Superávit primário e fundo soberano
Na verdade, o que o mundo financeiro opera, a partir de 2008, é uma esperta estratégia de adaptação conjuntural do discurso menos ortodoxo, com alguma leve tintura superficial de uma tênue coloração pseudokeynesiana.
Mas os elementos essenciais de suas demandas permaneceram absolutamente intactos. Trata-se de defender a todo custo que as saídas para a crise sejam suportadas pelas contas do Estado e que os encargos econômico-financeiros sejam descarregados sobre as costas dos trabalhadores, dos aposentados, dos profissionais liberais e das empresas do setor produtivo.
Bancos e instituições financeiras continuam intocáveis, em nome de não se abalar as sacrossantas expectativas dessa entidade fantasmagórica chamada “mercado”, que todos parecem tanto temer. Mas que, apesar de ser considerada tão poderosa, nunca mostra sua verdadeira face e muito menos apresenta um endereço real. O mercado pensa, o mercado exige, o mercado reage, o mercado isso, o mercado aquilo. Estranho personagem esse: pela boca de quem tanta gente fala, mas que não se apresenta jamais para o grande público!
Financismo e saudades da ortodoxia
Em nossas terras, a tática atual do financismo é desacreditar os que respondem pela condução da economia. É claro que os seus representantes se sentiam muito mais à vontade quando os interlocutores eram Pallocci e Henrique Meirelles – o primeiro à frente do Ministério da Fazenda (MF) e o outro na presidência do Banco Central (BC). Mas isso não significa que estejam muito desconfortáveis no momento presente, não! A política econômica pouco mudou: apenas sofreu algumas poucas adaptações necessárias à conjuntura pós crise 2008. Os elementos de alteração mais sensíveis foram a redução da taxa de juros oficial (SELIC) e a implementação de uma política de desoneração tributária, com o objetivo de manter a produção e o consumo.
Assim, a ação de desconstrução da condução da economia tem buscado se viabilizar pelo intento de impor uma suposta perda de credibilidade da equipe. Basta ver as reações nas colunas dos principais “jornalistas de economia” dos grandes meios de comunicação e nas matérias veiculadas pela imprensa escrita e televisionada. Há alguns meses ganhou força a tentativa de criação de um novo “falso consenso”: o governo da Presidenta Dilma teria abandonado a política econômica considerada “séria e responsável”, pois não mais obedeceria ao chamado “tripé da política econômica”. Oh, que horror!
Os três principais elementos de sustentação do receituário econômico remontam ao Plano Real. O modelo supõe a institucionalização de algumas regras de conduta, que prevêem o seguinte: i) a definição de metas para a inflação; ii) a liberdade cambial e política de câmbio flutuante; e iii) a definição de metas de superávit primário. Ora, é mais do que sabido que depois da crise – que se iniciou americana e se alastrou pelo espaço europeu – as amarras mais radicais do liberalismo foram sendo afrouxadas pelo mundo afora. Até o mais egoísta e auto-centrado dos banqueiros sabe que deixar a solução ser alcançada tão somente por meio dos livres movimentos das ofertas de oferta e demanda seria um suicídio para o conjunto do sistema. Um pouquinho de intervenção do Estado na economia nesses momentos é sempre bem vinda, desde que para salvar a pele dos poderosos.
Pois aqui em nossas terras não foi muito diferente. Apesar de não abandonar o tripé, houve uma espécie de relaxamento de sua implementação, justamente para evitar que a recessão nos atingisse com mais força. As metas de inflação foram mantidas, mas o BC passou a reduzir a taxa SELIC de forma sistemática. Como não há espaço político para sugerir que a taxa oficial de juros volte a subir, o caminho adotado é de recuperar o discurso de ameaça da volta do “fantasma da inflação”.
Para tanto, nada se menciona a respeito do crescimento dos preços estar ainda dentro dos limites previstos nas próprias regras. Menciona-se apenas o chamado centro da meta, esquecendo-se de que há uma margem de 2 pontos percentuais para cima e para baixo. A política cambial também é combatida pelo financismo, pois o governo tem evitado permitir a valorização irresponsável de nossa moeda, tal como ocorria até pouco tempo atrás. Mas isso não significa que estejamos em regime de câmbio fixo ou administrado, de jeito algum! Na verdade, a redução da taxa de juros é que tem contribuído para reduzir um pouco a atratividade da especulação financeira em nossas terras. E com isso o ingresso desse capital externo de curto prazo tem diminuído em valor, reduzindo o efeito perverso da valorização cambial. E esse movimento também afeta o interesse imediatista do financismo.
Superávit primário na berlinda
O saco de pancada do momento é o superávit primário. As vozes do conservadorismo econômico se levantam contra um suposto abandono da “seriedade e responsabilidade” na condução da política fiscal. As viúvas abandonadas da grande banca sonham com a volta dos bons tempos da ortodoxia. Mas, afinal, por que tanto chororô?
O conceito de superávit primário foi um golpe de mestre elaborado na cozinha dos formuladores do Consenso de Washington e imposto pelo mundo afora, em especial para os países em desenvolvimento a partir dos anos 1980. Através dessa sutil transformação na forma de definir receitas e despesas públicas, o sistema financeiro fortaleceu-se ainda mais como beneficiário prioritário das distintas manifestações e variações de política econômica. Graças à adoção do modelo de “superávit primário”, não bastava mais que os Estados fossem “sérios e responsáveis” em termos fiscais, ou seja, na busca do necessário equilíbrio entre receitas e despesas orçamentárias. Era obrigatório que fosse gerado um superávit (maior volume de receitas frente às despesas) em termos primários – no economês, isso significando todas as receitas e as despesas não financeiras. Assim, o saldo positivo obtido por um controle rígido (ou mesmo cortes violentos) no lado “real” do orçamento, seria todo ele alocado para os compromissos das despesas financeiras – pagamento de juros e serviços da dívida pública.
No caso brasileiro, há quase 2 décadas que por volta de 3% de nosso PIB são destinados, a cada ano, para esse tipo de rubrica orçamentária. Corta-se em saúde, educação, transporte, previdência, entre outros, para assegurar a transferência intocável de vultosos recursos para o sistema financeiro. Essa herança da política econômica da época de FHC foi mantida e reforçada desde 2003. A cada ano, o Executivo envia um texto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) ao Congresso Nacional, comprometendo-se com um objetivo de superávit a ser atingido. Em 2012 era de 3,1% do PIB, mantendo-se igual índice para o ano de 2013.
O equívoco de insistir na meta do superávit
O esforço para atingir esse valor é compartilhado entre: i) orçamento da União; ii) orçamentos de estados e municípios; ii) orçamento das empresas estatais federais. Existem regras para efetuar tais cálculos e elas mesmo evoluem com o tempo. Uma mudança importante, por exemplo, foi a exclusão (óbvia e necessária) das despesas de investimento das empresas estatais de tal cálculo. Atualmente há um debate a respeito da necessidade de se excluir as despesas de investimento da própria administração federal direta, em obras como as do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Os argumentos para se retirar esse tipo de gasto relativo a investimentos públicos decorre de seu impacto positivo a longo prazo e que teria um efeito de ação anti-cíclica na economia. Nada mais justo e adequado. Qual o sentido de cortar investimentos em infra-estrutura, por exemplo, para continuar pagando juros de natureza rentista e parasita?
Mas o fato é que o governo brasileiro fez questão de exibir seu bom-mocismo ao mundo das finanças e se comprometeu de forma inflexível com tal meta de 3,1%. Ao longo do ano passado, a situação foi se complicando e o governo foi obrigado a lançar mão de instrumentos de desoneração tributária – o que reduz o volume de receitas a ser arrecadado sob a forma de impostos. Por outro lado, vem a confirmação de um crescimento do PIB de apenas 1% em comparação ao otimismo dos 3,5% pretendidos quando a LDO foi encaminhada ao Congresso Nacional – outro fator que reduz a capacidade arrecadadora do Estado.
Ora, frente a um quadro como esse, o recomendável seria o reconhecimento de que a meta de superávit primário de 3,1% não poderia ser atingida. Qual o problema? Se todos os demais setores da sociedade tiveram que dar sua contribuição e se adequar a esse Pibinho frustrante, por que não também solicitar explicitamente ao setor financeiro que reduza um pouco suas margens de ganhos? Mas o governo insistiu em esconder a má notícia, como se ela pudesse escapar aos analistas econômico-financeiros, que não fazem outra coisa senão acompanhar o dia-a-dia dessa área das políticas públicas.
Um conjunto de medidas legais e administrativas foi adotado nos últimos dias do ano passado, para oferecer uma aparência de normalidade ao movimento de bastidores. Foram decisões de última hora, no afogadilho da virada do calendário, bem ao estilo do jeitinho brasileiro de resolver o irresolúvel. Capitalização de empresas estatais, aporte de recursos via BNDES, incorporação de ações de empresas privadas, antecipação de dividendos de empresas públicas para o Tesouro Nacional, entre outras tantas criatividades para fazer com que o resultado final se aproximasse dos 3,1%. Ufa! Ao que tudo indica, nada que tenha transbordado para a ilegalidade, mas que acaba por comprometer justamente o que se pretendia desde o início e com toda a maior ingenuidade do mundo: ganhar a confiança do financismo. Triste ilusão!
É proibido tocar no Fundo Soberano!
No entanto, uma dessas operações contábeis merece a nossa atenção, seja pelo inusitado da medida, seja pelo risco de torná-la rotineira. O governo lançou mão de um valor superior a R$ 12 bilhões do Fundo Soberano do Brasil (FSB) para cumprir com tal objetivo de acomodação contábil. Ora, esse fundo foi criado em 2008 e tem por objetivo a utilização de recursos obtidos pelas vantagens da política de comércio exterior, em especial com as riquezas estratégicas a serem geradas pelo futuro do pré sal. Com a canetada, evaporou-se o correspondente a 80% das reservas estratégicas do fundo! O artigo primeiro da lei do FSB é explícito quanto às suas finalidades: “promover investimentos em ativos no Brasil e no exterior, formar poupança pública, mitigar os efeitos dos ciclos econômicos e fomentar projetos de interesse estratégico do País localizados no exterior”.
Por mais que se utilize o recurso da retórica, é difícil a aceitação de que essa manobra contábil de curtíssimo prazo seja destinada para algo que lembre “mitigar efeitos dos ciclos econômicos”. O FSB é um instrumento estratégico essencial para ser utilizado em investimentos de longo prazo, evitando a “contaminação” com atividades no interior do País. A idéia é que os saldos de comércio exterior (exportação menos importações) e as reservas internacionais sejam aplicados em atividades de longo prazo, de preferência que tenham impacto positivo nas áreas vinculadas a educação, ciência, tecnologia e inovação. Banalizar seu uso para cobrir esse tipo de buraco, de forma casuística e indiscriminada, abre espaço para secar essa modalidade de fundo público, contribuindo para desmoralizar ainda mais a pouca credibilidade das ações do Estado no longo prazo.
Na verdade, o governo deveria aproveitar o momento e tirar as lições de tal processo. Já é passada a hora de se apresentar um calendário de redução do superávit primário, até sua eliminação. Uma boa iniciativa seria apresentar uma mudança na LDO de 2013, alterando o compromisso com a geração forçada de mais 3,1% do PIB para o pagamento de juros da dívida.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior