O subdesenvolvimento e o Estado no Brasil
Após a longa crise do desenvolvimentismo ocorrida a partir do início dos anos de 1980, na segunda metade da década passada houve alguma inflexão positiva. Negar os avanços econômicos e sociais recentes é equívoco grotesco. Ao mesmo tempo não é de boa fé e tampouco pertinente varrer da agenda a questão do subdesenvolvimento brasileiro.
As baixas taxas de inflação, o início da conquista de taxas de juros “civilizadas”, a melhoria da qualidade de vida de boa parte da população, a inusitada redução da vulnerabilidade externa via redução da dívida e expansão das reservas internacionais, a recente correção de rota na taxa de câmbio, e as concretas oportunidades abertas para o crescimento econômico colocam o Brasil com boas perspectivas diante de um mundo em crise e em transição.
O desenvolvimentismo que transcorreu, no Brasil, dos anos 1950 ao final dos 1970 foi um processo historicamente determinado por específicas condições econômicas e políticas, de âmbito nacional e internacional. Não adianta querer ressuscita-lo mesmo que movido por nobres intenções.
O contexto político-econômico do Brasil nesse momento do século XXI requer interpretação renovada e o mesmo se aplica às políticas públicas em geral.
Como qualquer pensador digno desse nome sabe, seja de direita ou de esquerda, o “Estado e o Capital são inseparáveis” como já lembrava o célebre historiador Fernand Braudel. Não existe tal coisa como um sistema de mercado autorregulável e mercados “parciais” eficientes desde que livres da qualquer intervenção.
Isso posto e compreendido a questão central do novo padrão de desenvolvimento, que ainda está em gestação em nosso país, é justamente qual Estado “reconstruiremos” e qual o caráter de suas relações com o Capital.
Tanto o Estado quanto a organização capitalista (industrial, bancária, de serviços etc.) no Brasil do século atual transformaram-se em relação ao tempo histórico do desenvolvimentismo. É a partir desta consciência que se pode avançar na formulação e na implementação de alianças e políticas que construam uma senda de desenvolvimento capaz de superar o subdesenvolvimento.
O legado principal que Celso Furtado deixou foi o diagnóstico de que o subdesenvolvimento do Brasil como de outros países é um problema estrutural ligado ao processo capitalista mundial no qual ocupamos posição subordinada e vinculada à expansão dos países desenvolvidos. As condições de subdesenvolvimento reproduzem-se não só internamente como no âmbito das relações internacionais. Ele propôs a bem-dizer que transformações estruturais, política econômica adequada, afirmação cultural, e uma construção nacional-soberana do desenvolvimento abririam o caminho para a superação do subdesenvolvimento. Algo, portanto, extremamente complexo, difícil, ligado à democratização e à participação popular nos processos decisórios que montam as trajetórias da economia.
Mesmo com a industrialização e com crescimento, num período correspondente a mais de meio século, ainda continuamos com os traços do subdesenvolvimento. Evidentemente, cabe aos que vivem o presente e batalham por um futuro diferente pensar e agir a partir da “matriz furtadiana” aplicando-a com a consciência acerca das condições históricas atuais. Em outras palavras, sabendo adaptar aquela perspectiva às novidades que foram surgindo e que continuarão surgindo. Ao invés de congelar, enriquecer aquela matriz de maneira coerente com seu método histórico-estrutural.
Ainda vivemos no Brasil sob condições graves de concentração de renda e de riqueza que implicam miséria, pobreza, desemprego estrutural. São traços marcantes do subdesenvolvimento e os que mais preocupam e angustiam. Em depoimento para o documentário sobre sua vida – O longo amanhecer, do diretor José Mariani – ele fala sobre como é possível que ainda haja no Brasil “um monte de gente pedindo esmola”. E comenta em outro momento do filme – “Quem manda nesse País? Essa taxa de juros…” e fica calado num lamento. Acusa a enorme concentração de poder como causa importante.
Segue válido o questionamento de que não basta ter crescimento econômico, é preciso dar uma certa qualidade, um determinado perfil a esse crescimento para que ele possa conduzir à superação do subdesenvolvimento, para que ele seja um real desenvolvimento nas difíceis condições de um capitalismo globalizado e sempre tensionado entre a acumulação produtiva e a elasticidade na acumulação de riqueza abstrata- em dinheiro e em ativos financeiros. Permanece a questão de ampliarmos a geração brasileira de progresso técnico que se fez presente apenas em poucos casos como a Embraer-aviões – e Petrobrás-petróleo e energia- bem como outras poucas exceções. Aprofundar o processo de democratização, de participação de amplos setores da sociedade nas decisões cruciais. Enfrentar as desigualdades regionais que persistem. Ter um sistema financeiro voltado às políticas de desenvolvimento, fundar de fato a estabilidade monetária, acompanhando a estabilidade de preços.
Não é força de expressão dizer que ainda vivemos sob um capitalismo selvagem apesar dos esforços recentes por “domestica-lo”. Parte disso deve-se à corrosão do Estado, das instâncias públicas, das empresas estatais, o que é consequência da crise dos anos 1980 e da implementação das políticas neoliberais, realizadas desde o início dos anos 1990 e só há pouco tempo e, apenas em parte, em processo de reformulação.
Os exemplos emblemáticos disso são o começo de mudanças nas políticas de juros e de câmbio, a busca de novos formatos nas parcerias entre Estado e empresas privadas, e a consciência de que empresas e bancos públicos só se justificam se utilizados no interior de uma estratégia técnico-produtiva (industrializante) e de extensão dos financiamentos a taxas de juros condizentes com o padrão internacional.
No atual e nos próximos governos a premissa fundamental é uma renovação do Estado no Brasil. Não é uma volta ao Estado do nacional-desenvolvimentismo; não pensemos em retorno impossível ao historicamente determinado no passado.
Pensemos em reorganizar o Estado justamente para enfrentar os problemas mencionados e, simplesmente, porque o dinamismo do mercado em si não poderá resolvê-los. Reestruturar o Estado para as políticas públicas de corte social e para aquelas da infraestrutura econômica. Tem-se que efetuar um diagnóstico profundo de quais despesas públicas devem ser eliminadas e quais devem ser fortalecidas. Há, ao mesmo tempo, desperdícios e carências nos aparatos públicos federais, estaduais e municipais. É preciso um diagnóstico realista – sem preconceitos – e ações de novo tipo. Cortes serão efetuados de um lado, e mais gastos serão efetuados de outro. Sem reforma tributária, isso não será implementado. Com ela, haverá uma base socialmente saudável e justa de recursos para efetuar as despesas correntes e os investimentos compreendidos como necessários.
Então, no pensamento de Celso Furtado como também em Conceição Tavares, enfrentar as desigualdades, iniquidades e desemprego é sinônimo de Planejamento inteligente, democrático e atuação estatal pertinente. Não se trata de mais Estado porque sim. Trata-se de qual deve ser a relação entre Estado e Capital, se o horizonte histórico vigente segue sendo o da sobrevivência do Capitalismo. Precisamos ir atrás dessas condições.
Em poucas palavras, Planejamento e construção da soberania nacional a partir do Estado num contexto de ampla democratização. Defesa das reservas internacionais – em moedas fortes – que o Brasil acumulou e que atingem hoje algo como US$ 300 bilhões. Para tanto, a taxa de câmbio tem que ser administrada para uma posição favorável à competitividade de nossa estrutura produtiva para evitar desindustrialização e problemas de déficits no balanço de pagamentos.
A taxa de investimento global da economia vinha subindo desde 2004, tendo sido atropelada pela crise que bateu aqui no segundo trimestre de 2008, mas da qual já estamos saindo. É vital criar confiança no empresariado para que cresça o investimento privado e ter condições fiscais e tributárias para acelerar o investimento público. Não perder de vista a estabilidade de preços, mas privilegiar doravante as políticas promotoras do desenvolvimento.
Manter e aperfeiçoar a política do atual governo de articular e expandir o raio de ação dos bancos públicos. Induzir a cooperação destes com o sistema bancário privado que está forte e tem que definitivamente participar do financiamento de longo prazo. Como antes observado, partir para uma estratégica reordenação do Estado na qual a dívida pública voltada para viabilizar investimentos públicos seja alongada e financiada a juros civilizados. Manter e acelerar medidas que têm procurado a melhoria da distribuição de renda e se preocupado com o desemprego.
Nada de nacionalismo como xenofobia, isto é, como aversão ao que é estrangeiro. Precisamos de um Projeto Nacional de Desenvolvimento, conduzido com uma participação do capital estrangeiro que esteja atrelada aos objetivos traçados para a Nação. Ainda não temos esse Projeto; o seu esboço tem começado a emergir. Ele está por ser construído.
Hoje, não há desculpa para omissão na construção ampliada desse projeto porque as condições conjunturais da economia brasileira são por demais favoráveis seja do ângulo da inflação, seja quanto às reservas internacionais, ou sob os termos do sistema financeiro público e privado, seja no que tange às condições das empresas líderes produtivas que se mostram reestruturadas, solventes, com capacidade interna de acumulação. E ademais, contamos com as novidades de horizonte de médio e longo prazo – tais como o Pré-Sal, os biocombustíveis e demais possibilidades da biomassa – que sinalizam muitas potencialidades se os programas de exploração do mesmo forem devidamente conduzidos sob a ótica do desenvolvimento.
Agora, nunca é demais relembrar que a construção desse projeto não é do âmbito da tecnocracia, embora a contribuição dos intelectuais e dos técnicos seja relevante. É do âmbito do processo político com P maiúsculo, é do plano do desenrolar histórico. Nem economicismo, nem voluntarismo político.
*José Carlos Braga é professor Titular do Instituto de Economia da Unicamp
Este artigo foi construído a partir de entrevista a IHU On-Line. O material original está disponível na página eletrônica do sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu)