4 – O Novo-Desenvolvimentismo como Política Econômica aplicada (continuação)

Como vimos na parte anterior desta série de artigos, ao final de 2005 o desempenho macroeconômico insatisfatório gerou um debate no interior do governo Lula, levando à inflexão da política econômica quando a equipe econômica inicial foi substituída por defensores de uma política de maior ativismo do Estado.

Apesar de não compartilharem um pensamento homogêneo, estes adotaram uma “postura mais pragmática” com base em três linhas: [1] “adoção de medidas temporárias de estímulo fiscal e monetário para acelerar o crescimento e elevar o potencial produtivo da economia; [2] a aceleração do desenvolvimento social por intermédio do aumento nas transferências de renda e elevação do salário mínimo; e [3] o aumento no investimento público e a recuperação do papel do Estado no planejamento de longo prazo” (Barbosa e Souza, 2010: 69-70).

Ao contrário da “visão neoliberal”, que subestimava o potencial de crescimento da economia, os desenvolvimentistas argumentavam que havia potencial não utilizado devido aos ganhos de produtividade “ainda não aproveitados” decorrentes de ganhos de escala, à elevação do emprego nos setores formais, deslocando os trabalhadores de menor produtividade, à indução do investimento privado, e à abertura de novos mercados externos. Entretanto, esses ganhos só poderiam ser realizados se a taxa de crescimento fosse elevada pelo ativismo estatal fiscal e creditício, iniciando um círculo virtuoso que poderia elevar o crescimento anual do PIB “um ou dois pontos percentuais acima do estimado pelos adeptos da visão neoliberal”.

O ativismo estatal deveria se voltar para “a redução da desigualdade da distribuição de renda e para o aumento do investimento público”. O primeiro objetivo foi concretizado através da expansão da Bolsa-Família – um programa focalizado de garantia de renda mínima para famílias mais pobres – e da elevação real do salário mínimo, o que proporcionou também um aumento substancial das transferências para os aposentados e pensionistas da previdência social pública (1). O segundo objetivo levou a um grande programa de investimento plurianual (2), sobretudo em energia e transporte, que articulou o investimento público com o investimento das empresas estatais e privadas especialmente através de concessões em infraestrutura, e uma forte expansão do crédito para investimento, principalmente pelo setor bancário público. Segundo os “desenvolvimentistas”, esse programa recuperaria uma infraestrutura econômica defasada por 30 anos de baixo investimento, ao mesmo tempo em que incluiria desonerações fiscais “para incentivar o investimento privado e o mercado de massa” (2010: 73). Outro aspecto emblemático da mudança de concepção do gasto público é que esse aumento no investimento estatal poderia ser financiado tanto por receitas tributárias quanto por novo endividamento, fato inédito desde as reformas orçamentárias de 1986, e violando um “tabu” da política fiscal (3).

A forte resposta da economia a esse ativismo estatal, devida, em parte, a um ambiente internacional de liquidez e à expansão da demanda interna e externa até meados de 2008, fez com que a receita tributária e o PIB crescessem de modo a reduzir a dívida pública, medida em proporção do PIB (ver tabela 1, no Apêndice). Assim, melhoraram os indicadores fiscais, apesar da constante valorização do real frente ao dólar (4). Durante a fase mais aguda da atual crise internacional, houve um maior afrouxamento fiscal e expansão da liquidez, o que minimizou o impacto doméstico do choque contracionista. A economia se recuperou fortemente já em 2010, apesar da deteriora da conta de transações correntes, resultando em um ambiente interno de grande otimismo.

O relevante a destacar é que essas medidas de política econômica foram introduzidas de forma complementar às políticas macroeconômicas vigentes, e não em sua substituição. Por exemplo, a política fiscal manteve a meta de resultado primário, mas, por norma legal, esse passou a ser entendido como resultado primário em despesas correntes, portanto excluindo os investimentos públicos e as contas de algumas grandes empresas estatais (5). Isso resultou em uma disponibilidade maior de recursos para investimentos no setor público. Entretanto, ainda persiste um déficit nominal apesar do resultado primário favorável e do crescimento econômico (ver tabela 1, no apêndice) (6). Quanto à inflação, quando ocorreram choques adversos na oferta de alimentos non-tradables e subiram os preços internacionais das commodities, em 2007-2008, o governo respondeu com desonerações tributárias, minimizando tais choques e associando medidas fiscais às medidas monetárias no controle da inflação, seguindo a concepção novo-desenvolvimentista do uso de vários instrumentos complementares de política econômica. Da mesma forma, a política econômica associou desonerações fiscais com a ampliação do crédito para elevar o investimento privado de forma seletiva, medidas que são geralmente consideradas pela “visão neoliberal” como redutoras da eficiência da alocação de recursos, sendo tendencialmente desestabilizadoras e, portanto, contraproducentes. Ao mesmo tempo, o governo vem elevando significativamente o custo do trabalho desde 2004, mediante um forte crescimento real do salário mínimo, inclusive em 2008 e 2009, durante o choque mais imediato da crise internacional.

Notas:

(1) Desde a promulgação da constituição de 1988, os benefícios da previdência pública e o seguro-desemprego não podem ser inferiores ao salário mínimo legal.

(2) Denominado, adequadamente, de Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

(3) A dívida mobiliária interna federal no Brasil sempre foi instrumento exclusivo de política monetária e cambial. Seu crescimento, desde a década de 1970, se deu em virtude dos custos dessas políticas e pela assunção de seus próprios encargos e de outros custos financeiros como os decorrentes da manutenção (e, mais recentemente, da ampliação) das reservas internacionais do Banco Central do Brasil (ver Morais, 2010).

(4) A taxa de cambio nominal dólar/real cresceu de 0,3460 ao final de 2003, para 0,5988 em 2010, valorizando-se o real em 73% em sete anos.

(5) Ao contrário da metodologia padrão utilizada para apuração da necessidade de financiamento do governo, no Brasil as contas de ativos e passivos financeiros das empresas estatais também eram incluídas, mesmo aquelas que não dependiam de nenhum recurso fiscal para operar. Com isso, a realização de investimento autofinanciados, ao transformar de ativos financeiros em ativo imobilizado, implicava em déficit na NFSP. O principal efeito dessa inclusão para as empresas estatais era a restrição sobre o seu volume de investimento produtivo em setores estratégicos como petróleo e geração de energia elétrica, tradicionalmente não dependentes de recursos fiscais. Com essa alteração da definição do resultado primário, a Petrobras – principal petroleira do país ¬¬– foi retirada da necessidade de financiamento a partir de 2008, e a Eletrobras – holding das maiores empresas geradora de energia elétrica – deixou de constar a partir de 2010; outras estatais, no entanto, ainda permanecem no cálculo.

(6) Segundo Barbosa e Souza (2010), uma meta que eventualmente zerasse o déficit nominal corrente “deveria ficar para um segundo momento, quando o Brasil atingisse uma taxa real de juros mais baixa”. Desse modo, a concepção de resultado primário como meta da política fiscal se mantém coerente com a “visão neoliberal”, mas é de certo modo invertida, mediante seu adiamento para um futuro em que essa redução se viabilize mediante também a diminuição do custo da dívida (e não apenas pela elevação do superávit primário).