Foram publicados alguns poemas de Darwish na antologia Poesia palestina de combate, editada no Brasil na década de 1980, e disponível hoje apenas em sebos, e em revistas literárias como a Zunái, Revista de Poesia e Debates (http://www.revistazunai.com/editorial/23ed_mahmouddarwish.htm). Apesar disso, o nome do poeta vem sendo ouvido com mais frequência nos últimos anos, assim como o do escritor palestino Edward Said, autor do clássico livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, devido ao crescimento dos movimentos de solidariedade à causa palestina e do interesse pela literatura, artes e pensamento desse povo milenar.

Mahmoud Darwish nasceu em 1942 na aldeia palestina de Birwa, nos arredores de Akka (Acre), situada próxima à costa mediterrânea. Quando o poeta tinha apenas seis anos de idade, a aldeia em que vivia com os seus pais foi totalmente destruída pelos sionistas, assim como 400 outras aldeias palestinas, durante a operação de “limpeza étnica” que ficou conhecida como Nakba (“catástrofe”, em árabe), que levou cerca de 750 mil palestinos para o exílio. Sobre este trágico acontecimento, escreveu o poeta, “Eu me recordo muito bem… Enquanto nós dormíamos, conforme a tradição nos vilarejos, no telhado da casa… Os tiros que atingiam uma aldeia pacífica, Birwa, naquela noite de verão de 1948, não poupavam ninguém. Eu me vi (no dia em que completava seis anos) caçado até o olival, escalando aquela montanha íngreme, por vezes rastejando. Depois de uma longa noite de sangue, terror e sede, cheguei a uma aldeia estrangeira com crianças desconhecidas, eu perguntei: ‘Onde estou?’ E pela primeira vez ouvi a palavra ‘Líbano’”.

Em 1950, a família de Darwish retornou clandestinamente à Palestina, que agora se chamava Estado de Israel, e estabeleceu-se numa aldeia próxima a Dayr Al’Asad, onde o garoto realizou os seus estudos, chamando a atenção das autoridades por seus primeiros poemas, que já abordavam a questão da identidade árabe. Por causa de um desses poemas, que ele recitou em sala de aula numa celebração em homenagem à criação do estado sionista, Darwish foi repreendido pelo governador militar, que em represália ordenou a demissão do pai daquele jovem que ousava contestar a “história oficial” israelense. Já na adolescência, Mahmoud Darwish continuou a escrever poemas e a escrever artigos para a sucursal árabe do jornal do Partido Comunista Israelense, Alittihad (A União). Na década de 1960 filiou-se ao Partido e tornou-se um dos editores do jornal Aljadid. Conforme escreve Paulo Farah em sua apresentação ao livro, “A poesia e o envolvimento político de Darwish foram uma fonte contínua de conflito com as autoridades. Em 1962, ele foi acusado de incitamento à revolução por recitar um poema sobre Gaza em um festival de poesia. Nos anos seguintes, foi preso diversas vezes”. Poesia e revolução caminhavam lado a lado para Mahmoud Darwish, e em seu primeiro livro publicado, Pássaros sem asas, de 1960, já encontramos um poema como “Carteira de identidade”, até hoje o seu texto mais conhecido:


Toma nota!
Sou árabe.
Número da identidade: 50 mil
Número de filhos: oito
E o nono… já chega depois do verão.
E vais te irritar por isso?

Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira
Com meus companheiros de dor
Pra meus oito filhos
O pedaço de pão
As roupas e os livros
Arranco da rocha…
Não mendigo esmolas à tua porta,
Nem me rebaixo
No portão do teu palácio
E vais te irritar por isso?


Conforme escreve Paulo Farah, “neste e nos poemas posteriores, descreve sua relação com a terra da Palestina, suas rochas, oliveiras e laranjais (…). Depois de estudar um ano em Moscou, em 1971 tomou a difícil decisão de não retornar a sua terra natal na esperança de encontrar uma arena onde pudesse expressar-se mais livremente e, assim, contribuir para a causa palestina”. O poeta passou a residir então em cidades como o Cairo, Beirute e Paris, sempre escrevendo artigos sobre a emancipação palestina e colaborando com as atividades da Organização para a Libertação da Palestina. Em 1988, escreveu a Declaração de Argel, também conhecida como a “Declaração da Independência Palestina”, lida publicamente por Yasser Arafat, quando o líder da OLP declarou unilateralmente a criação do Estado Palestino. Mahmoud Darwish foi membro do Conselho Executivo da OLP, do qual afastou-se em 1993, por discordar dos acordos de Oslo. Viveu modestamente de 1996 a 2008, ano de seu falecimento, na cidade de Ramallah, capital da Autoridade Nacional Palestina. O poeta palestino, reconhecido internacionalmente e traduzido para mais de vinte idiomas, foi, nas palavras de Edward Said, “um artista que deu voz a exilados enraizados e às dificuldades dos refugiados presos em armadilhas, a fronteiras em dissolução e identidades em mudança, a exigências radicais e novas linguagens”. Já o autor indonésio Mohamad Goenawan escreveu: “Darwish transforma ruínas em palavras”.

Poesia de resistência
 

A poesia de Mahmoud Darwish – assim como a do sírio Adonis, autor também publicado no Brasil em 2012, traduzido por Michel Sleiman – abandona as medidas métricas e as formas clássicas da poesia árabe, como a cassida e o gazal, adotando o verso livre e um estilo narrativo de dicção coloquial, em que o eu lírico assume, muitas vezes, o caráter de um eu coletivo, a comunidade palestina, em especial a que vive no exílio, tema recorrente em seus versos. Outros temas que comparecem em sua lírica são a natureza, o amor, a poesia, a sensação de ser estrangeiro, o desejo de retorno ao local de origem (a busca de uma origem, real ou imaginada, é um tema caro a autores da literatura moderna, como Joyce, Celan e Kozer). Conforme escreve Paulo Farah, “Gurba, que traduz a experiência de ser um estranho longe do próprio lar e a ideia de estranhamento e alienação (tão usuais aos palestinos), é a palavra que o poeta mais utiliza para se referir ao exílio”. Outras palavras frequentes em sua poesia são rihla (viagem), hajara (emigrar), ada (retornar), dakara (lembrar) e nasiya (esquecer). Ao contrário de Adonis, que adota um estilo metafórico, com imagens abstratas, em que observamos a ressonância do surrealismo, a poesia de Darwish emprega imagens simples, extraídas do cotidiano: o girassol, o cavalo, a oliveira, a rosa, o prego, a chuva. A simplicidade do vocabulário, porém, muitas vezes faz referências à história universal, à geografia do Oriente Médio, à tradição literária e religiosa, como ocorre na curiosa composição Como nun na Surata do Clemente, que dialoga com textos do Corão e com imagens mitológicas, como a da fênix grega. Já no livro Salmos, encontramos uma série de poemas sobre Jerusalém, com referências intertextuais aos livros proféticos do Antigo Testamento, em que a cidade, transformada em personagem, fala na primeira pessoa – recurso poético conhecido como prosopopéia. O exílio do povo hebreu relatado nos textos bíblicos é usado por Darwish como metáfora do êxodo e do sofrimento do povo palestino, e o retorno à terra perdida sinaliza uma utopia ao mesmo tempo pessoal e coletiva: é a recuperação do país, que tem sua própria história e cultura, mas também uma reapropriação de sua infância, de suas lembranças, de suas ligações familiares, enfim, de sua vida.

Na poesia de Darwish, encontramos com frequência o diálogo, à maneira de um teatro poético, como acontece na composição A eternidade do cacto:

— Para onde me levas, pai?
— Em direção ao vento, meu filho…

Este recurso, que permite a construção de uma pequena cena, com o pano de fundo da história palestina a partir de 1948, recorda por vezes as composições de Bertolt Brecht, embora em Darwish o tom épico esteja quase ausente: é um poeta lírico e elegíaco, que observa o heroísmo presente em pequenas situações, como lavar pratos, fazer café, ouvir o rádio, ações convertidas em formas de resistência: o simples fato de existir, de perpetuar sua língua, seus costumes, sua memória, já faz do palestino um combatente do sionismo, que procura apagar todos os vestígios da existência desse povo, demolindo suas aldeias, mudando os nomes das ruas, reescrevendo a história. A poesia, para Darwish, é uma forma de resistência: é a afirmação de uma identidade, pessoal e coletiva, e a reconstrução de um país pela palavra poética.


A TERRA NOS É ESTREITA


A terra nos é estreita. Ela nos encurrala no último desfiladeiro
E nós nos despimos dos membros
Para passar.
A terra nos espreme. Fôssemos nós o seu trigo para morrer e ressuscitar.
Fosse ela a nossa mãe para se compadecer de nós.
Fôssemos nós as imagens dos rochedos
que o nosso sonho levará como espelhos.
Vimos o rosto de quem, na derradeira defesa da alma,
o último de nós matará.
Choramos pela festa dos seus filhos e vimos o rosto
Dos que despenham nossos filhos pela janela deste último espaço.
Espelhos que a nossa estrela polirá.
Para onde irmos após a última fronteira?
Para onde voarão os pássaros após o último céu?
Onde dormirão as plantas após o último vento?
Escreveremos nossos nomes com vapor
carmim, cortaremos a mão do canto para que nossa carne o complete.
Aqui morreremos. No último desfiladeiro.
Aqui ou aqui… plantará oliveiras
Nosso sangue.

(Poema de Mahmoud Darwish traduzido por Paulo Farah.)

Claudio Daniel é poeta, ensaísta, tradutor e editor da revista Zunái. Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, publicou mais de 20 livros de prosa e poesia, entre eles Figuras metálicas (2004), Fera bifronte (2009) e Cores para cegos (2012).  É membro do Comitê pelo Estado da Palestina Já e filiado ao PCdoB.