Bancos públicos de fomento, de uma forma geral, são instituições financeiras utilizadas pelos governos como instrumento de auxílio à implementação da política econômica. Ao contrário dos bancos comerciais (sejam eles públicos ou privados), as entidades de fomento não dependem dos depósitos realizados pelos correntistas como fundo para lastrear seus empréstimos.

Por se tratar de crédito concedido a setores específicos de atividade e em condições especiais de juros, essas operações são normalmente amparadas por grandes fundos financeiros constituídos pelo próprio Estado. Assim, os governos pelo mundo afora optam por oferecer recursos a custo subsidiado para estimular determinados ramos e para criar condições estratégicas privilegiadas para a economia nacional, encarada de forma integrada.

 

Dessa forma, tais instituições podem ser usadas para constituir musculatura às políticas industriais dos diversos países que conseguiram constituir seus bancos de fomento. Se determinados setores necessitam de apoio ou passam a ser considerados essenciais para o futuro da inserção econômica de determinada nação, então os fundos para eles se destinam.

O caso do BNDES é um exemplo concreto de tal desenho institucional e de tal vontade estratégica. Ele foi criado em 1952, como Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE (sem o “s” de Social, à época), por meio de uma lei sancionada por Getúlio Vargas. E o curioso, mas também irônico, é que sua constituição tenha sido sugestão de grupo de trabalho no âmbito de uma Comissão Mista Brasil-Estados Unidos. O liberalismo ianque no período pós Segunda Guerra era fortemente adaptado a uma enorme dose de pragmatismo, sempre que se tratasse de fortalecer o mundo ocidental contra o “perigo” apresentado pelos países que haviam escolhido a via do socialismo, logo depois da derrota do nazi-fascismo no espaço europeu.

O BNDES e a recuperação do desenvolvimentismo

Apesar de todas as críticas possíveis e pertinentes, o fato é que o balanço da atuação do banco ao longo dessas seis décadas é positivo. Participou de forma ativa da constituição de um conjunto importante ramos e setores de nossa economia, em especial na área industrial. É claro que os recursos poderiam ter sido utilizados de forma mais racional e eficiente, é certo que nem sempre os setores estimulados tenham sido os que mais necessitassem de apoio e por aí vai. Mas não é intenção aqui fazer esse tipo de avaliação. O fato é que o BNDES sobreviveu como banco público e orientador de política industrial, conseguindo atravessar a difícil fase de hegemonia do pensamento neoliberal, onde toda e qualquer intervenção do Estado no domínio econômico era considerada nefasta.

Mais do que isso, ao longo da última década ele foi “redescoberto” pelos governos Lula e Dilma como importante instrumento de apoio à política econômica. Tanto que ultrapassou a dimensão do próprio Banco Mundial (BM) em sua carteira e volume de empréstimos. Em 2012, por exemplo, o BNDES emprestou o equivalente a US$ 80 bilhões, quase o dobro do que emprestou o Banco Mundial em suas operações pelos cinco continentes. Esse processo caminhava na contramão da ação e do discurso de Fernando Henrique Cardoso, que não perdia a ocasião de afirmar que pretendia acabar com aquilo que chamava de “herança da era Vargas”. Não por acaso, em 2004, o presidente do BNDES, Carlos Lessa, assumiu simbolicamente para si a tarefa de recuperar o importante legado varguista, com evento influenciado por famosa marchinha da campanha eleitoral de 1950, quando Getúlio voltou eleito pelo sufrágio popular: “Bota o retrato do velho outra vez”. O pensamento desenvolvimentista voltava à cena, bem antes ainda da “moda” generalizada pelo advento da crise de 2008.

A polêmica sobre as “multinacionais brasileiras”

No entanto, isso não significa que as ações do banco, a partir dessa nova fase, estejam isentas de erros e imunes a críticas. Dentre as diversas prioridades escaladas por sua direção, figura com destaque a constituição daquilo que vem sendo chamado de “multinacionais brasileiras”. Os recursos do BNDES passam a ser utilizados, também, para criar grandes conglomerados empresariais privados, a partir do fortalecimento, fusão ou consórcio de empresas de um mesmo ramo. A intenção é fazer com que esses mastodontes, criados em solo tupiniquim, tenham condições e escala para se impor no mercado interno e melhor competir no exterior. Os setores escolhidos foram vários.

As grandes construtoras e empreiteiras (Andrade Gutierrez, OAS, Queiroz Galvão, Odebrecht, entre outras) foram beneficiadas, com estímulos financeiros, a ganhar licitações em países onde o Brasil começou a marcar presença, em especial com créditos facilitados em infraestrutura. Abundam informações a respeito do crescimento da presença de tais empresas nos países da América do Sul e na África. Por seu lado, a Vale – privatizada a preços de banana sob o governo FHC – passou a contar também com vultosos empréstimos generosos do BNDES para suas atividades dentro e fora do País. Na área da carne, o banco auxiliou também, de forma decisiva, a constituição da maior empresa do mundo no setor, a JBS-Friboi. Ela atua no mercado local e mundial ao lado de outro gigante brasileiro, a Marfrig.

Assim, o que se percebe é que tal opção estratégica do BNDES se concentra em áreas pouco interessantes do ponto de vista estratégico e de longo prazo. Trata-se de setores ligados ao setor primário exportador ou de pouca capacidade de geração de valor agregado. Nada ligado a setores de ponta e de vanguarda, como tecnologia virtual e informática, robótica, biotecnologia, mecatrônica, nanoeletrônica e similares. Ou então em setores capazes de nos defender da concorrência asiática para os produtos manufaturados. Além disso, a engenharia financeira resultante de tais acordos empresariais não prevê a presença de representantes do governo brasileiro nos conselhos dirigentes das empresas na proporção do esforço empreendido pelo poder público. O Estado injeta recursos expressivos, mas abre mão de influir na gestão da empresa.

Os prejuízos da LBR: o leite derramado

Um exemplo bastante carregado de simbolismo dessa opção equivocada foi divulgado recentemente. Em dezembro de 2010, depois de um intenso movimento capitaneado pelo BNDES, foi finalmente constituída uma grande empresa na área dos lácteos, a LBR – Lácteos Brasil. O banco entrou com R$ 700 milhões, correspondentes a 30% do valor do empreendimento. A nova empresa surgia como uma das três maiores desse mercado, com promessas de aumentar seu faturamento me 50% logo no primeiro ano de atividade e outras cifras igualmente otimistas.

Ora, o setor é dotado de particularidades sensíveis, como a pulverização e a capilaridade dos produtores de leite na ponta. Em boa parte dos países, a estrutura é baseada numa rede de pequenos e médios produtores, sistema que é interessante do ponto de vista da sustentabilidade da atividade agropecuária. Introduzir um mega agente apenas numa das pontas do sistema significa retirar completamente a capacidade de negociação dos produtores. Muitos especialistas opinam em sentido contrário, em que o ideal seria um modelo que se apropriasse de tal tendência pulverizada e estimulasse a associação local ou regional, com base no modelo cooperativo. Por outro lado, qual seria a lógica do Estado brasileiro estimular a constituição de uma multinacional em setor que representa o passado e se assenta no modelo com baixa capacidade de deitar raízes inovadoras e de agregação de valor na escala produtiva?

O resultado é que o empreendimento naufragou por diversos equívocos, dentre eles a ineficiência de gestão. Em razão disso, e apesar da suposta superioridade da gestão privada, o BNDES vai ter de, literalmente, “chorar sobre o leite derramado”. Já foi anunciada a assimilação dos R$ 700 milhões injetados no projeto como “prejuízo operacional” para o balanço contábil do banco.

O fenômeno deveria servir como motivo para que se inicie uma discussão ampla a respeito da política de formação de tais “multinacionais brasileiras”. Por um lado, para que seja debatida a estratégia em si e os setores que o Brasil considera deve considerar como estratégicos a longo prazo. Por outro lado, estabelecer regras mais claras a respeito da responsabilização – seja no interior do setor público, seja na empresa beneficiada – nos casos de eventos em que a perda de recursos públicos seja evidente e cristalina. O fato dos ativos do banco alcançarem quase a marca de R$ 700 bilhões não pode servir como desculpa para que não sejam apuradas as responsabilidades nesse tipo de operação lesiva realizada com recursos públicos.


* Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.