A guerra do ocidente contra a África
A imagem clássica da África, difundida pela imprensa-empresa ocidental – um saco gigante, cheio até a boca de guerras infindáveis, fome, crianças abandonadas – cria a ilusão de um continente que dependeria existencialmente do que lhe dê a caridade ocidental.
A verdade é exatamente o contrário disso. O ocidente é que depende existencialmente do que extráia da África. O que o ocidente obtém da África é obtido de várias, muitas maneiras. Dentre essas maneiras, os fluxos ilícitos de recursos; os lucros que, invariavelmente, acabam nos cofres dos bancos ocidentais pelas trilhas dos paraísos fiscais, como já está fartamente documentado no livro Poisoned Wells [Poços envenenados], de Nicholas Shaxson. Ou pelo mecanismo de extorsão do sistema das dívidas nacionais, pelo qual bancos ocidentais emprestam dinheiro a governantes militares, quase sempre postos no poder com a ajuda de forças ocidentais, como Mobutu, ex-presidente do Congo; esses governantes apropriam-se do dinheiro emprestado, quase sempre em contas privadas no próprio banco que emprestou ao país, cabendo ao país a missão de pagar juros exorbitantes que crescem exponencialmente.
Pesquisa recente de Leonce Ndikumana e James K. Boyce descobriu que mais de 80 centavos de cada dólar emprestado deixaram o país devedor em “voos do capital”, no período de um ano, sem jamais terem sido investidos no país devedor; e que $20 bilhões são drenados da África, por ano, como pagamento “do serviço da dívida” desses “empréstimos” essencialmente fraudulentos.
Outra via pela qual a África serve ao Ocidente, muito mais que o contrário, é o saque de minérios. Países como a República Democrática do Congo são saqueados por milícias armadas que roubam recursos naturais do país e os revendem a preços inferiores aos dos mercados a empresas ocidentais; muitas dessas milícias são controladas de países vizinhos, como Uganda, Ruanda e Burundi, os quais, por sua vez, são patrocinados pelo ocidente – como relatam rotineiramente os relatórios da ONU.
E há também a via, talvez a mais importante, pela qual a África serve ao Ocidente, muito mais que o contrário: os preços escandalosamente baixos pagos na compra de matérias primas da África e, sempre, da força de trabalho africana que minera minérios, cultiva o que seja cultivável ou colhe o que tenha de ser colhido. Assim acontece que a África, de fato, subsidia os altos padrões de vida no ocidente e as empresas e corporações ocidentais.
Esse é o papel atribuído à África pelos donos da economia capitalista ocidental: fornecedora de recursos e de mão de obra de baixo preço. Para que o trabalho e os recursos continuem baratos, exige-se, basicamente, que a África continue subdesenvolvida e pobre; se prosperar, os salários crescem; se se desenvolver em termos tecnológicos, os preços dos recursos se somarão ao valor agregado antes da exportação; e valor agregado tem de ser pago.
Assim sendo, a extração de petróleo e de recursos minerais a baixo preço depende de manter os estados africanos frágeis e desunidos. A República Democrática do Congo, por exemplo – cujas minas produzem dezenas de bilhões de dólares de minérios todos os anos – só arrecadou, em recente ano fiscal, miseráveis $32 milhões de impostos sobre material extraído das minas, por causa das guerras por procuração que o ocidente mantêm ativas na região, entre milícias patrocinadas pelo ocidente.
A União Africana (UA), criada em 2002, surgiu como ameaça nova contra tudo isso: um continente africano mais integrado e unificado, não seria tão facilmente saqueado. O que mais preocupou os estrategistas ocidentais foram os aspectos financeiros e militares da unificação africana. Num nível financeiro, os planos para a constituição de um Banco Central Africano (que criaria uma moeda africana única, o dinar, com lastro-ouro) ameaçariam gravemente a capacidade de EUA, Grã-Bretanha e França para continuar a saquear o continente. Todo o comércio africano feito mediante o dinar-ouro implicaria, em última instância, que os países ocidentais teriam de pagar em ouro por recursos africanos que comprassem, não mais, como até agora, em libras, francos ou dólares que, bem feitas as contas, sempre podem ser impressos em papel podre.
As duas outras instituições financeiras previstas pela União Africana – o Banco Africano de Investimentos e o Fundo Monetário Africano – também comprometeriam fatalmente a capacidade de instituições como o Fundo Monetário Internacional para manipular as políticas econômicas dos países africanos mediante seu monopólio das finanças. Como o economista Jean-Paul Pougala mostrou, o Fundo Monetário Africano, com capital inicial previsto de $42 bilhões “rapidamente suplantará as atividades africanas do Fundo Monetário Internacional, o qual, com apenas $25 bilhões, conseguiu pôr de joelhos o continente inteiro e obrigou a África a engolir um processo muito questionável de privatizações, forçando os países africanos a converter-se em monopólios privados.”
Além desses desenvolvimentos fiscais potencialmente ameaçadores, houve também movimentos no front militar. A reunião de cúpula da União Africana em 2004 em Sirte, Líbia, decidiu elaborar uma Carta de Defesa e Segurança Comum Africana, que incluía um artigo que estipulava que “qualquer ataque contra um país africano é considerado ataque contra o continente como um todo” – copiada, de fato, da Carta da OTAN. Em seguida, em 2010, foi criada uma Força Reserva Africana (FRA), com delegação para defender e fazer valer as definições da Carta de Defesa. Bem evidentemente, se a OTAN tivesse de desmontar a unidade africana pela força das armas, quanto mais depressa agisse, melhor para a OTAN.
Mas a constituição da Força de Reserva Africana representou, além de uma ameaça, também uma oportunidade. Embora houvesse, sem dúvida, a possibilidade de ela vir a ser força genuína para a independência, para resistir ao colonialismo e para defender a África contra a agressão imperialista, criava-se, simultaneamente, a possibilidade de, adequadamente manobrada e sob a liderança adequada, aquela mesma força converter-se em seu oposto – uma força para promover a subjugação colonial, ligada numa cadeia de comando ocidental. As apostas eram – e são – altíssimas.
Os preparativos militares dos ocidentais na África
O ocidente também já iniciara seus preparativos militares para a África. O declínio econômico do ocidente, além da ascensão da China, indicava que o ocidente já não poderia depender tão essencialmente da chantagem econômica e da manipulação financeira para manter o continente fraco e subjugado. Vendo claramente que isso implicava a necessidade crescente de ação militar para manter a dominação, documento publicado em 2002 pela Iniciativa Grupo de Política para o Petróleo Africano [orig. African Oil Policy Initiative Group] recomendava que “um foco novo e vigoroso sobre a cooperação militar dos EUA na África subsaariana inclua o projeto de uma estrutura de comando militar subunificada que possa produzir dividendos significativos na proteção dos investimentos dos EUA.” Essa estrutura veio à luz em 2008, sob o nome de Comandos dos EUA na África, AFRICOM.
Contudo, os custos – econômicos, militares e políticos – da intervenção direta no Iraque e no Afeganistão (só o custo da guerra do Iraque já ultrapassa os 3 trilhões de dólares) indicavam que o AFRICOM teria de depender basicamente de tropas locais, para o serviço de guerrear e morrer. O AFRICOM teria de ser o corpo que coordenaria (e coordenou) a subordinação de exércitos africanos presos a uma cadeia ocidental de comando. Isso, em outras palavras, converteu exércitos africanos em exércitos ocidentais ‘por procuração’.
O maior obstáculo a esse plano era a própria União Africana, que, em 2008, categoricamente rejeitou qualquer presença de militares dos EUA em solo africano, o que forçou o AFRICOM a instalar seu quartel-general em Stuttgart, Alemanha, humilhação para o presidente G. W. Bush, que já anunciara, pessoalmente, sua intenção de implantar o AFRICOM em território africano. O pior viria em 2009, quando o então líder líbio Muammar Gaddafi – o mais empenhado inimigo das políticas imperialistas no continente – foi eleito para presidir a União Africana. Sob o comando de Gaddafi, a Líbia já se convertera em principal mantenedora e financiadora da União Africana. Agora, o mesmo Gaddafi propunha processo rápido de integração africana, que incluía a constituição de exército africano unificado, moeda única e passaporte único.
O destino de Gaddafi já é de conhecimento público. Depois de montar a invasão da Líbia a partir de um pacote de mentiras ainda maior do que o que servira de pretexto para a invasão do Iraque, a OTAN destruiu a Líbia, reduziu o país à condição de mais um estado africano falhado e facilitou a tortura e o assassinato de Gaddafi. Assim se viu livre de seu principal opositor.
Naquele momento, tudo levava a crer que a União Africana teria sido domada. Três de seus membros – Nigéria, Gabão e África do Sul – votaram a favor da intervenção militar na Líbia, no Conselho de Segurança da ONU; e o novo presidente, Jean Ping, apressou-se a reconhecer o novo governo que a OTAN impôs na Líbia e pôs-se a denegrir as realizações de Gaddafi. Fez mais: proibiu a assembleia da União Africana de fazer um minuto de silêncio, depois do assassinato de Gaddafi.
Mas esse quadro não durou. Os sul-africanos foram os primeiros a arrepender-se do apoio à intervenção; nos meses seguintes, o presidente Zuma e o ex-presidente Thabo Mbeki fizeram sérias críticas à OTAN. Zuma disse – com razão – que a OTAN agira ilegalmente ao impedir o cessar fogo e as negociações que a Resolução da ONU exigia, já intermediados pela União Africana e com os quais Gaddafi já concordara. Mbeki foi além: disse que o Conselho de Segurança da ONU, ao ignorar as propostas da União Africana, estava tratando “os povos da África com absoluto desprezo”, o que fez aumentar “a sanha das potências ocidentais para intervir em nosso continente, inclusive com força armada, para proteger os próprios interesses, sem considerar a posição dos próprios africanos.”
Experiente diplomata sul-africano, do Departamento de Relações Internacionais do Ministério de Relações Exteriores da África do Sul, disse que “muitos estados da Comunidade Sul Africana de Desenvolvimento [orig. Southern African Development Community, SADC], sobretudo África do Sul, Zimbábue, Angola, Tanzânia, Namíbia e Zâmbia, que tiveram papel chave nas lutas de libertação sul-africanas, não estavam satisfeitos com o modo como Ping conduziu a questão do bombardeio da Líbia pelos jatos da OTAN.” Em julho de 2012, Ping foi forçado a deixar a presidência da União Africana e foi substituído – com apoio de 37 estados africanos – por Nkosazana Dlamini-Zuma, ex-ministra de Relações Exteriores da África do Sul, braço direito de Mbeki e, bem claramente, militante do campo oposto ao dos capitulacionistas de Ping. Mais uma vez, a União Africana estava sob comando de forças comprometidas com genuína independência.
O assassinato de Gaddafi, porém, não tirou de campo apenas um poderoso membro da União Africana; removeu também o eixo em torno do qual girava todo o sistema de segurança regional na região do Sahel-Sahara. Usando cuidadosa e complexa mistura de força, projeto e desafio ideológico e negociação, a Líbia de Gaddafi sempre foi a cabeça de um sistema de segurança transnacional que conseguira impedir que milícias salafistas se implantassem na região – como reconheceu, em 2008, o embaixador Christopher Stevens, dos EUA: “O governo da Líbia empreendeu operações agressivas para interromper o fluxo de combatentes estrangeiros, inclusive com monitoramento cerrado dos portos e aeroportos de entrada, e rechaçou o apelo ideológico do Islã radical (…). A Líbia coopera com estados vizinhos no Saara e Sahel, para conter o fluxo de combatentes extremistas e terroristas transnacionais. Muammar Gaddafi negociou recentemente um muito divulgado acordo com líderes tribais tuaregues da Líbia, Chade, Niger, Mali e Argélia, conseguindo que desistissem de suas aspirações separatistas e das práticas de contrabando (de armas e de extremistas transnacionais) em troca de assistência para o desenvolvimento dos seus países e apoio financeiro (…) Nossa avaliação é que o fluxo de combatentes estrangeiros da Líbia para o Iraque e o fluxo reverso de veteranos do Iraque para a Líbia diminuiu por causa da cooperação entre a Líbia e outros estados” – disse Stevens.
Essa “cooperação entre a Líbia e outros estados” refere-se à CEN-SAD (Community of Sahel-Saharan States / Comunidade de Estados Sahel-Saharianos), organização lançada por Gaddafi em 1998 visando ao livre comércio, livre movimentação de pessoas e desenvolvimento regional de seus 23 estados-membros, mas com foco principal na segurança mútua e na paz. Além de conter a influência das milícias salafistas, a CEN-SAD desempenhou papel chave mediando conflitos entre Etiópia e Eritreia e na região do rio Mano; e negociou solução duradoura e sustentável para a rebelião no Chade. A CEN-SAD tinha sede em Trípoli e a Líbia, sem dúvida, era a principal força do grupo. De fato, o apoio da CEN-SAD foi fator determinante para a eleição de Gaddafi à presidência da União Africana em 2009.
A própria eficácia desse sistema de segurança local foi um duplo golpe contra a hegemonia do ocidente na África: não apenas aproximou a África de uma condição de paz, na qual a prosperidade local tornava-se possível, como, também, simultaneamente, esvaziava o pretexto chave para todas as intervenções militares do ocidente no continente. Os EUA haviam criado uma sua ‘Parceria de Contraterrorismo Trans-Sahara’ [orig. ‘Trans-Sahara Counter-Terrorism Partnership’ (TSCTP)], mas, como Mutassim Gaddafi (conselheiro de Segurança Nacional da Líbia) explicou à ex-secretária de Estado Hillary Clinton em Washington em 2009, a “Comunidade de Estados Sahel-saharianos (CEN-SAD) e a Força de Reserva tornam dispensável qualquer TSCTP.”
Enquanto Gaddafi esteve no poder e comandou um efetivo e poderoso sistema de segurança regional, as milícias salafistas no Norte da África não podiam ser usadas como “terrível ameaça” para justificar invasões e ocupação pelo ocidente, para salvar os nativos desamparados. Ao conseguir fazer o que o ocidente diz desejar (mas, em todos os pontos, fracassa sempre) – neutralizar o “terrorismo islamista”– a Líbia tirou dos imperialistas um pretexto chave para todas as guerras que fizeram contra a África. Ao mesmo tempo, impediram que as milícias continuassem a desempenhar outra função histórica que sempre tiveram, servindo ao ocidente como força ‘alugada’, que agia por procuração, para desestabilizar estados seculares independentes, como Mark Curtis documentou em seu excelente Secret Affairs. O ocidente apoiou esquadrões da morte salafistas em campanhas para desestabilizar a URSS e a Iugoslávia, com grande sucesso; e planejava fazer o mesmo contra a Líbia e a Síria.
A África depois de Gaddafi
Com a OTAN trabalhando para fazer da Líbia estado falhado, esse sistema local foi destroçado. As milícias salafistas não receberam só equipamento militar ultra moderno, cortesia da OTAN; receberam também carta branca para saquear os arsenais do governo líbio e um paraíso seguro a partir do qual organizar ataques por toda a região. As fronteiras entraram em colapso, com a aparente conivência do novo governo líbio e de seus patrocinadores na OTAN – como registra um trágico relatório da empresa de segurança global Jamestown Foundation.
Segundo esse relatório, “Al-Wigh era importante base estratégica do regime Gaddafi, localizada em região próxima das fronteiras com Niger, Chade e Argélia. Depois da queda de Gaddafi, a base passou a ser controlada por combatentes da tribo Tubu, sob comando nominal do Exército Líbio, mas sob comando local de um comandante tubu, Sharafeddine Barka Azaiy, que reclamou que “durante a revolução, controlar essa base era assunto de máxima importância estratégica. Conseguimos ocupar a base. Agora nos sentimos abandonados. Não temos equipamento suficiente, nem viaturas nem armas para proteger a fronteira. Embora sejamos parte do exército nacional, ninguém nos paga soldo.”
O relatório conclui que “o Conselho de Governo Nacional Líbio (GNC) e o que havia antes dele, Conselho Nacional de Transição (TNC), falharam na segurança de importantes instalações militares no sul e permitiram que a segurança de vastas porções de fronteira no sul fossem de fato ‘privatizadas’ nas mãos de grupos tribais, conhecidos há muito tempo pela prática, ali tradicional, de contrabando. Isso, por sua vez, põe em risco a segurança da infraestrutura do petróleo líbio e a segurança das regiões vizinhas. Com a venda e o transporte de armas líbias já convertidos em mini-indústria na era pós-Gaddafi, as imensas quantidades de dinheiro com que conta a Al-Qaeda no Maghreb Islâmico conseguem abrir muitas portas, em região empobrecida e subdesenvolvida. Ainda que a invasão francesa no norte do Mali consiga desalojar os militantes islamistas, nem assim haverá o que impeça os mesmos grupos de estabelecer novas bases nas áreas mal controladas do deserto selvagem no sul da Líbia. Enquanto não houver estruturas de segurança controladas por autoridade central na Líbia, o interior desse país continuará a ser ameaça de segurança para todas as demais nações na região.”
A vítima mais óbvia dessa desestabilização foi o Mali. Não há analista sério que não saiba que a tomada do Mali pelos os salafistas é consequência direta da ação da OTAN na Líbia. Um dos resultados do avanço da desestabilização promovida pela OTAN no Mali é que a Argélia – que perdeu 200 mil cidadãos numa guerra civil contra os islamistas nos anos 1990s – está hoje cercada por milícias salafistas pesadamente armadas em duas fronteiras: ao leste (fronteira com a Líbia) e ao sul (fronteira com o Mali). Depois da destruição da Líbia e da derrubada de Hosni Mubarak no Egito, a Argélia é hoje o único estado do norte da África ainda governado pelo partido anticolonialista que conquistou a independência contra a tirania das forças coloniais europeias.
Esse postura de independência ainda está bem evidente na atitude da Argélia em relação à África e à Europa. No front africano, a Argélia é forte apoiadora da União Africana, contribuindo com 15% do orçamento da organização; e tem 16 bilhões de dólares empenhados na constituição do Fundo Monetário Africano, o que faz dela o maior contribuinte do FMA. E nas relações com a Europa, a Argélia tem-se recusado repetidamente a fazer o papel de nação subordinada que a Europa espera dela. Argélia e Síria foram os dois únicos países da Liga Árabe que votaram contra o bombardeio da OTAN contra a Líbia e a Síria. E, como se sabe, a Argélia deu abrigo a membros da família Gaddafi que fugiam de ser massacrados pela OTAN.
Mas, do ponto de vista dos estrategistas europeus, muito mais preocupante que tudo isso é, provavelmente, que a Argélia – com o Irã e a Venezuela – constituem o que eles chamam de uma “[Organização dos Países Produtores de Petróleo] OPEC linha dura”, empenhados em vender caro o acesso aos seus recursos nacionais. Como se lia recentemente em furibundo artigo publicado no London Financial Times, “o nacionalismo dos recursos” impera. Resultado disso, “as Grandes do Petróleo padecem muitas dificuldades na Argélia; as empresas reclamam da burocracia que as esmaga, dos controles fiscais duríssimos e do comportamento abusivo da Sonatrach, a empresa estatal de energia, que participa de quase todos os contratos de petróleo e gás.” Na sequência, o artigo observa que a Argélia implementou “um controverso imposto monstro” em 2006, e cita um executivo de petroleira ocidental em Argel, que disse que “as empresas [de petróleo] estão fartas da Argélia.”
É instrutivo observar que o mesmo jornal também acusou a Líbia de “nacionalismo dos recursos” – ao que parece, o crime mais hediondo, na avaliação daqueles leitores –, apenas um ano antes da invasão da OTAN.
Evidentemente, “nacionalismo dos recursos” significa precisamente que os recursos de uma nação sejam usados, em primeiro lugar, para promover o desenvolvimento em benefício da própria nação, não em benefício de empresas estrangeiras e, nesse sentido, a Argélia bem merece a ‘acusação’. A Argélia exporta mais de cerca de $70 bilhões em petróleo por ano, e muito desse dinheiro tem sido usado em investimentos massivos em moradia e saúde pública, além de um financiamento recente de $23 bilhões, num programa de estímulo para pequenos comerciantes. De fato, esses altos níveis de investimentos sociais são considerados por muitos como a principal razão pela qual não se viram levantes da “Primavera Árabe” na Argélia, em anos recentes.
A mesma tendência de “nacionalismo dos recursos” também aparece anotada em recente material distribuído por STRATFOR, empresa de inteligência global, que escreveu que “a participação estrangeira na Argélia sofreu, em larga medida, por causa de políticas protecionistas aplicadas pelo governo militar fortemente nacionalista.” Seria evento particularmente preocupante, diz STRATFOR, em momento em que a Europa aproxima-se de situação em que se tornará muito mais dependente do gás argelino, com as reservas no Mar do Norte em processo de esgotamento. “Desenvolver a Argélia como grande exportador de gás natural é imperativo econômico e estratégico para os países da União Europeia, em momento em que a produção da commodity entra em declínio terminal na próxima década. A Argélia já é importante fornecedor de energia para o continente, mas a Europa precisará de acesso expandido àquele gás natural, para suprir o declínio de suas reservas indígenas” – diz STRATFOR.
Os planos das Grandes do Petróleo para a África
Prevê-se que as reservas britânicas e holandesas de gás no Mar do Norte estarão esgotadas no final dessa década; e que as da Noruega entrarão em acentuado declínio a partir de 2015. Com a Europa temerosa de tornar-se superdependente do gás da Rússia e da Ásia, o relatório anota que a Argélia – com reservas de gás natural estimadas em 4,5 trilhões de metros cúbicos, e reservas de gás de xisto de 17 trilhões de metros cúbicos – tornar-se-á fornecedora essencial. Mas o maior obstáculo para que a Europa controle esses recursos ainda é o governo da Argélia – com suas “políticas protecionistas” e seu “nacionalismo dos recursos”.
Sem dizê-lo abertamente, o relatório conclui sugerindo que uma Argélia desestabilizada e convertida em “estado falido” seria sempre preferível a uma Argélia sob governo “protecionista”. E sugere que “o envolvimento que se vê hoje das majors de energia da União Europeia em países de alto risco, como Nigéria, Líbia, Iêmen e Iraque, indica saudável tolerância à instabilidade e a problemas de segurança.”
Em outras palavras: em tempos de segurança privada, o Big Oil já não carece de estabilidade ou da proteção do estado para seus investimentos. Zonas de desastre são toleráveis. Intoleráveis, só estados fortes e independentes.
Já aparece, portanto, no radar dos interesses estratégicos da segurança energética do ocidente, uma Argélia reduzida a estado falhado, exatamente como o Iraque, o Afeganistão e a Líbia um dia apareceram no mesmo radar.
Com isso em mente, é fácil ver como a política aparentemente contraditória de armar milícias salafistas num primeiro momento (na Líbia) e imediatamente depois passar a bombardeá-las (no Mali) faz, de fato, perfeito sentido. A missão francesa de bombardeio visa, nas próprias palavras dos franceses, à “total reconquista” do Mali. Na prática, implica empurrar os rebeldes gradualmente para o norte do país. Quer dizer: diretamente para a Argélia.
Vê-se afinal que a deliberada destruição do sistema de segurança que a Líbia coordenava em toda a região do Sahel-Sahara trouxe vastos benefícios para os que contam com que a África permaneça presa no papel de fornecedora subdesenvolvida de matéria prima barata. O processo já armou, treinou e assegurou território para milícias que, em seguida, serão usadas na destruição da Argélia – o único grande estado rico em recursos naturais do norte da África ainda empenhado numa genuína unidade africana, com independência. A operação também persuadiu alguns africanos de que – diferente da rejeição unânime contra o AFRICOM, há pouco tempo – eles realmente precisam, hoje, de que o ocidente os “proteja” daquelas milícias.
Como a clássica venda de proteção à moda das máfias, o ocidente cuida de tornar sua proteção “necessária”: arma e atiça ele mesmo as forças contra as quais, adiante, as pessoas terão de ser protegidas.
Agora, a França está ocupando o Mali; os EUA estão montando uma nova base de drones no Niger; e o primeiro-ministro britânico David Cameron fala de seu compromisso com uma nova “guerra ao terror” que se alastrou sobre seis países e durará décadas.
Mas nem tudo caminha bem, no front imperialista. Longe disso, porque o ocidente, sem dúvida alguma, contava com não ter de mobilizar seus próprios soldados. O objetivo inicial era sugar a Argélia e colhê-la exatamente na mesma armadilha já usada com sucesso contra a União Soviética nos anos 1980s – exemplo anterior de Grã-Bretanha e EUA, patrocinando violenta insurgência sectária nas fronteiras do território inimigo, para atrair o inimigo-alvo para guerra destrutiva de retaliação. A guerra da URSS no Afeganistão, no final, não apenas fracassou: ela também, no processo, destruiu a moral e a economia do país e foi fator chave por trás da autodestruição do estado soviético em 1991.
Mas a armadilha para pegar a Argélia não funcionou. A jogada de Clinton e François Hollande, fazendo a cena do ‘policial bonzinho’ e ‘policial durão’ – uma “pressionando para a ação” em Argel, em outubro; e as ameaças dos franceses, dois meses depois – deu em nada.
Simultaneamente, em vez de se manterem fiéis ao roteiro, os imprevisíveis salafistas, na função de simulacros locais do ocidente, optaram por expandir sua base no norte do Mali, não na direção da Argélia, como previsto, mas para o sul, rumo a Bamako, ameaçando desestabilizar um regime aliado do ocidente, ali instalado, por golpe, menos de um ano antes. Os franceses foram obrigados a intervir, para mandar os salafistas de volta para o norte, de volta contra o estado que, desde o início, deveria ter sido seu alvo real.
Até aqui, essa invasão parece contar com certo nível de apoio entre os africanos que temem os salafistas simulacros do Ocidente, ainda mais do que temem os próprios soldados ocidentais. Mas, à medida que a ocupação se aprofunde, desconstruindo a credibilidade dos salafistas e ultrapassando-os em número de soldados ocupantes, ao mesmo tempo em que se for conhecendo a brutalidade dos ocupantes e de seus aliados… então, veremos. Veremos quanto tempo durará tudo isso.
Publicado em 20/2/2013, por Dan Glazebrook, no Al-Ahram Weekly, Cairo
http://weekly.ahram.org.eg/News/1544/20/The-West%E2%80%99s-war-on-Africa.aspx