Na primeira parte deste artigo tratamos de desvendar a relação conflituosa existente entre a democracia política e a burguesia. Mas, se quisermos realizar a contento esse nosso objetivo, devemos, em primeiro lugar, nos desembaraçar de uma das ideias-força que vem aprisionando o nosso pensamento e se transformando num verdadeiro mito político moderno: aquela que busca colocar um sinal de igualdade entre democracia e liberalismo.

O intelectual comunista italiano Domenico Losurdo, no seu instigante livro Bonapartismo ou democracia, afirmou que a ideologia política dominante (liberal-burguesa) tem como centro a tese segundo a qual “o liberalismo teria gradualmente se transformado, por um impulso puramente interno, em democracia, e numa democracia cada vez mais ampla e mais rica”. Ao lado dessa falácia, construiu-se outra: a afirmação de que “a democracia e o livre mercado capitalista se identificam”. Liberalismo e democracia seriam, assim, como irmãos siameses.

Conclusões incorretas sob todos os pontos de vistas, sendo mais uma prova insofismável da justeza de uma das teses centrais do marxismo: “as ideais dominantes são as ideias das classes dominantes” e a classe dominante na atualidade é a burguesia e sua ideologia o liberalismo, com seus diversos matizes.

A ideologia burguesa procura encobrir o fato de que existiu – e ainda existe – uma tensão latente – às vezes explosiva – entre o liberalismo e a democracia. Como escreveu João Quartim de Moraes: “nunca se repetirá bastante que entre o princípio democrático da soberania popular e o princípio liberal do primado dos interesses individuais sobre os interesses sociais há uma contradição que pode ser institucionalmente administrada (…), mas não pode ser suprimida em seu fundamento (…). O compromisso dos detentores dos privilégios econômicos com a democracia nunca ultrapassa, evidentemente, os limites da ordem burguesa. Eles nunca se inclinam diante de um governo eleito pelo sufrágio universal”. Se à burguesia procurou, durante a segunda metade do século 20, amalgamar os dois termos (liberalismo e democracia), aos comunistas cabe dissociá-los.

Vejamos, então, como a burguesia e seus ideólogos liberais encararam a demanda de ampliação da democracia política para o conjunto da população, especialmente como se portaram em relação à principal bandeira democrática do século 19: o sufrágio universal.

Os liberais burgueses diante da democracia: o sufrágio universal

A reivindicação do sufrágio popular, ainda que apenas masculino, é bastante antiga. Durante a Revolução Puritana da Inglaterra (1640-1649) esta bandeira esteve nas mãos das correntes mais radicais, como os niveladores. Ficaram famosos os debates ocorridos entre os democrata-radicais e os chefes revolucionários proto-burgueses, como Cromwell, em 1647. Diante da recusa destes últimos em atender à sua reivindicação de direito ao voto, o líder popular Edward Sexby respondeu: “Há muitos milhares de nós, soldados, que arriscamos as nossas vidas (…). Mas, parece que, agora, a não ser se um homem possua propriedades fixas neste reino, não tem direitos nele. Não sei como pudemos ser tão enganados. Se não temos direitos, então fomos soldados mercenários”, pois lutaram a soldo por causa alheia.

O programa dos niveladores, muito avançado para sua época, incluía não apenas o sufrágio universal, mas eleições parlamentares anuais (os deputados que não representassem corretamente seus eleitores poderiam ser substituídos mais rapidamente); proibição de reeleição; eleições diretas para os magistrados e juízes. Tudo visando a impedir a formação de uma casta burocrática apartada da sociedade. Alguns chegaram mesmo a defender o voto feminino. No entanto, naquele momento, a corrente democrática popular sofreria a sua primeira grande derrota para o liberalismo que começava a surgir.

A segunda revolução inglesa – denominada de Gloriosa – mais uma vez colocou frente a frente o parlamento e o rei, o liberalismo e o absolutismo. Novamente, os últimos foram derrotados pelos primeiros. O triunfo do parlamentarismo e do jovem liberalismo expressou-se na aprovação da Carta dos Direitos, em 1689. Ela definiu que o poder político deveria, a partir de então, ser “democraticamente” compartilhado, mas apenas entre os grandes proprietários de terra. Surgia assim monarquia parlamentar e constitucional inglesa.

Naqueles “dias gloriosos”, alguém chegou a afirmar: “Quanto mais o povo participar no governo de menos liberdade, civil ou religiosa, a nação gozará”. Para aqueles revolucionários ingleses, liberdade não rimava com democracia. A democracia era tida como sinônimo de despotismo das massas desapossadas. Assim, o liberalismo foi a alternativa aristocrático-burguesa às aspirações democráticas das camadas populares que ingressavam trepidantes na cena política.

O grande teórico dessa segunda revolução foi John Locke (1632-1704). Ele foi um dos primeiros pensadores modernos a refutar as teses monarco-absolutistas – que pregavam o direito divino dos reis – e a defender que os homens possuíam direitos naturais e inalienáveis: como o direito a vida, à liberdade e à propriedade. Locke soube como ninguém sintetizar o grande objetivo do Estado liberal em formação: “todo governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade”. Era, justamente, para garantir esse supremo objetivo que os não-proprietários deveriam ser excluídos do direito ao voto.

Na segunda década do século 19, o movimento pelo sufrágio universal voltou a ganhar corpo na Inglaterra, passando a incluir a burguesia industrial, a pequena-burguesia e o jovem proletariado. Em 1832, impressionado com a revolução liberal ocorrida dois anos antes na França, o governo conservador apresentou uma lei estendendo o direito de voto à classe burguesa e mantendo a exclusão dos trabalhadores manuais. Assim, a ampla frente democrática se desfez com o abandono da burguesia – já contemplada pela reforma eleitoral – e sua aproximação da aristocracia latifundiária.

Contudo, precisou de apenas alguns anos para os proletários retomarem a luta. Em 1837, eles elaboraram uma pauta de reivindicações políticas que se expressou numa Carta ao parlamento. O programa dos “cartistas”, como se tornaram conhecidos, possuía seis pontos: 1º Instituição do sufrágio universal; 2º igualdade dos distritos eleitorais; 3º supressão do censo (necessidade de certo nível de propriedade) exigido dos eleitores e candidatos ao Parlamento; 4º eleições anuais; 5º voto secreto; 6º remuneração aos membros do Parlamento. O cartismo rapidamente se transformou num amplo e combativo movimento de massas. E, em 1842, chegou a realizar uma greve geral em defesa de sua plataforma.

O movimento não foi vitorioso, pois não conquistou suas principais reivindicações. Porém, os resultados “colaterais” daquela grande mobilização cívico-operária foram significativos. Entre eles se encontram: a conquista da primeira lei de proteção ao trabalho infantil (1833), a primeira lei relativa ao trabalho das mulheres e das crianças nas fábricas (1842), a lei da jornada de dez horas (1847), entre outras. Ao longo do século 19 a burguesia e seus ideólogos liberais continuaram firmes no combate ao sufrágio universal.

O inglês John Stuart Mill (1806-1873) é considerado um homem avançado e até progressista para sua época. Foi um dos primeiros liberais a advogar o voto feminino, a legislação social, a reforma da educação, e a flertar com certo tipo de socialismo não-proletário. Mesmo ele não pode ser definido, sem problemas, como um verdadeiro democrata.

Não obstante, Stuart Mill chegou a afirmar: “é importante que as assembleias que votam os impostos gerais ou locais sejam eleitas exclusivamente por aqueles que pagam uma parte desses impostos. Aqueles que não pagam impostos, dispondo com os seus votos do direito alheio, têm todas as razões para serem pródigos e nenhuma para serem frugais (…). Como se sabe, isto provocou em algumas grandes cidades dos Estados Unidos a elevação dos impostos locais a uma cifra exorbitante, sustentada inteiramente pelas classes ricas”. Contra esse perigo, que ameaçava as “pobres classes ricas”, defendeu que os direitos políticos (votar e ser votado) fossem proporcionais aos impostos pagos pelos cidadãos – que, por sua vez, tinha relação direta com o nível da propriedade possuída. No limite, os que não tivessem propriedades e não pagassem impostos deveriam ser proibidos de votar.

Este liberal inglês foi também um dos maiores – e mais competentes – defensores do voto qualificado ou plural. Escreveu uma vez: “Considero inadmissível que uma pessoa participe do sufrágio sem saber ler, escrever e, acrescentaria, sem possuir os primeiros rudimentos de aritmética”. Em outra passagem afirmou: “Um empregador é mais inteligente do que um operário por ser necessário que ele trabalhe com o cérebro e não só com os músculos (…). Um banqueiro e um comerciante serão, provavelmente, mais inteligentes do que um lojista, porque têm interesses mais amplos e mais complexos a seguir (…). Nestas condições, poder-se-iam atribuir dois ou três votos a todas as pessoas que exercessem uma destas funções de maior relevo”. Como diz Losurdo: “o filósofo que teve o mérito de questionar e condenar a exclusão das mulheres da esfera dos direitos políticos não conseguiu superar a lógica da discriminação censitária”.

As reformas eleitorais – ocorridas em 1832, 1867 e 1884 – ampliaram gradualmente o direito ao voto. No entanto, até o início do século 20 continuou a existir o voto plural na Inglaterra. Somente em 1928 estabeleceu-se o princípio democrático de “um adulto, um voto” e, em 1948, foram finalmente extintos os últimos redutos de voto qualificado – os dos colégios eleitorais das universidades e centro de negócios. Assim, a pátria-mãe do liberalismo só instituiria plenamente o sufrágio universal e direto em meados do século 20.

Os Estados Unidos e a democracia restrita

Os mesmos preconceitos liberal-burgueses contra a democracia política, entendida como soberania popular, podem ser notados durante a revolução (ou Guerra de Independência) estadunidense – embora, em vários sentidos, esta tenha sido mais avançada do que as duas “revoluções liberais” na Inglaterra. Afinal, ela ocorreu quase cem anos depois dos debates que envolveram os niveladores.
Parcela importante dos membros da Convenção da Filadélfia (1787), convocada para a elaboração da primeira Constituição dos Estados Unidos, era composta por grandes proprietários de terras e de escravos. Na época, na maior parte dos estados, só podiam votar os homens livres e proprietários, pertencentes a algumas das igrejas protestantes e que descendessem dos primeiros colonizadores anglo-saxões. Assim, dos 3,5 milhões de habitantes existentes apenas 160 mil estavam em condições de votar.

Para Alexander Hamilton (1755-1804) – e a maioria dos líderes da jovem República norte-americana –, os trabalhadores manuais assalariados não poderiam votar, pois, como as mulheres e as crianças, não tinham autonomia suficiente para isso. “Todas as comunidades dividem-se em poucos e muitos. Os primeiros são os ricos e bem-nascidos, e os outros compõem a massa do povo que poucas vezes sabe julgar o que lhe convém”, escreveu. Essa ideia de que a autonomia – entendida como “liberdade” em relação a um emprego remunerado ou alguma forma de dependência pessoal – era a condição essencial da “cidadania” estava presente em pensadores liberais como Kant. Tal pensamento era hegemônico entre os liberais da primeira metade do século 19.

Dentro dessa mesma lógica elitista, James Madison (1751-1836), que seria o quarto presidente dos EUA, afirmou: “Um aumento da população aumentará necessariamente a proporção daqueles que sofrem os embates da vida, desejando em segredo melhor repartição de suas bênçãos. É possível que com o tempo estes superem os que se encontram bem situados economicamente. De acordo com as leis do sufrágio, o poder passará às mãos dos desapossados. Neste país, não tem sido aceito qualquer apelo referente à distribuição de terra, embora já tenham aparecido sintomas de um espírito perturbador (…) em algumas regiões, que avisam o perigo futuro. E como vamos defender-mos dele, baseando-nos em princípios republicanos? Como vamos prever o perigo, em todos os casos de alianças interessadas em oprimir a minoria a ser resguardada por nós?”.

Em outro trecho levantou a mesma preocupação e chegou à seguinte conclusão: “se as eleições fossem abertas a todas as classes do povo, a propriedade fundiária não seria mais segura. Logo seria introduzida uma lei agrária”. Naquelas condições, a lei agrária era um sinônimo de comunismo. Esses revolucionários proto-burgueses consideravam o povo uma turba pronta a tomar de assalto a “boa sociedade” e implantar o “despotismo da maioria”, mais tarde denominado comunismo.

Os revolucionários norte-americanos tinham clara sua posição de superioridade sobre as mulheres e pretendiam conservá-la a qualquer preço. Diante da reivindicação de direitos políticos feita por sua própria esposa, o líder da Independência John Quincy Adams afirmou: “Estejam certas, nós somos suficientemente lúcidos para não abrir mão do nosso sistema masculino”. A jovem república norte-americana havia sido criada para o gozo exclusivo dos homens proprietários e de pele branca.

Como contrapeso a uma possível influência negativa do sufrágio popular, foi criado o Senado federal eleito indiretamente pelas assembleias estaduais. Por segurança, ainda seria constituída uma Suprema Corte, cujo objetivo seria zelar para que a “ordem” não pudesse ser ameaçada pelas decisões das casas legislativas. Por isso mesmo a magna corte foi denominada de “guardiã da propriedade contra o poder do número”. Aqueles homens – os pais da pátria – criaram uma armadura institucional sólida e complexa visando a proteger não os interesses da maioria e sim de uma minoria: os grandes proprietários.

Alexis de Tocqueville, um aristocrata francês e admirador da “democracia americana”, deixou-nos suas impressões sobre o Senado estadunidense, em contraposição à Câmara dos Deputados. Escreveu ele: “De onde deriva este contraste bizarro? A assembleia reúne elementos tão vulgares enquanto a segunda parece ter o monopólio dos talentos e da cultura? (…) De onde provém, pois, uma diferença tão grande? Só vejo um fato capaz de explicar isto: a eleição da Câmara dos Representantes é direta; a do Senado procede através de dois graus (…). É fácil entrever, no futuro, um momento em que as repúblicas americanas serão levadas a aumentar a aplicação do duplo grau no seu sistema eleitoral; de outro modo, perder-se-ão miseravelmente entre os escolhos da democracia”. Segundo Tocqueville – e todos os liberais de seu tempo –, a boa “democracia” deveria prescindir daquilo que alguns autores denominaram “soberania popular”. A grande meta da engenharia institucional liberal-conservadora era construir uma democracia sem povo. No Sul dos Estados Unidos, símbolo da democracia mais avançada na primeira metade do século 19, ainda existia escravos e mesmo nos estados “livres” do Norte, os negros corriam sérios riscos de vida (ou de morte) se quisessem exercer o seu direito elementar ao voto. Os índios, vítimas de um verdadeiro genocídio, também não poderiam ser incluídos no rol dos cidadãos. A mesma coisa em relação às mulheres e a grande parte dos imigrantes.

Apesar disso, Tocqueville não se intimidou em dizer a seus leitores europeus que, nos Estados Unidos, eles poderiam ver “um povo cujas condições são mais iguais até que entre nós; em que a ordem social, os costumes, as leis, tudo é democrático; em que tudo emana do povo (…) (e) cada indivíduo goza de uma independência mais inteira, de uma liberdade maior do que em qualquer outro tempo ou qualquer outra parte da Terra”. Como vimos acima, isso só seria verdadeiro se forem excluídos os negros, os índios, as mulheres, os não-cristãos e os estrangeiros.

Após a sangrenta Guerra da Secessão (1861-1865), todos os negros adquiriram formalmente os direitos políticos – ou seja, podiam votar e ser votados. Mas, antes mesmo da chegada do século 20, eles já tinham perdido todos esses direitos nos estados sulinos e mesmo em alguns estados nortistas.

Esse verdadeiro assalto (ou estupro) à democracia foi feito à luz do dia – sob a égide da constituição mais liberal da época – e de diversas maneiras. A principal delas foi a interdição do direito do voto àqueles que não soubessem ler e escrever – situação na qual se incluía a maioria dos ex-escravos. Caberia ainda a uma junta de proprietários brancos decidir se o nível de conhecimento do cidadão lhe daria condição de votar. Raríssimos negros conseguiam passar pelos rigorosos testes, que envolviam a capacidade de “interpretar” as escrituras sagradas e a própria Constituição norte-americana.

Pela nova legislação racista, destas obrigações vexatórias ficavam excluídos os que já tinham direito de voto antes da Abolição da escravidão e seus filhos e netos, mesmo que não soubessem ler e escrever. Talvez esta tenha sido a legislação eleitoral mais casuística já criada num grande país capitalista. Por décadas, poucos políticos liberais burgueses questionaram tais leis. Esta tarefa coube às entidades de direitos civis negras e aos comunistas dos Estados Unidos, sempre perseguidos e acusados de serem contra a democracia.

Repetimos: se ainda quisermos falar de democracia nos Estados Unidos do século 19 e início do século 20 devemos sempre lembrar que ela era bastante limitada – restrita aos homens brancos, cristãos e que possuíam propriedades. Portanto, uma democracia, fundamentalmente, antidemocrática.

A burguesia contra o sufrágio universal na França

Na parte anterior deste ensaio tratamos da relação contraditória entre a burguesia (e seus ideólogos liberais) e a democracia política na Inglaterra e nos Estados Unidos. Agora tratamos de como esse mesmo processo se deu na França, considerada a pátria da revolução nos séculos 18 e 19 – país no qual as ideias liberais e democráticas mais se desenvolveram e se chocaram.

A Revolução Francesa, iniciada em 1789, e sua primeira Constituição, também não instauraram o sufrágio universal. Este só pôde vir à luz no bojo da radicalização do processo revolucionário, sendo sancionado pela Constituição jacobina de 1793. Contraditoriamente, o sufrágio universal, a ditadura do comitê de salvação pública e a guilhotina foram contemporâneos e partes de um mesmo e único processo. Curiosamente, juntamente com o fim do voto censitário, os jacobinos estabeleceram o imposto progressivo sobre a propriedade e a renda. Mas os duros embates com a contrarrevolução dentro e fora do país impediram que o direito popular ao voto pudesse ser exercido plenamente.

A vitória da reação – através do chamado Termidor – pôs fim aos dois atentados à “liberdade de propriedade”: o sufrágio universal e o imposto progressivo. Para os liberais burgueses, as duas conquistas populares pareciam caminhar juntas – uma conduziria à outra e as duas ao comunismo. O liberal conservador Boissy d’Anglas declarou-se contrário ao direito de voto aos não-proprietários, pois através dele poderiam ser estabelecidos impostos exorbitantes que colocariam em xeque o direito de propriedade, o supremo direito reconhecido pelo liberalismo. Sem qualquer receio de cair no ridículo, outro liberal francês, Benjamim Constant (1767-1830), se levantou contra os “privilégios” fiscais dados aos miseráveis pelos jacobinos. Isso em nome da igualdade de direitos. Uma igualdade, ainda que formal, não reconhecida pelos liberal-conservadores era: um indivíduo, um voto.

Como ocorria na Inglaterra e nos Estados Unidos, tendo por base a defesa da ordem e da propriedade privada, os liberais franceses defendiam que o direito de eleger e ser eleito deveria ser monopólio dos proprietários. Segundo eles, a universalização do direito ao voto poderia colocar em risco a ordem econômica e social (capitalista), que estava se impondo com muitas dificuldades.

Depois do breve retorno girondino, e da instituição de uma República liberal, seguiram-se o Diretório, o Consulado, o governo imperial de Napoleão Bonaparte. Com a derrota definitiva do imperador em Waterloo, seguiu-se a restauração monárquica. O relógio da história, pelo menos na França, parecia andar para trás. Somente uma nova revolução poderia colocar as coisas nos seus devidos eixos.

A revolução de junho de 1830, que depôs os Bourboun e colocou Luís Felipe no trono, apesar da participação popular, não trouxe de volta o sufrágio universal jacobino e sim o sufrágio censitário dos liberais, embora representasse um avanço em relação ao regime deposto.

Benjamim Constant, novamente ele, traduzindo o pensamento da época, escreveu: “o escopo necessário dos não-proprietários é chegar à propriedade: eles empregarão para este escopo todos os meios que lhes forem dados. Se à liberdade de ofício e de trabalho, que lhes é devida, acrescentarem-se os direitos políticos, que não lhe são devidos, estes direitos nas mãos da maioria servirão infalivelmente para invadir a propriedade”.

1848 – República liberal parlamentar x República democrática social

Na França precisar-se-ia de outra revolução – ainda mais radical – para que o sufrágio universal pudesse, finalmente, ser implantado. A partir de 1847 a oposição se unificou e mobilizou-se em torno da bandeira de uma reforma eleitoral democrática. Essas agitações, impulsionadas pelo proletariado parisiense, deram origem à Revolução de fevereiro de 1848.

A forte participação popular impediu a conciliação pelo alto, garantiu a proclamação da República e fez com que se tornasse bastante difícil negar os direitos políticos aos trabalhadores. As bandeiras democráticas, novamente, estavam nas mãos do povo de Paris e não nas da burguesia.

O novo governo revolucionário foi composto por republicanos burgueses, republicanos pequeno-burgueses e por dois membros de uma minoria socialista reformista: o operário metalúrgico Albert e Louis Blanc. Este era um fato inédito na história mundial: pela primeira vez, operários e socialistas participavam de um governo nos marcos do capitalismo.

A hegemonia daquele processo coube aos republicanos burgueses. Eles buscaram neutralizar as reivindicações dos operários que exigiam uma República social assentada no direito à vida e ao trabalho. O seu programa máximo era a instauração de uma democracia representativa baseada no sufrágio universal. Pelo contrário, este era o programa mínimo dos operários socialistas que consideravam o sufrágio universal como o melhor meio para se chegar à tão sonhada República do Trabalho.

O programa máximo burguês foi posto em prática com a proclamação da República e convocação das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. A conclamação do novo governo ao povo francês é bastante emblemática: “A lei eleitoral provisória decretada por nós é a mais ampla que qualquer povo da terra jamais exigiu para o exercício do mais elevado direito do homem e de sua soberania. O direito eleitoral pertence a todos, sem exceção. Depois dessa lei já não existe na França nenhum proletário. Todo francês adulto é um cidadão político, todo cidadão é um eleitor. O direito é exatamente igual para todos”. Sintomaticamente o proletariado aparece aqui como uma categoria político-jurídica, que desapareceria nos marcos do processo de universalização dos direitos políticos. A luta de classe, para os republicanos burgueses e pequeno-burgueses, era apenas um mal-entendido surgido na época do domínio dos Bouboun e dos Orleans.

Além do sufrágio universal masculino, os trabalhadores obtiveram liberdade de imprensa, o direito de greve e de associação. Conquistaram a jornada de trabalho de 10 horas em Paris e de 12 horas nas províncias. Nenhum povo havia desfrutado, até então, de tamanha liberdade. Proclamou-se o “direito ao trabalho” e instituíram-se as Oficinas Nacionais, que abrigavam os operários desempregados. Elas chegaram a empregar 100 mil trabalhadores, minimizando a miséria. A República Social (e antiliberal) parecia estar se transformando numa realidade.

As Oficinas Nacionais representavam um grande inconveniente para a burguesia, que tinha interesse na existência de um exército industrial de reserva para pressionar os operários empregados, criando melhores condições para reduzir-lhes os salários e aumentar a jornada de trabalho. A Revolução tinha ido longe demais e a burguesia se preparou avidamente para um confronto eminente. Ou melhor, a burguesia preparou e impôs a guerra civil à Paris proletária e revolucionária.

Para subsidiar os novos direitos dos trabalhadores urbanos, o governo republicano determinou o aumento de impostos para os camponeses. Estes representavam a grande maioria da população francesa. Desse modo, a contrarrevolução ganhou a base social necessária visando a implementar seus planos golpistas. A grande burguesia, que antes apoiara reticente a Revolução de fevereiro e a República, agora dava as mãos para a reação monárquica e procurava jogar as massas camponesas, politicamente atrasadas, contra os operários e o próprio regime republicano.

Irônica – ou tragicamente – o primeiro confronto político entre a revolução e a contrarrevolução se deu em torno da marcação da primeira eleição (sob o sufrágio universal) que escolheria os deputados constituintes. Os socialistas e reformistas pequeno-burgueses lutaram para adiá-la e os republicanos conservadores e monarquistas para mantê-la, buscando se beneficiar do grande descontentamento predominante no campo após a decretação do aumento dos impostos. O resultado não poderia ser mais desastroso: o pleito foi mantido e a direita teve uma votação estrondosa nos distritos rurais.

A contrarrevolução burguesa e os retrocessos da democracia

A França profunda votou pela contrarrevolução. Dos 900 deputados eleitos apenas 100 eram republicanos pequeno-burgueses. Os monarquistas das diversas tendências elegeram 300 deputados – ⅓ da Constituinte dita republicana. A maioria ainda era representada pelos republicanos burgueses já em franca decadência.

Os primeiros sacrificados da nova conjuntura formada após a eleição foram os dois ministros “socialistas”, Louis Blanc e Albert. Eles passaram a exercer funções numa “comissão especial” para discutir a legislação social que se reuniria no Palácio de Luxemburgo, longe do poder real. Ledru-Rollim, principal liderança política dos republicanos pequeno-burgueses, perdeu o importante cargo de ministro do Interior, responsável pela segurança do Estado.

Aproveitando-se de uma manifestação operária, ocorrida em 15 de maio, a assembleia pôs fim à “comissão especial do trabalho”, presidida por Blanc. O último ato de provocação foi o fechamento das Oficinas Nacionais e a demissão de milhares de trabalhadores. A revolta e o desespero criaram o caldo cultural da revolta popular que novamente sacudiria Paris.

No dia 23 de junho começou a insurreição nos bairros operários. A comissão executiva de maioria republicana foi destituída e todo o poder foi delegado ao ministro da guerra: o general Cavaignac. Sob o manto da Constituição, instaurava-se uma ditadura militar. A luta nas barricadas durou três dias e acabou num verdadeiro banho de sangue. Mas ainda não havia como acabar com o sufrágio universal e nem precisava, pois o movimento operário havia sido batido e levaria algum tempo para se recuperar.

Todas as conquistas democráticas e sociais da Revolução de fevereiro começaram a ser retiradas. A jornada de trabalho foi regulamentada em 12 horas para todo o país; os jornais censurados; e os clubes republicanos duramente reprimidos. Vários dirigentes democráticos e socialistas foram presos ou se exilaram.

Na eleição presidencial, ocorrida em dezembro de 1848, o principal candidato da burguesia, o general Cavaignac, foi derrotado por Louis Bonaparte, sobrinho do antigo imperador. O general conseguiu 1,5 milhões de votos e o candidato ao trono 5 milhões e meio. O representante dos republicanos pequeno-burgueses Ledru-Rollin ficou com 370 mil e o republicano liberal-burguês Lamartine com apenas 8 mil votos. Este perderia até mesmo para a frágil candidatura do operário comunista Raspail, que obteve 36 mil votos. A burguesia, ao mesmo tempo em que esmagava os operários, despachava eleitoralmente aqueles que haviam sido seus fiéis representantes em fevereiro.

Em 1850, na prática, um Parlamento conservador pôs fim ao sufrágio universal ao impor três condições restritivas para o exercício do direito ao voto: pagamento de uma taxa eleitoral; a inexistência de qualquer tipo de condenação judicial (o que atingia os insurgentes de junho de 1848) e residência fixa por três anos consecutivos. Essas regras discricionárias excluíram mais de 3 milhões de eleitores num colégio eleitoral de 9,5 milhões de cidadãos. A grande maioria dos excluídos era composta de operários. O sufrágio censitário, expulso pela porta da frente, voltava pela janela dos fundos.

Os dias da Republica Francesa estavam contados e, como afirmou Marx, o sufrágio universal parecia ter perdido seu encanto tanto para os republicanos burgueses como para os operários socialistas. Em 2 de dezembro de 1851, Louis Bonaparte deu o seu golpe de Estado e dois anos depois se sagrou o novo imperador dos franceses, como Napoleão III.

Conclusão

Podemos afirmar ter existido, até meados do século 19, um amplo consenso liberal contra o sufrágio universal e a soberania popular. A famosa consigna “um homem, um voto”, que se tornou paradigma dos Estados democráticos modernos (burgueses), soava como algo profundamente subversivo. A própria palavra democracia era explosiva. Poucos daqueles defensores das “liberdades civis” se diziam democráticos.

Portanto, todos os elementos que compõem o que comumente chamamos de democracia política (burguesa) – sufrágio universal, incluindo o voto feminino; liberdade de organização política e sindical etc. – surgiram enquanto demandas das classes populares, especialmente do proletariado. Esse programa somente foi plenamente realizado nos principais países capitalistas no segundo pós-guerra, após o esmagamento do nazi-fascismo.

O intelectual italiano Domenico Losurdo lembra que houve três momentos importantes para a implantação do sufrágio universal no Ocidente: a República Jacobina (1792-1793), a Revolução Francesa de 1848; e a Revolução Russa de 1917. Poderíamos incluir nesta lista a Comuna de Paris e a heroica luta de libertação dos povos do mundo contra as hordas nazi-fascistas. Acontecimentos não somente esquecidos, mas abominados pelos teóricos e políticos liberais na atualidade. Sem as lutas operárias e socialistas – inclusive de armas nas mãos – os Parlamentos modernos permaneceriam como meros sovietes de grandes proprietários.

* Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução burguesa: encontros e desencontros e Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos pela Editora Anita Garibaldi.

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