Cadê as negras nas revistas adolescentes?
Já faz um tempo, recebi de uma leitora um belo livro sobre como as revistas adolescentes no Brasil veem e retratam a mulher negra. Usei um dos capítulos num curso de extensão sobre análise dos preconceitos na mídia, e foi muito produtivo.
Hoje quero publicar um post dessa autora falando um pouquinho desse seu projeto. Carolina dos Santos de Oliveira é historiadora, mestre em educação, participante do grupo de ações afirmativas na UFMG, e desde 2007 trabalha com a implementação da lei 10.639/03, que trata do ensino de história da África e cultura afro-brasileira. Ela também trabalha com estudos articulando raça, gênero e mídia. O livro Adolescentes Negras, resultado de sua dissertação de mestrado, está à venda na livraria da editora em BH, mas é possível comprá-lo por email direto com a autora: [email protected] . E, acredite, vale muito a pena.
Hoje, quando lavo meus cabelo crespos e os deixo livres, percebo ao meu redor diversos tipos de olhares, desde reprovação até de admiração (“Que coragem!”). Mas para que hoje, já na casa do 30, eu possa me sentir bem com essa imagem, que reforça que sou uma mulher negra, o caminho foi longo.
Lendo revistas femininas desde a pré adolescência, descobri que eu não estava adequada aos padrões estéticos da revista, nem da TV, nem de nada…
A inquietação que surgiu nessa época me acompanhou pela vida. Mais tarde, como professora de história, vi a angustia de não se ver representada se repetir em minhas alunas. Vi também que as revistas estavam mudando: da total ausência de adolescentes negras, havia uma presença incipiente nas páginas. Surgiu nesse momento uma questão de pesquisa: como essa presença se apresentava? O que ela significaria?
Foi nesse contexto que iniciei minha pesquisa de mestrado em educação. Considerando o poder “educativo” da mídia e que ela não se constitui do “nada” — ela se alimenta do que a sociedade lhe fornece e aceita receber, num processo de alimentação cíclica –, considerei que podia “ler” como as relações raciais e o racismo estavam se apresentando no início do século XXI.
O racismo cordial que impera no Brasil nos dificulta e às vezes impede de percebê-lo, e nisso reside sua crueldade. Sem percebê-lo, não existe; sem existir, não o combatemos. Através da análise de revistas femininas em geral e especificamente as voltadas para as adolescentes, foi possível ver essa cordialidade.
Trabalhei principalmente com a revista Atrevida, uma das maiores do Brasil para adolescentes. A princípio a revista não “racializa” suas leitoras, ou seja, não marca o pertencimento racial do seu público-alvo. No entanto, essa ausência de marcação revela que, seguindo o modelo de racismo no Brasil, ao falar de sujeitos brancos não é necessário mencionar seu pertencimento étnico, uma vez que esses são considerados os representantes naturais da espécie.
As adolescentes negras aparecem pontualmente em episódios em que são convidadas a “corrigir” e “educar” seus corpos em nome, segundo a revista, não apenas da beleza, mas da “saúde”. As revistas femininas são publicações baseadas no entretenimento e não na informação; a novidade é o que interessa, e não os acontecimentos atuais. Por isso seu discurso é o de ser algo ou alguém pelo consumo. Com a imagem da mulher negra não é diferente. Essa adolescente negra é convidada a manipular e modificar seu corpo. Ela é sempre alertada de que pode melhorar, mas sempre com muito trabalho. Trabalho expresso em expressões comumente associadas aos cabelos crespos e corpos negros: lidar, domar, rebeldes, indisciplinados.
Diante da criminalização do racismo, da formação de uma classe média negra que pressiona por produtos e serviços que lhes atenda, das lutas de várias décadas travadas pelos movimentos negros (que resultaram em diversas conquistas políticas como a lei 10.639/03 e a criação da SEPPIR, entre outras), os grupos dominantes se apropriam do discurso vindo desses movimentos, e o reelaboram para iludir uma inclusão e ao mesmo tempo esvaziar o discurso original.
Na contramão de estudos realizados em diversas áreas, em que sabemos que as hierarquias raciais são socialmente — e não biologicamente — produzidas, a revista insiste em “biologizar” as diferenças e trazer soluções para a correção dos problemas com “neutralidade científica”.
Existem muitos exemplos em diversas edições da revista pesquisadas e de outras também, seja com a presença de mulheres negras, seja na sua ausência. Devemos ficar atentas para que esse discurso inclusivo emergente não nos seduza e deixe enganar, como se o racismo estivesse superado. A inclusão de imagens e discursos sobre as adolescentes e mulheres negras representa sim um avanço no que diz respeito a relações raciais no Brasil, mas representa um processo semelhante ao que ocorre na própria sociedade em que a revista está inserida. Um processo cheio de avanços e recuos, carregando as ambiguidades do racismo brasileiro e do mito da democracia racial. Um processo que, pelo tamanho de seus passos, ainda será longo.
Durante minhas pesquisas percebi que para além da questão racial nos deparamos com a questão de gênero, uma vez que as publicações determinam padrões estéticos e de comportamento que as mulheres em geral deve seguir.O resultado dessa análise é meu livro Adolescentes Negras, no qual pretendo levar xs leitorxs a aguçar o olhar para os lugares determinados para mulheres negras na nossa sociedade. Assim, podemos começar a pensar em como mudar essas perspectivas.
Posso dizer que hoje tenho o privilégio de contar com bonecas negras, referências positivas de mulheres negras para apresentar a minha filha e também ao meu filho. Mas não somos uma ilha. Sei que, apesar de todo o meu esforço na formação racial deles, não estamos blindados de sermos vítimas do racismo. Ainda precisamos avançar muito, todxs nós.