 1848. Quando Marx estabeleceu-se para exílio que seria de toda uma vida, na Inglaterra, em 1849, o Manifesto tornara-se peça suficientemente rara para que Marx cogitasse de reimprimir a Seção 3 (‘Socialistische und kommunistische Literatur’) no último número de sua revista londrina, Neue Rheinische Zeitung, politisch-ökonomische Revue (nov. 1850), que tivera bem poucos leitores.
Nos anos 1850s e início dos 1860s, ninguém preveria que o Manifesto teria futuro glorioso. Uma pequena nova edição foi lançada privadamente em Londres por um impressor alemão emigrado, provavelmente em 1864, e outra edição também pequena em Berlim, em 1866 – a primeira que, de fato, foi realmente publicada na Alemanha. Entre 1848 e 1868, parece não ter havido traduções, além de uma versão sueca, publicada provavelmente no final de 1848, e uma versão em inglês, em 1850, que só é importante para a história bibliográfica do Manifesto porque a tradutora parece ter consultado Marx – ou (dado que ela vivia em Lancashire), mais provavelmente, Engels. Essas duas versões sumiram sem deixar traço. Em meados dos anos 1860s, praticamente já não havia, impressa, sequer uma linha do que Marx escrevera até ali.
O destaque de Marx na Associação Internacional de Trabalhadores [ing. International Working Men’s Association] (a chamada “1ª Internacional”, 1864-72) e a emergência, na Alemanha, de dois importantes partidos da classe trabalhadora, ambos fundados por ex-membros da Liga Comunistas, que o tinha em alta conta, levaram a um ressurgimento do interesse pelo Manifesto, e pelos outros escritos de Marx. Em especial, uma eloquente defesa da Comuna de Paris de 1871 (mais conhecida como A Guerra Civil na França [ing. The Civil War in France) deu a Marx considerável notoriedade na imprensa, como um perigoso líder da subversão internacional, temido pelos governos. Mais especificamente o julgamento por crime de traição dos líderes da Social- Democracia Alemã, Wilhelm Liebknecht, August Bebel e Adolf Hepner em março de 1872, deu ao Manifesto publicidade inesperada. A acusação leu o texto do Manifesto para registro nos autos do julgamento e, assim, deu aos Sociais-Democratas a primeira oportunidade para publicá-lo legalmente, em grande tiragem, como parte dos documentos do processo. Quando já não havia dúvidas de que o documento publicado antes da Revolução de 1848 tinha de ser atualizado e precisava de comentário explicativo, Marx e Engels escreveram o primeiro de uma série de Prefácios, que, desde então, acompanharam, quase sempre, novas edições do Manifesto [ii]. Por impedimentos de lei, o prefácio não pode ser amplamente distribuído naquele momento, mas, de fato, a edição de 1872 (baseada na edição de 1866) tornou-se base para todas as edições subsequentes. Entre 1871 e 1873, surgiram pelo menos nove edições do Manifesto, em seis línguas.
Nos quarenta anos seguintes, o Manifesto conquistou o mundo, levado avante pelo nascimento de novos partidos (socialistas) trabalhistas, nos quais a influência marxista aumentou rapidamente nos anos 1880s. Nenhum daqueles escolheu chamar-se Partido Comunista, até que os russos bolcheviques retornaram à designação original depois da Revolução de Outubro, mas o título Manifesto do Partido Comunista permaneceu inalterado. Já antes da Revolução Russa de 1917 houve várias centenas de edições em cerca de 30 idiomas, inclusive três edições em japonês e uma em chinês. Mesmo assim, a principal região de influência ainda era o centro da Europa, da França a oeste, à Rússia a leste. Não surpreendentemente, o maior número de edições foram em russo (70) além de outras 35, nos idiomas do império czarista – 11 em polonês; sete em iídiche; seis em finlandês; cinco em ucraniano; quatro em georgiano; duas em armênio. Houve 55 edições em alemão a mais, para o Império Habsburgo; outras nove em húngaro e oito em tcheco (mas apenas três edições croatas, uma em eslovaco e uma em esloveno), 34 em inglês (cobrindo também os EUA, onde a primeira tradução apareceu em 1871), 26 em francês e 11 em italiano – a primeira das quais só apareceu em 1889 [iii]. Teve pequeno impacto no sudoeste da Europa – seis edições na Espanha (incluídas as para a América Latina); uma em português. O impacto no sudeste da Europa foi pequeno (sete edições em búlgaro, quatro em sérvio, quatro em romeno, e uma única edição em ladino, publicada, provavelmente, em Salonica). O norte da Europa aparece moderadamente bem representado, com seis edições em holandês, cinco em sueco e duas em norueguês [iv].
Essa distribuição geográfica desigual não reflete só o desenvolvimento desigual do movimento socialista, e da influência de Marx, especificamente diferente de outras ideologias revolucionárias, como o anarquismo. Deve fazer-nos lembrar também de que não havia qualquer correlação forte entre o tamanho e o poder dos partidos social-democratas e trabalhistas, e a circulação do Manifesto. Até 1905, o Partido Social-Democrata Alemão [ing. German Social-Democratic Party (SPD)], com suas centenas de milhares de membros e milhões de eleitores, publicou novas edições do Manifesto que não ultrapassavam 2.000, 3.000 cópias. O Erfurt Programme, programa do Partido de 1891 foi publicado com 120 mil cópias; mas não se editaram mais de 16 mil cópias do Manifesto nos onze anos entre 1895 e 1905, ano em que a circulação do jornal teórico do Partido, Die Neue Zeit, era de 6.400 exemplares [v]. Não se esperava que o membro médio de um partido social-democrático marxista de massa tivesse de ser “aprovado” em “exames” teóricos. Mas as 70 edições na Rússia pré-revolucionária representaram uma combinação de organizações, ilegais durante a maior parte do tempo, cujo número total de membros não pode ter ultrapassado uns poucos milhares. Assim também as 34 edições em inglês foram publicadas por e para as múltiplas seitas marxistas que se distribuíam pelo mundo anglo-saxão, que operavam no flanco esquerdo de quantos partidos socialistas e trabalhistas existiram. Esse era o milieu no qual “a clareza de um camarada podia ser aferida invariavelmente pelo número de anotações em seu Manifesto” [vi]. Em resumo, os leitores do Manifesto, embora fossem parte dos novos e crescentes partidos e movimentos trabalhistas e socialistas, praticamente com certeza não eram amostra representativa do corpo de membros dos partidos. Eram homens com algum especial interesse na teoria subjacente àqueles movimentos. Provavelmente, ainda é assim.
A situação mudou depois da Revolução de Outubro – também nos Partidos Comunistas. Diferentes dos partidos de massa da 2ª Internacional (1889-1914), os da 3ª Internacional (1919-43) esperavam que todos os seus membros compreendessem a – ou, no mínimo, que mostrassem algum conhecimento da – teoria marxista. A dicotomia entre os líderes políticos efetivos, desinteressados de escrever livros, os ‘teóricos’ como Karl Kautsky – conhecido e respeitado como tal, mas não como decisor político prático – desapareceu.
Seguindo Lênin, todos os líderes deviam então ser teóricos importantes, porque todas as decisões políticas eram justificadas por argumentos da teoria marxista – ou, mais provavelmente, por referência à autoridade textual dos “clássicos”: Marx, Engels, Lênin e, na sequência, Stálin. A publicação e distribuição popular de textos de Marx e Engels tornaram-se, portanto, de longe, mais centrais para o movimento do que haviam sido nos dias da 2ª Internacional. Iam de séries de escritos curtos, dos quais o pioneiro parece ter sido provavelmente o alemão Elementarbücher des Kommunismus durante a República de Weimar, e compêndios correspondentemente selecionados de leituras, como os inestimáveis Selected Correspondence of Marx and Engels [Correspondência Selecionada de Marx e Engels], os Selected Works of Marx and Engels [Obras Selecionadas de Marx e Engels] em dois – adiante em três – volumes, e a preparação de suas Obras Selecionadas [Gesamtausgabe]; todas essas publicações patrocinadas pelos ilimitados – para esses objetivos – recursos do Partido Comunista Soviético e, muitas vezes, impressos na União Soviética em vários idiomas.
O Manifesto Comunista foi beneficiado por essa nova situação, por três vias. A circulação sem dúvida aumentou muito. A edição barata publicada em 1932 pelas editoras oficiais dos Partidos Comunistas Americano e Britânico, “centenas de milhares” de cópias, foi descrita como, “provavelmente a maior edição de massa jamais lançada em inglês” [vii]. O título já não era sobrevivência histórica, mas aparecia então ligada diretamente à política corrente. Dado que já havia um Estado que declarava representar a ideologia marxista, o status do Manifesto como texto de ciência política foi reforçado, e, nesses termos, foi admitido nos programas de ensino de universidades, destinado a expandir-se rapidamente depois da 2ª Guerra Mundial; o marxismo para leitores intelectuais encontraria seu público mais entusiasmado nos anos 1960s e 1970s.
A URSS emergiu da 2ª Guerra Mundial como uma das duas superpotências, liderando vasta região de estados comunistas e agregados. Os Partidos Comunistas Ocidentais (com a notável exceção do Partido Alemão) emergiram mais fortes da 2ª GM do que jamais haviam sido ou poderiam ser. Embora a Guerra Fria já estivesse em curso, quando completou cem anos o Manifesto já não era editado exclusivamente por editores comunistas ou marxistas, mas recebia grandes edições de empresas editoras comerciais não políticas, com introduções de intelectuais ilustres. Em resumo, já não era documento clássico marxista; tornara-se documento clássico político.
Assim continua, mesmo depois do fim do comunismo soviético e do declínio dos partidos e movimentos marxistas em muitas partes do mundo. Em Estados sem censura, qualquer pessoa que tenha acesso a uma boa livraria ou a uma boa biblioteca, tem acesso fácil a ele. O objetivo de uma nova edição, em 2012, portanto, não é tanto tornar acessível o texto dessa espantosa obra-prima nem, menos ainda, voltar a um século de debates de doutrina sobre a interpretação ‘correta’ desse documento fundamental do marxismo. O objetivo é, isso sim, lembrar-nos que o Manifesto ainda tem muito a dizer ao mundo nas primeiras décadas do século 21.
II
E o que o Manifesto ainda tem a dizer? É, é claro, documento escrito para um momento particular na história. Parte dele tornou-se obsoleta quase imediatamente – por exemplo, as táticas recomendadas para os Comunistas na Alemanha, que não foram as aplicadas por eles durante a Revolução de 1848 e depois. Outras partes também se tornaram obsoletas, conforme aumentava o tempo que separava o escrito e os leitores. Guizot e Metternich há muito tempo aposentaram-se dos postos de governos-líderes nos livros de história; o Czar já não existe (embora o Papa, sim). E quanto à discussão de “Literatura Socialista e Comunista”, os próprios Marx e Engels admitiram em 1872 já estava fora de moda.
Mais diretamente ao ponto: com o passar do tempo, a linguagem do Manifesto foi deixando de ser a linguagem dos seus leitores. Por exemplo, muito já se disse sobre a frase segundo a qual o avanço da burguesia teria arrancado “uma parte significativa da população à idiotia [1] [Idiotismus] da vida rural” [2]. Mas, embora já ninguém duvide de que Marx naquele momento partilhava o desprezo habitual dos citadinos pelo – tanto quanto a ignorância sobre – o mundo camponês, a frase em alemão, real e analiticamente mais interessante (“dem Idiotismus des Landlebens entrissen”) não fala de “idiotia” [ing. stupidity], mas de “horizontes estreitos” ou “o isolamento, o afastamento da sociedade mais ampla”, no qual viviam as pessoas do campo. A palavra em alemão ecoa o significado de idiotes grego, do qual deriva idiot [ing.] de onde idiocy [ing.]: “pessoa interessada só nos próprios assuntos privados, não nos interesses da comunidade mais ampla”. Ao longo das décadas desde os anos 1840s – e em movimentos cujos membros, diferentes nisso de Marx, não tinham educação clássica – o significado original evaporou e a interpretação desviou-se.
Isso é ainda mais evidente no vocabulário político do Manifesto. Termos como “Stand” [3], “Demokratie” ou “Nação/nacional” ou pouco se aplicam à política do final do século 20 ou já não conservam o significado que tiveram no discurso político ou filosófico dos anos 1840s. Para oferecer um exemplo óbvio: o “Partido Comunista” que apresentava nosso texto como seu Manifesto nada tinha a ver com os partidos da moderna política democrática, ou com os “partidos de vanguarda” do Comunismo Leninista, muito menos com os partidos de Estado de tipo soviético ou chinês. Nem com qualquer dos partidos que existiam. “Partido” ainda significava essencialmente uma tendência ou corrente de opinião ou política. Mas, sim, Marx e Engels reconhecem que, quando encontrou expressão em movimentos de classe, desenvolveu-se um tipo de organização (“diese Organisation der Proletarier zur Klasse, und damit zur politischen Partei”).
Daí que a distinção, na Seção IV, entre “partidos existentes da classe trabalhadora (…) os Cartistas na Inglaterra e os reformadores agrários nos EUA e os outros”, ainda não havia [viii]. Como o texto esclarece, naquele estágio o Partido Comunista de Marx e Engels não era nenhum tipo de organização, nem tentava criar alguma organização – muito menos uma organização com programa específico diferente do de outras organizações [ix]. Vale lembrar que não aparece no corpo do documento, sequer uma vez, sequer o nome da Liga Comunista, a organização para a qual o Manifesto fora redigido.
Mais importante que isso, é claro não só que o Manifesto foi redigido em e para uma específica situação histórica, mas, também que representou uma fase – relativamente imatura – do desenvolvimento do pensamento marxiano. Vê-se bem evidente, nos aspectos econômicos.
Embora Marx tenha começado a estudar economia política seriamente em 1843, só ao chegar a Londres, depois da Revolução de 1848, é que decidiu desenvolver a análise econômica exposta em O Capital, depois que conseguiu ter acesso aos tesouros da Biblioteca do Museu Britânico, no verão de 1850. Assim, quando o Manifesto foi escrito, muito claramente ainda não existia a distinção entre (a) a venda do trabalho pelos proletários aos capitalistas e (b) a venda da força de trabalho – que é essencial na teoria marxiana da mais valia e da exploração, nem essa distinção foi operada no/pelo Manifesto. Nem o Marx maduro aceitaria a ideia de que o preço da mercadoria “trabalho” seria seu custo de produção – i.e, o custo do mínimo fisiologicamente necessário para manter vivo o trabalhador. Em resumo: Marx escreveu o Manifesto mais como comunista ricardiano, que como economista marxiano.
Mesmo assim, embora alertando os leitores de que o Manifesto era documento de valor histórico, desatualizado em vários aspectos, Marx e Engels promoveram e auxiliaram a publicação do texto em 1848 – com mínimas alterações, quase todas pequenas correções para tornar mais clara a exposição original [x]. Mas preservaram, sem qualquer alteração, a análise histórica.
Assim, Marx e Engels reconhecem que o Manifesto permanecia como declaração plena de que a análise ali construída continuava a ser o que distinguia o comunismo de ambos, de todos os demais projetos circulantes para criar uma sociedade melhor. O núcleo daquela específica análise estava na demonstração do desenvolvimento histórico das sociedades, especificamente da sociedade burguesa, que se impôs às sociedades anteriores, revolucionou o mundo e, simultaneamente, criou necessariamente as condições que levariam à superação da própria sociedade burguesa.
Diferente da economia marxiana, a “concepção materialista da história” que embasa essa análise, portanto, já encontrara sua formulação madura em meados dos anos 1840s. E permaneceu substancialmente inalterada nos anos posteriores [xi].
Sob esse ponto de vista – de incorporar a visão histórica – o Manifesto já é documento de definição do marxismo, embora o esboço geral ali apresentado tivesse ainda de ser preenchido com análises mais completas.
III
Como o Manifesto atingirá o leitor que chegue hoje a ele, pela primeira vez? Dificilmente o novo leitor conseguirá resistir à força da convicção apaixonada, da síntese densa, de altíssima concentração, ao vigor intelectual e do estilo desse assombroso panfleto.
Dá a impressão de ter sido escrito numa só explosão de criatividade, em sentenças lapidares que se vão juntando para sempre na memória, como aforismos inesquecíveis que se tornaram conhecidos em todo o mundo, também fora dos limites do debate político: da primeira linha “Um espectro apavora a Europa – o espectro do Comunismo”, até a última “Os proletários nada têm a perder, além das cadeias. E têm um mundo a ganhar!” [xii]
O registro linguístico do alemão do século 19 em que o Manifesto foi escrito também é espantoso: só frases curtas, parágrafos com, no máximo, cinco linhas – regra só quebrada em cinco parágrafos, das mais de 200 linhas do documento, em que o parágrafo tem 15 ou mais linhas. Além de tudo mais que também é, o Manifesto Comunista é retórica política de força quase bíblica. É impossível negar o impressionante poder desse documento, também como literatura [xiii] [4].
Mesmo assim, o que mais perturbará o leitor contemporâneo é o notável diagnóstico que ali lerá, do caráter revolucionário e do impacto que teve, no mundo a “sociedade burguesa”. Não se trata só de Marx ter reconhecido e proclamado as extraordinárias realizações e o dinamismo da sociedade que ele mais detestava – o que muito surpreendeu e perturbou mais de um defensor posterior do capitalismo contra “a ameaça vermelha”. O mais espantoso é que o mundo transformado pelo capitalismo que Marx descreveu em 1848, em passagens de eloquência lacônica, fatal, de cores de chumbo, é perfeitamente reconhecível hoje, no mundo em que vivemos, 150 anos depois doManifesto, a qualquer leitor sensível que o aborde.
Curiosamente, o otimismo político quase delirante, irrealista, de dois jovens revolucionários (28 e 30 anos) é, comprovadamente, a segunda força mais poderosa que ainda emana do Manifesto.
Porque, por mais que o “espectro do Comunismo” apavorasse, sim, os políticos, e por mais que a Europa vivesse período de profunda crise econômica e social, e por mais que estivesse a poucos anos da eclosão da maior revolução política que o continente jamais conhecera, não havia suficientes dados de realidade, naquele momento, para a crença do Manifesto de que se aproximava o momento de derrubar o capitalismo (a revolução burguesa na Alemanha não passaria de prelúdio, a ser seguido, imediatamente pela revolução proletária). Nada disso aconteceu assim. Como hoje sabemos, o capitalismo se posicionava, então, para sua primeira era de avanço triunfalista global.
Dois traços dão ao Manifesto a força que ainda tem.
Primeiro, a visão, mesmo na véspera de um passo gigantesco na marcha triunfal do capitalismo, de que esse modo de produção não é permanente, nem estável, nem seria “o fim da história”; que seria apenas fase temporária da história da humanidade – a qual, como tudo que antes houve, seria superada por tipo novo de sociedade (até que sobreviesse a desgraça comum das duas classes em guerra – e, essa, uma frase raramente relembrada do Manifesto).
Segundo, o reconhecimento, no Manifesto, das tendências necessárias do desenvolvimento histórico do capitalismo. O potencial revolucionário da economia capitalista já era bem evidente – Marx e Engels nunca pretenderam ser os únicos a verem isso. Desde a Revolução Francesa, algumas das tendências que eles observaram já geravam efeitos substanciais – por exemplo, o declínio de “províncias independentes ou frouxamente conectadas, mas com interesses, leis, governos e sistemas de impostos separados, em oposição aos estados-nação, com governo único, sistema de leis unificado, um só interesse nacional de classe, fronteira única e uma só tarifa aduaneira”.
Mesmo assim, ao final da década dos 1840s, o que “a burguesia” conseguira era muito, muito menos do que os milagres a ela atribuídos no Manifesto. Afinal, em 1850 o mundo não produziu mais que 71 mil toneladas de aço (quase 70% disso, na Grã-Bretanha) e construiu apenas 24 mil quilômetros de estradas de ferro (2/3 dos quais na Grã-Bretanha e nos EUA). Não foi difícil para os historiadores mostrar que mesmo na Grã-Bretanha, a Revolução Industrial (termo usado especificamente por Engels a partir de 1844) [xiv] só conseguira criar um país industrial – ou, pelo menos, predominantemente urbano) até a década dos 1850s.
Marx e Engels não descreveram mundo que já tivesse sido transformado pelo capitalismo em 1848: eles previram que o mundo estava logicamente destinado a ser transformado pelo capitalismo.
Hoje, no 3º milênio do calendário ocidental, vivemos em mundo no qual aquela transformação já aconteceu, pelo menos em grande parte. Em vários sentidos, podemos hoje ver mais claramente a força das previsões do Manifesto, do que as muitas gerações que o leram antes de nós, desde a publicação ou os leitores contemporâneos do documento. Porque, até a revolução nos transportes e nas comunicações posteriores à 2ª Guerra Mundial, havia limites poderosos contra a globalização da produção; era fisicamente impossível dar “um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em cada país”. Até a década dos 1970s, a industrialização manteve-se, em vasta medida, confinada às suas regiões de origem. Algumas escolas marxianas puderam até argumentar que o capitalismo, pelo menos em sua modalidade imperialista, longe de ter forçado “todas as nações, à beira da extinção, a adotar o modo burguês de produção”, estaria por sua própria natureza perpetuando – ou, mesmo, criando – o subdesenvolvimento no chamado Terceiro Mundo.
Enquanto um terço da espécie humana viveu sob economias do tipo soviético comunista, pareceu que o capitalismo jamais conseguiria sujeitar todas as nações e obrigá-las a “tornarem-se burguesas, elas também”. Parecia que o capitalismo não teria potência para “criar um mundo à sua própria imagem”.
Antes dos anos 1960s, a declaração do Manifesto, de que o capitalismo traria consigo a destruição da família soava como ideia que jamais se confirmaria. Hoje, estatísticas dos países ocidentais avançados mostram que quase metade de todas as crianças nascem sem pai ou são criadas só pela mãe; que metade de todos os lares nas grandes cidades são lares mantidos por pessoas solteiras.
Em resumo: o que em 1848 poderia soar como retórica revolucionária oca aos ouvidos de leitores desatentos – ou, no máximo, como previsão plausível – pode hoje ser lido como caracterização resumida e precisa do capitalismo que todos vimos em casa e à volta de casa, no final do século 20. De que outro documento escrito nos anos 1840s poder-se-ia dizer o mesmo?
IV
Contudo, se ao final do milênio ainda nos surpreende a precisão com que o Manifesto anteviu o então distante futuro de um capitalismo massivamente globalizado, também chama a atenção o rotundo fracasso de outra previsão do mesmo documento. Salta aos olhos, hoje, que a burguesia não produziu “os seus próprios coveiros: os proletários”. A queda da burguesia e a vitória do proletariado absolutamente não parecem, hoje, “inevitáveis”. O contraste entre as duas metades da análise desenvolvida no Manifesto – a parte que se lê na seção “Burgueses e Proletários” – exige ainda mais explicação hoje, do que quando comemorou o centenário, há 150 anos.
O problema não está na visão de Marx e Engels de um capitalismo que necessariamente transformaria, como transformou, quase todos que têm de ganhar a vida nessa economia de homens e mulheres que dependem, para sobreviver de alugarem-se eles mesmo, em troca de salário ou diárias. Não há dúvidas de que o capitalismo tendia a fazer o que fez, embora os salários de alguns, tecnicamente empregados, como altos gerentes de corporações, impeçam absolutamente de descrevê-los como proletários. O problema não está, tampouco, essencialmente, na crença de que a população trabalhadora seria força de trabalho industrial. Enquanto a Grã-Bretanha manteve-se como caso excepcional, no qual os trabalhadores manuais assalariados eram maioria absoluta da população, o desenvolvimento da produção industrial exigiu entrada massiva e crescente de trabalhadores manuais por bem mais de um século depois do Manifesto. Evidentemente já não é assim no capitalismo moderno de produção de alta tecnologia, que é intensivo em capital, não em mão de obra – desenvolvimento que não foi considerado no Manifesto, embora, em seus estudos econômicos da maturidade o próprio Marx tenha antevisto um desenvolvimento possível, de uma economia que exigisse cada vez menos trabalho, pelo menos numa era pós-capitalista [xv].
Mesmo nas velhas economias industriais do capitalismo, a porcentagem de gente empregada em fábricas de manufatura já não estava crescendo nos anos 1970s, exceto nos EUA, onde o declínio começara um pouco antes. De fato, com pouquíssimas exceções – como Grã-Bretanha, Bélgica e EUA – nos anos 1970s os trabalhadores industriais chegaram a ser a maior parte do total da população ocupada no mundo industrial e em industrialização de todos os tempos.
Seja como for, a derrubada do capitalismo que o Manifesto prevê nunca dependeu de, antes, a maioria da população ter sido proletarizada. A derrubada do capitalismo que o Manifesto prevê decorre de assumir-se que a situação do proletariado na economia capitalista ser tal que, uma vez organizado como movimento de classe necessariamente político, poderia liderar a avançada, arregimentar a insatisfação de outros grupos e, assim, adquirir poder político como “o movimento independente da vasta maioria, para buscar o interesse da vasta maioria”. Assim o proletariado “se levantará para ser a classe liderante da nação, constituído, ele mesmo, como a nação” [xvi].
Dado que o capitalismo ainda não foi derrubado, é fácil dar por fracassada a previsão. Contudo – por altamente improvável que fosse, em 1848 – a política de muitos estados capitalistas europeus seria transformada pelo crescimento de movimentos políticos organizados baseados, eles mesmos, na classe trabalhadora com consciência política – que praticamente não existia, naquele momento, fora da Grã-Bretanha. Os partidos socialistas e trabalhistas emergiram em várias partes do mundo ‘desenvolvido’ nos anos 1880s, convertendo-se em partidos de massa em estados em que se criara a franquia democrática que eles mesmos muito lutaram para criar.
Durante e depois da 1ª Guerra Mundial, quando um ramo dos “partidos proletários” seguiam a via revolucionária dos bolcheviques, outro ramo passou a operar como pilar de sustentação do capitalismo democratizado. O ramo bolchevique já não é muito significativo na Europa, ou os partidos desse tipo foram assimilados à social-democracia. A social-democracia, como entendida nos dias de Bebel ou mesmo de Clement Attlee, luta numa ação de retaguarda. Mas os partidos social-democratas da 2ª Internacional, alguns deles ainda com os nomes originais, ainda são partidos potencialmente de governo em vários países europeus. Embora esses governos sejam menos comuns no início do século 21 do que foram no final do século 20, esses partidos mostraram raro currículo de continuidade como agentes políticos consideráveis, por mais de um século.
Em resumo: o que está errado não é a previsão do Manifesto de que movimentos políticos baseados nos trabalhadores teriam papel central (alguns deles, ainda com “a classe” registrada na denominação, como os partidos trabalhistas e de trabalhadores que há na Grã-Bretanha, Holanda, Noruega e Austrália [5]). Isso, eles tiveram. Mas a frase está errada: “De todas as classes que enfrentam hoje face a face a burguesia, só o proletariado é classe realmente revolucionária”, cujo inevitável destino, implícito na natureza e no desenvolvimento do capitalismo é derrubar a burguesia (“Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”).
Já nos notoriamente “famintos [anos] 40s”, o mecanismo que deveria levar a esse desenlace – a inevitável pauperização [xvii] dos trabalhadores – não era plenamente convincente, a não ser que se assumisse, o que já então era implausível, que o capitalismo enfrentasse naquele momento sua crise final e estivesse a ponto de ser imediatamente derrubado. Era um mecanismo de duas mãos.
Além do efeito de pauperização do movimento dos trabalhadores, viu-se que a burguesia é “incapaz de governar, porque não consegue garantir uma existência ao escravo dentro da escravidão, porque não se pode deixar afundar em estado tal em que a burguesia tem de alimentar o escravo, em vez de ser alimentada por ele”. Ao contrário de gerar o lucro que serve como combustível ao capitalismo, o trabalho drenava o lucro para longe do capitalismo.
Mas – dado o enorme potencial econômico do capitalismo, tão dramaticamente exposto no próprio Manifesto – por que seria inevitável que o capitalismo não garantisse sobrevivência, miserável, que fosse, para a maior parte de sua classe trabalhadora ou, então… por que não poderia manter um sistema de bem-estar social?
A “pauperização”m [em senso estrito. Ver nota xvii] desenvolve-se mais rapidamente que a população e a riqueza? [xviii] O capitalismo tivera longa vida antes. Mas, depois de 1848, foi-se tornando óbvio, muito rapidamente, que, depois, não sobreviveria com a mesma facilidade.
A visão do Manifesto, do desenvolvimento histórico da “sociedade burguesa”, incluindo a classe trabalhadora que ela gerou, não levou necessariamente à derrubada do capitalismo pelo proletariado. Assim, se se abriu caminho para o desenvolvimento do comunismo, porque visão e conclusão não derivam da mesma análise.
O objetivo do comunismo, adotado antes de Marx ter-se tornado “marxista”, é derivado não da análise da natureza e desenvolvimento do capitalismo, mas de um argumento filosófico – na verdade, um argumento escatológico – sobre a natureza e o destino humano. A ideia, fundamental em Marx a partir dali, de que o proletariado era a classe que não se poderia libertar sem, no mesmo passo, libertar a sociedade como um todo, aparece pela primeira vez como “dedução filosófica, mais que como produto da observação” [xix]. Como George Lichtheim escreveu: “o proletariado aparece pela primeira vez nos escritos de Marx como a força social necessária para realizar os objetivos da filosofia alemã” como Marx a viu em 1843-44 [xx].
A “possibilidade positiva da emancipação alemã”, escreveu Marx na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel [6], está:
…na formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de uma classe que seja a dissolução de todas as classes, de uma esfera que possua caráter universal porque os seus sofrimentos são universais, e que não exige uma reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano; de uma esfera que não se oponha a consequências particulares, mas que se oponha totalmente aos pressupostos do sistema político alemão; por fim, de uma esfera que não se pode emancipar a si mesma nem emancipar-se de todas as outras esferas da sociedade sem as emancipar todas – o que é, em suma, a perda total do homem –, portanto, só pode redimir-se a si mesma mediante uma redenção total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado [xxi]. [7]
Nesse tempo, Marx sabia pouco sobre o proletariado, além de que “está vindo a ser na Alemanha só como um resultado do crescente desenvolvimento industrial”, e esse era precisamente seu potencial como força libertadora, uma vez que, diferente das massas pobres da sociedade tradicional, estava nascendo de “uma radical dissolução da sociedade” [8] e, portanto, pela própria existência, “proclama[va] a dissolução da ordem do mundo então existente”. Menos ainda sabia sobre movimentos trabalhistas, embora soubesse muito sobre a história da Revolução Francesa.
Em Engels, Marx encontrou um parceiro que acrescentou à parceria o conceito de “Revolução Industrial”, uma compreensão da dinâmica da economia capitalista como existira realmente na Grã-Bretanha e os rudimentos de uma análise econômica [xxii]. Tudo isso o levou a prever uma futura revolução social, a ser fomentada por uma verdadeira classe trabalhadora sobre a qual, vivendo e trabalhando na Grã-Bretanha no início da década dos 1840s, Engels conhecia muita coisa. As abordagens de Marx e de Engels à questão do “proletariado” e do comunismo complementaram-se uma a outra. O mesmo se pode dizer das respectivas concepções da luta de classes como um motor da história – no caso de Marx largamente derivada do estudo do período da Revolução Francesa; no de Engels, da experiência dos movimentos sociais na Grã-Bretanha pós-napoleônica. Não surpreende que se tenham descoberto, nas palavras de Engels, “de acordo em todos os campos teóricos” [xxiii]. Engels trouxe a Marx os elementos de um modelo que demonstrou a natureza flutuante e autodesestabilizadora das operações da economia capitalista – muito especialmente os rudimentos de uma teoria das crises econômicas [xxiv] – e material empírico sobre o surgimento do movimento da classe operária britânica e o papel revolucionário que poderia ter na Grã-Bretanha.
Nos anos 1840s, a conclusão de que a sociedade estava às vésperas de revolução não era implausível. Nem era implausível a previsão de que a classe operária, embora imatura, a lideraria. Afinal, semanas depois de publicado o Manifesto, um movimento dos operários franceses derrubou a monarquia francesa e deu sinal para revolução à metade da Europa. Mesmo assim, a tendência de o desenvolvimento capitalista gerar proletariado essencialmente revolucionário continua sem poder ser deduzida da análise da natureza do desenvolvimento capitalista. Foi uma possível consequência de seu desenvolvimento, mas não há como demonstrar que seria a única consequência. Tampouco se pode demonstrar que uma derrubada bem-sucedida do capitalismo pelo proletariado necessariamente abre caminho para o desenvolvimento comunista. (O Manifesto só diz que então se iniciaria um processo muito gradual de mudança). [xxv]
A visão de Marx, de um proletariado cuja própria essência o faria destinado a emancipar toda a humanidade e a por fim à sociedade de classes por derrubar o capitalismo representa uma esperança lida em sua análise do capitalismo, mas não é conclusão que aquela análise imponha necessariamente.
Mas a análise que o Manifesto faz do capitalismo poderia sem dúvida levar a – especialmente se se inclui a análise marxiana da concentração econômica, a qual era quase invisível em 1848 – uma conclusão mais geral e menos específica sobre as forças autodestrutivas que se concentram dentro do desenvolvimento capitalista. E que bem pode ter levado a um ponto – e, em 2012, não são só os marxistas a aceitarem isso – no qual:
A moderna sociedade burguesa com suas relações de produção, de troca e de propriedade, uma sociedade que concentrou meios tão gigantescos de produção e de troca, é como o feiticeiro que já não consegue controlar os poderes do próprio mundo, poderes que o próprio feiticeiro convocou (…) As condições do arco da sociedade burguesa são estreitas demais para abarcar a riqueza criada por eles.
É perfeitamente racional e razoável concluir que as “contradições” inerentes a um sistema de mercado baseado em “nenhum nexo entre homem e homem que não seja o egoísmo e o autointeresse mais nus; que só vise ao “pagamento cash”; que um sistema de exploração e de “acumulação infinita” nunca será bem-sucedido; que em algum ponto de uma série de transformações e reestruturação, o desenvolvimento desse sistema que é essencialmente autodesestabilizatório levará a um estado de coisas que já ninguém poderá descrever como “capitalismo”.
Ou – em palavras que Marx escreveria adiante – quando “a centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho afinal atingirem um ponto no qual se tornem incompatíveis com o tegumento [9] capitalista” e aquele “tegumento rompe-se para sempre”. [xxvi] Não importa o nome que se dê ao subsequente estado de coisas. Mas – como os efeitos da explosão do mundo econômico sobre o ambiente-mundo o demonstram – esse estado subsequente de coisas terá necessariamente de sinalizar diferença profunda que o separe da apropriação privada, na direção do gerenciamento social numa escala global.
É extremamente improvável que essa “sociedade pós-capitalista’ corresponda aos modelos tradicionais de socialismo; menos provável ainda que se assemelhe aos socialismos “realmente existentes” da era soviética. Que formas terá e em que medida incorporará os valores humanistas do comunismo de Marx e Engels, dependerá da ação política mediante a qual se promova a mudança. Porque isso, como diz o Manifesto, é central para a modelagem da mudança histórica.
V
Na visão marxiana, não importa como se descreva esse momento histórico no qual “o tegumento rompe-se para sempre”, a política sempre será, aí, elemento essencial.
O Manifesto começou por ser lido, primariamente, como documento da inevitabilidade histórica e, sim, sua força derivou em boa parte da confiança que inspira ao leitor, de que o capitalismo está inevitavelmente destinado a ser enterrado pelos seus próprios coveiros e que hoje – não antes, em qualquer ponto prévio da história – estão presentes as condições para a emancipação. Contudo, apesar das muito disseminadas “conclusões” na direção oposta – e dado que crê que as mudança históricas avançam mediante a ação humana, dos homens fazendo a própria história, o Manifesto não é documento determinista. As covas têm de ser cavadas por, ou mediante, ação humana.
Mas, sim, é possível fazer leitura determinista do argumento. Sugeriu-se que Engels tenderia mais naturalmente ao determinismo, que Marx, com consequências importantes para o desenvolvimento da teoria marxista e do movimento trabalhista marxista depois da morte de Marx. Contudo, apesar de rascunhos anteriores de Engels terem sido citados como prova [xxvii], nada disso pode ser lido diretamente do próprio Manifesto. Quando deixa o campo da análise histórica e entra no presente, é documento que fala de escolhas, de possibilidades políticas, não de probabilidades nem, e muito menos, de certezas. Entre o “agora” e o tempo futuro imprevisível, quando, “no curso do desenvolvimento” haja “uma associação, na qual o livre desenvolvimento de cada é a condição para o livre desenvolvimento de todos”, aí está o campo da ação política.
No núcleo duro do Manifesto está a mudança histórica mediante a práxis social, mediante ação coletiva. O Manifesto vê o desenvolvimento do proletariado como a “organização dos proletários numa classe e, consequentemente, num partido político”. A “conquista do poder político pelo proletariado” (conquistar a democracia) é “o primeiro passo na revolução dos trabalhadores” e o futuro da sociedade depende de outras ações políticas subsequentes do novo regime (como “o proletariado usará sua supremacia política”).
O compromisso com a política é, historicamente, o que distinguiu (a) o socialismo marxiano, (b) os anarquistas e (c) os sucessores desses socialistas que rejeitavam toda ação política e rejeição que o Manifesto especificamente condena. Mesmo antes de Lênin, a teoria marxiana já não era só coisa de “o que a história mostra voltará a acontecer”, mas, também, de “o que tem de ser feito”.
A experiência soviética no século 20 ensinou-nos que pode ser melhor não fazer “o que tem de ser feito” sob condições históricas que, virtualmente, localizam o sucesso além de qualquer alcance possível. A mesma lição se pode aprender também, se se consideram as implicações do Manifesto Comunista.
Nesse caso, o Manifesto – e essa não é a menor de suas notáveis qualidades – é documento que anteviu o fracasso. Esperou, desejante, que o resultado do desenvolvimento capitalista viesse a ser “Uma reconstituição revolucionária da sociedade em termos amplos”, mas, como já vimos, não excluiu a alternativa: “a ruína comum”. Anos depois, outro marxiano [de fato, foi uma marxiana: Rosa Luxemburgo, em 1915 [10]] reformulou a mesma ideia, em termos de escolher entre socialismo e barbárie. Qual das vias prevalecerá é questão que se tem de deixar que o século 21 responda.
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Notas de rodapé (do autor)
[i] Só dois itens desse material foi encontrado – um esquema para a Seção III e uma página de rascunho. Karl Marx–Frederick Engels, Collected Works, vol. 6 (London 1976), pp. 576–7.
[ii] Durante a vida dos fundadores, foram: (1) Prefácio à (segunda) edição alemã, 1872; (2) Prefácio à (segunda) edição russa, 1882 – a primeira tradução ao russo, de Bakunin, aparecera em 1869, compreensivelmente sem aprovação de Marx e Engels; (3) Prefácio à (terceira) edição alemã, 1883; (4) Prefácio à edição francesa, 1888; (5) Prefácio à (quarta) edição alemã, 1890; (6) Prefácio à edição polonesa, 1892; e (7) Prefácio “Aos leitores italianos”, 1893.
[iii] Paolo Favilli, Storia del marxismo italiano. Dalle origini alla grande guerra (Milan 1996), pp. 252-4.
[iv] Confio aqui nos números do muito valioso Bert Andréas, Le Manifeste Communiste de Marx et Engels. Histoire et Bibliographie 1848-1918 (Milan 1963).
[v] Dados dos relatórios anuais do SPD Parteitage. Mas não há dados numéricos relativos a publicações teóricas para 1899 e 1900.
[vi] Robert R. LaMonte, “The New Intellectuals”, New Review II, 1914; cited in Paul Buhle, Marxism in the USA: From 1870 to the Present Day (London 1987), p. 56.
[vii] Hal Draper, The Annotated Communist Manifesto (Center for Socialist History, Berkeley, CA 1984), p. 64.
[viii] O original alemão começa essa sessão discutindo “das Verhältniss der Kommunisten zu den bereits konstituierten Arbeiterparteien … also den Chartisten”, etc. A tradução inglesa oficial de 1887, revista por Engels, atenua o contraste. Formulação mais confiável compararia os “partidos” de trabalhadores já constituídos como os Cartistas, etc., e os que ainda não se constituíram.
[ix] “Os Comunistas não formam partido à parte oposto aos partidos de trabalhadores (…) Não trazem princípios sectários seus, pelos quais modelar e moldar o movimento proletário” (Seção II).
[x] A mais conhecida, destacada por Lênin, foi a observação, no Prefácio de 1872, de que a Comuna de Paris mostrara “que a classe trabalhadora não pode simplesmente tomar de assalto a maquinaria já pronta do estado e fazê-la operar para seus próprios objetivos”. Depois da morte de Marx, Engels acrescentou a nota de rodapé que modifica a primeira sentença da Seção I, para excluir as sociedades pré-históricas do campo universal da luta de classes. Porém, nem Marx nem Engels deram-se o trabalho de comentar ou de modificar as passagens econômicas do documento. Pode-se duvidar de que Marx e Engels realmente considerassem uma total “Umarbeitung oder Ergänzung” [Revisão ou alteração] do Manifesto (Prefácio à edição alemã de 1883), mas não de que a morte de Marx tornou a reescrita impossível.
[xi] Comparem-se (a) a passagem na Seção II do Manifesto (“Será preciso intuição profunda para compreender que as ideias, visões e concepções dos homens, em uma palavra, a consciência humana, muda a cada mudança nas condições de sua existência material, nas suas relações sociais e em sua vida social?”) e (b) a passagem correspondente no Prefácio à Crítica da Economia Política (“Não é a consciência do homem que determina sua existência, mas, ao contrário, é a existência social que determina a consciência”.).
[xii] Embora seja a versão inglesa aprovada por Engels, não é tradução estritamente correta do original: “Mögen die herrschenden Klassen vor einer kom- munistischen Revolution zittern. Die Proletarier haben nichts in ihr [“nela”, i.e. “na Revolução”; eu sublinhei] zu verlieren als ihre Ketten”.
[xiii] Para uma análise estilística, ver S.S. Prawer, Karl Marx and World Literature (Verso, New York 2011), pp. 148-9. Nenhuma das traduções do Manifesto que conheço tem a força literária do texto original, em alemão.
[xiv] In “Die Lage Englands. Das 18. Jahrhundert” (Marx–Engels Werke I, pp. 566–8).
[xv] Ver, por exemplo, a discussão do “capital fixe e o desenvolvimento dos recursos produtivos da sociedade”, nos manuscritos de 1857-58. Collected Works, vol. 29 (1987), pp. 80–99.
[xvi] A frase em alemão “sich zur nationalen Klasse erheben” tem conotações hegelianas que aparecem modificadas na tradução ao inglês autorizada por Engels e modificada, presumivelmente, porque supôs que não seria compreendida pelos leitores, nos anos 1880s.
[xvii] Pauperismo não deve ser lido como sinônimo de “pobreza”. As palavras em alemão, tomadas do inglês, são “Pauper” (‘pessoa pobre, destituída (…) que vive de caridade ou de algum amparo público [Chambers’ Twentieth Century Dictionary]) e “Pauperismus” (pauperismo: estado de quem é ou está pobre) [Idem].
[xviii] Paradoxalmente, argumento vagamente semelhante ao argumento marxiano de 1848 tem sido amplamente usado por governos capitalistas e pregadores do livre-mercado, para provar que economias de estados cujo PIB continua a dobrar a cada uma ou duas décadas irão à bancarrota se não abolirem os sistemas de transferência de renda (estados do bem-estar, etc.), condenados ficar cada vez mais pobres, se os que ganham tiverem de manter os incapazes de ganhar.
[xix] Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism, vol. 1, The Founders (Oxford 1978), p. 130.
[xx] George Lichtheim, Marxism (London 1964), p. 45.
[xxi] Collected Works, vol. 3 (1975), pp. 186-7. Nessa passagem, tenho em geral preferido a tradução de Lichtheim, emMarxism. O termo alemão “Stand”, foi traduzido por “Classe”, o que hoje gera distorções.
[xxii] Publicado como Outlines of a Critique of Political Economy em 1844 (Collected Works, vol. 3, pp. 418-43).
[xxiii] “On the History of the Communist League” (Collected Works, vol. 26, 1990), p. 318.
[xxiv] “Outlines of a Critique” (Collected Works, vol. 3, pp. 433 ff). Parece ter sido derivado de autores britânicos radicais, principalmente John Wade, History of the Middle and Working Classes (London 1835), ao qual Engels refere-se nessa conexão.
[xxv] Aparece ainda mais claramente nas formulações de Engels, em dois escritos que são, de fato, dois rascunhos preliminares do Manifesto, “Draft of a Communist Confession of Faith” (Collected Works, vol. 6, p. 102) e “Principles of Communism” (ibid., p. 350).
[xxvi] De “Historical Tendency of Capitalist Accumulation”, in Capital, vol. I (Collected Works, vol. 35, 1996), p. 750.
[xxvii] Lichtheim, Marxism, pp. 58-60.
Notas dos tradutores
*Em português, pode ser lido em: “Manifesto do Partido Comunista” ou em inglês, ENGELS, Frederick e MARX, Karl, “The Communist Manifesto: A Modern Edition”, Verso Books, New York, 2012 (abril), Introdução de Eric Hobsbawm.
[1]Em português do Brasil, “idiotia” (Dicionário Houaiss) designa uma doença genética . Tradução possível seria, nesse caso, do mesmo vício que Hobsbawm comenta, “idiotice” (Dicionário Houaiss).
[2]Em todos os trechos citados, acompanha-se aqui a edição, em português de Manifesto do Partido Comunista, Lisboa: Editorial Avante, 1997, trad. de José Barata Moura.
[3] Ver nota [xxi], do autor .
[4]Ver também, interessante: Terry Eagleton, 23/3/2011, The Times Literary Supplement , redecastorphoto, em português: A era dos manifestos: “A adolescência como ideologia”
[5] No Brasil também há Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980.
[6]Em português ver em: “Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”.
[7] Loc. cit. pág. 10.
[8] “O proletariado está ainda só a começar a formar-se, como resultado do movimento industrial; pois o que constitui o proletariado não é a pobreza naturalmente existente, mas a pobreza artificialmente produzida, não é a massa do povo mecanicamente oprimida pelo peso da sociedade, mas a massa que provém da desintegração aguda da sociedade e, acima de tudo, da desintegração da classe média” (Loc. cit., pág. 20).
[9] Essa é a tradução de capitalist intertegument que se lê em HOBSBAWM, Eric, Sobre História: ensaios, São Paulo: Companhia das Letras [1998], 2006, trad. Cyd Knipel Moreira, p. 178.
[10]Sobre isso ver em: ROSA LUXEMBURGO: UM COMUNISMO PARA O SÉCULO XXI
Fonte: Rede Castor Photo
Tradução: Vila Vudu