6 – Conclusão

Esse artigo mostrou como a proposta de política econômica novo-desenvolvimentista, inspirada no keynesianismo e no neoestruturalismo cepalino dos anos noventa, buscou dar coerência a um conjunto de políticas macroeconômicas correspondendo ao momento vivido pelo Brasil na primeira metade da última década. Essas novas políticas atribuem ao Estado um papel central. Seus objetivos derivam de um projeto político visando implementar uma estratégia nacional de desenvolvimento voltada para a superação do hiato econômico e social que separa o país dos estados do centro capitalista desenvolvido, o que não pode ser alcançado apenas por condições de mercado. As condições necessárias à implementação dessa proposta incluem a negação da primazia do mercado e a existência de um “Estado forte”, entendido como aquele capaz de regular o mercado de modo a garantir uma estabilidade macroeconômica mais abrangente que a estabilidade monetária, e que, ao mesmo tempo, fortaleça esse mercado como principal produtor de riqueza. A construção desse Estado forte tem como precondição um desenvolvimento com equidade social.

A institucionalização parcial de várias propostas novo-desenvolvimentistas no segundo governo Lula se deu através da chamada “inflexão” da política econômica, que preservou o núcleo das políticas macroeconômicas introduzidas pelas reformas neoliberais do governo Fernando Henrique Cardoso, resultando em uma política econômica de natureza híbrida. Inesperadamente, em parte devido a condições externas favoráveis, e em parte aproveitando com imaginação política os “potenciais de ganhos de produtividade” da economia brasileira, essa política híbrida logrou um sucesso incontestável não só em termos de crescimento econômico, mas também através de uma melhoria da distribuição de renda e de uma redução da pobreza historicamente inédita. Ao mesmo tempo, a manutenção dos objetivos restritos das políticas neoliberais continuou a gerar graves problemas nas contas externas e fortes pressões fiscais, derivadas diretamente da sobrevalorização da moeda nacional e do elevado custo fiscal da política monetária e do livre movimento de capitais.

O resultado francamente favorável dessa política híbrida pôs à prova a suposta incompatibilidade entre o núcleo de políticas neoliberais com as medidas de caráter desenvolvimentista. Essa incompatibilidade, apontada tanto pelos novo-desenvolvimentistas como pelo mainstream no pensamento econômico, sugeria que a associação de políticas que têm por base, por um lado, a primazia do mercado e, por outro, o ativismo estatal, estaria fadada ao insucesso ab initio.

De forma sumária e exploratória, esse artigo sugere que o inesperado sucesso dessa política híbrida não pode ser explicado apenas pelas condições extraordinárias de liquidez internacional, desde 2003, visto que a boa fase da economia brasileira não foi interrompida pela crise de 2008.  Esse artigo indica que, apesar dos dois componentes da política atual do governo serem fundamentalmente incompatíveis, eles puderam operar em conjunto devido a uma complexa conjunção de fatores internos e externos. Além da já mencionada liquidez externa, os fatores mais relevantes foram a imaginação política da equipe econômica do governo Lula, que soube aproveitar as brechas surgidas na ortodoxia devido ao declínio do consenso neoliberal, e a rápida melhoria dos indicadores de emprego, renda e investimento devida às iniciativas desenvolvimentistas.

Entretanto, tudo indica que essa suspensão da incompatibilidade entre a política econômica e seu núcleo de políticas macroeconômicas é provisória. Os crescentes problemas do país na conta de transações correntes, e o ônus fiscal derivado das intervenções para moderar a sobrevalorização do real tendem a criar tensões insuportáveis com o ritmo de crescimento alcançado até 2010. Os ganhos obtidos com as novas políticas terão maior probabilidade de se consolidar caso os avanços institucionais e as políticas macroeconômicas apontadas pela própria literatura novo-desenvolvimentista sejam implementados com maior vigor durante o governo Dilma Rousseff. Isso poderá acontecer com menor dificuldade caso venha a se constituir, nos próprios termos do novo-desenvolvimentismo, um novo consenso de política econômica. Esse consenso envolveria uma repactuação do poder incluindo parte considerável das elites econômicas e das classes populares, em torno do objetivo de desenvolvimento com equidade social. O escopo para tal consenso depende não apenas de negociações internas. Ele depende também, de maneira crucial, da continuidade das mudanças estruturais na economia global beneficiando os novos países emergentes da periferia.

 

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