Vila Isabel dá o samba. E bota água no feijão

O cantor e compositor Martinho da Vila. Foto: Adriana Lorete

A “missão” de alimentar carentes – também de alegria – vinda do Brasil só podia acabar (ou começar?) em samba. O encarregados desta feliz tarefa são a premiadíssima Rosa Magalhães e seu parceiro este ano, Martinho da Vila, no enredo “Bota água no feijão que chegou mais um, a Vila canta o Brasil, celeiro do mundo”, da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, berço do samba, terra de Noel.

A cultura que veio de berço para Rosa e Martinho agora sai miscigenada pelos dois – ele negro, neto de ex-escravos, ex-favelado e depois sargento do exército, e ela, uma carioca, bem nascida e criada na Zona Sul do Rio. Ela talvez seja hoje a artista visual brasileira mais completa  (pintora, cenógrafa, figurinista, joalheira, designer de estamparia) – premiada também em Hollywwod. Martinho da Vila é embaixador do samba. Eles serão coautores deste desfile da Vila, com um samba que já dá a pinta de que vai ser um sacode na Sapucaí de autoria de Martinho, Arlindo Cruz, André, Leonel e Tonico da Vila / (Veja mais clicando AQUI)

A vila quer mostrar – alegoricamente, diz Martinho – “ a vida, a culinária do interior do Brasil, as festas juninas das igrejas, o trabalho no campo”. Ele olha e aponta em volta, onde estamos, no lugar que chama de seu“ Off Rio”. E conclui que o espírito do enredo “é isso aqui!”, referindo-se ao ambiente bem brasileiro, interiorano.

Martinho comprou a “Fazenda do Cedro Grande” em Duas Barras, perto de Friburgo, onde passou a infância e onde seus seus pais trabalhavam como empregados (sem carteira, sem garantias, por isso foram morar no Rio). Ao me relembrar a sua história naquele lugar que estávamos, me pergunta: “isso não é bom?”

No Brasil, o problema  da fome pode ser resolvido – fica a sugestão dos artistas, ao menos no Carnaval. Rosa é sofisticada, filha da escritora Lúcia Benedetti e do escritor e ex-diretor (no auge) da revista Manchete, Raimundo de Magalhães Jr. Em casa, nas paredes, Rosa se acostumou a ver Arte entre Portinaris, Pancettis, Picassos, e Santa Rosa entre outros.

Rosa está num local histórico, em Copacabana, no Rio, cercada de livros, flores  e cães, tem arte por todas as paredes, cultiva o seu jardim e o xodó agora é uma orquídea que veio das Filipinas. Sua casa tem história (s). Além de ter pertencido ao grande artista do cinema brasileiro Oscarito, fica atrás, no mesmo terreno, do prédio onde se deu o famoso “Crime da Tonelero”. Ali, na frente do edifício, Carlos Lacerda sofreu uma tentativa de assassinato (levou um tiro no pé) e o major aeronáutico Rubens Vaz , ao defender Lacerda, morreu.

Logo depois o presidente Vargas suicidou-se – seus seguranças estavam envolvidos no crime. Esta casa/atelier de Rosa, reformada, ainda sobrevive num morro, entre os edifícios que tomaram todo o espaço de Copacabana.

Martinho José Ferreira (muito tempo depois seria o Martinho da Vila), menino preto (nome de seu filho caçula) e pobre, que aos 4 anos se mudou com a família de Duas Barras, interior da serra fluminense, para o Rio, Serra dos Pretos Forros, na Boca do Mato, carregou na alma o choro, o lamento, o fandango e as festas de ex-escravos, como seus avós.

Sua arte é marcada pela alegria; tradição vinda das Folia de Reis, bandinha no coreto aos domingos, e marcante – para ele – os bancos na praça da igreja Matriz onde o Martinho, adolescente, se sentava com as meninas para conversar, e dalí vem a fama de namorador – e casador-  por 4 vezes.

Lins e Vasconcelos, no Rio (Boca do Mato), era um lugar em paz e festeiro. Lá ele frequentou na mesma rua a Escola de Samba “Aprendizes da Boca do Mato” (agora extinta). Hoje o ex-pacato lugar virou um favelão, entre centenas de outras no Rio. Rosa estudou no Sacre Coeur de Marie em Copacabana, e Martinho, por sorte, foi parar na escola pública, na época recomendável.

O Samba não pode ter fórmula nem circo, como comentei e concordou Martinho. Ele deu exemplos – Martinho paciente perde a cadência e diz com certa indignação: “…teve um ano que botaram pista de esqui na neve no desfile…importaram uns caras pra esquiar na Sapucaí…”.

Nesse circo, que nada tem haver nem com folclore nem com carnaval – basta pesquisar nos folcloristas Camara Cascudo ou Edson Carneiro-, em momento algum essas coisas (carnaval e circo) se misturam, mesmo porque o circo é uma tradição importada, ao contrário do samba, criação genuinamente brasileira na qual Martinho passa a rer uma referência a partir da década de 70. Certas TVs, ao transmitirem ao vivo os defiles das escolas de samba, tentam dar um ar ”espetacular” ao que é mostrado, pois sendo “o  maior espetáculo da terra”,  como o mundo inteiro já sabe, narram os desfile como se fosse Fórmula 1 ou Futsal.

Apoteose para Rosa e Martinho. Para ela, falta pouco para empatar em campeonatos com o falecido Joãozinho Trinta (o mais premiado de todos). Para ele será uma festa: a Vila vai desfilar pela manhã no dia 12 de fevereiro, data de seu aniversário. Mais um motivo para comemorar.

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Fonte: CartaCapital