Vou reproduzir aqui trechos dos comentários que rabisquei para uma palestra, mais tarde publicados na revista “Carta Capital”. Bernanke procurou explicar à seleta plateia que, em circunstâncias normais, o Federal Reserve executa a política monetária mediante o manejo da taxa de juro de curto prazo. O propósito é afetar a curva de juros formada no mercado e, portanto, elevar os preços dos ativos.

A crise de 2008, no entanto, nasceu das exuberâncias financeiras e produtivas do capitalismo desenfreado, ou seja, entregue a si mesmo. O superendividamento das famílias foi fomentado pelo elástico crescimento da dívida intrafinanceira e acompanhado da geração de capacidade produtiva excedente nas áreas dinâmicas do planeta. Ainda que nos países centrais a taxa de investimento tenha sido modesta, foi mais do que compensada pela vigorosa expansão da formação de capital fixo nas economias emergentes asiáticas.

A fecundação entre os três movimentos – endividamento das famílias, alavancagem financeira e construção acelerada de capacidade nos emergentes está nas entrelinhas da fala de Bernanke quando ele justifica os quantitative easings 1, 2, e 3. Na ressaca dos excessos, observadores atentos da cena econômica concluíram que não se tratava de uma crise de liquidez senão de insolvência de famílias e bancos, seguida do inevitável mergulho do consumo e do investimento.

Na crise de 2008, ocorreu um colapso “keynesiano” das convenções que comandavam as avaliações dos proprietários e administradores da riqueza. A reversão das expectativas outrora exuberantes derrubou os preços dos ativos reais e financeiros. Os métodos habituais que permitem avaliar a relação risco/rendimento dos ativos sucumbiram diante da obscuridade total que paralisou os mercados de dívida e de direitos de propriedade, bloqueando os novos fluxos de gasto.

Na posteridade do colapso, a tentativa de redução do endividamento e dos gastos de empresas e famílias em busca da liquidez e do reequilíbrio patrimonial – uma decisão “racional” do ponto de vista microeconômico – tornou-se danosa para o conjunto da economia, pois levou à ulterior deterioração dos balanços, aí incluída a relação dívida/PIB dos governos empenhados em impedir a depressão.

Em tais circunstâncias, diz Bernanke, não há outra solução senão abrir o balanço do Banco Central para impedir a ruptura das relações débito-crédito. A compra pelo Fed de securities de emissão publica e privada cumpriu seu papel ao manter baixas as taxas de juro.

O propósito do QE é recuperar os preços dos ativos, particularmente dos imóveis residenciais, uma tentativa de reanimar o consumo mediante um “efeito-riqueza” em tempos de penúria. Desgraçadamente, os esforços da política monetária foram contidos pelos consumidores empenhados em reduzir as dívidas e pelas famílias assustadas com as perspectivas do mercado de trabalho.

A liquidez injetada pelo Quantitative Easing empoça nas reservas dos bancos e adormece no caixa das empresas. Atoladas em capacidade ociosa, as empresas estão reticentes em mobilizar seu aparato produtivo diante do consumo claudicante e do mortiço animal spirits dos parceiros-competidores. A taça transbordante do “relaxamento monetário” não derramou o líquido nos lábios sedentos do desemprego e da capacidade ociosa. A generosa liquidez do estímulo quantitativo vazou para as gargantas insaciáveis da “armadilha da liquidez”.

Nos Estados Unidos, as expectativas de bancos, empresas e famílias são típicas de um quadro depressivo. Trata-se de uma depressão não realizada, apenas bloqueada pelas intervenções do Banco Central. Bernanke adverte que na atual conjuntura, a política monetária não pode mais do que faz e a política fiscal faz menos do que pode. Quanto à inflação, as sobras de capacidade global e os mercados de trabalho frouxos não recomendam essa aposta.

Em meio às ousadias da política monetária e à tibieza da política fiscal, o ex-editor do “Times” de Londres, hoje colunista da “Reuters”, Anatole Kaletsky, sugeriu que a grana do quantitative easing fosse depositada diretamente nas contas das famílias consumidoras e das empresas dispostas a dar emprego aos trabalhadores. “Imagine”, diz Kaletsky, “se o Federal Reserve decidir usar os US$ 40 bilhões – agora destinados ao mercado de títulos – para depositar todo o mês US$ 130 nas contas das famílias e das empresas até que a economia se aproxime do pleno emprego… Caiu o tabu que impedia os bancos centrais de enfrentar a questão do emprego: a adoção de políticas monetária radicais é uma questão de tempo.”

A proposta de Kaletsky equivale à sugestão de Keynes que recomendava, em situações depressivas como a atual, a contratação de trabalhadores que receberiam salários para abrir e tapar buracos. O gasto com os salários dos trabalhadores “improdutivos” deveria inflar a renda nominal e alentar diretamente o consumo, colocando em movimento os recursos “livres” de capital e trabalho, sem agregar nova capacidade à já instalada e excessiva.

A sugestão radical escandalizou os bem pensantes. Seja como for, os resultados do Quantitative Easing e a argumentação de Bernanke dão azo a propostas como a formulada por Kaletsky. Na verdade ela revela um conhecimento profundo da estrutura monetário-financeira da moderna economia capitalista de mercado e do modo de integração da moeda no circuito gasto-produção-rendimentos.

No entanto, se não peca pela lógica estritamente econômica, a proposta esbarra nas relações de apropriação da renda e da riqueza no capitalismo de todos os tempos. Essas relações impõem limites às escolhas das sociedades e dos governos, ainda que as condições “técnicas” para a sua adoção tenham sido criadas pela própria “socialização” capitalista das formas de controle da riqueza.

* Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

Fonte: Valor