Dez anos de governo do PT: comemorar, sem relaxar
Artigo publicado na edição 109 da revista Teoria e Debate
O Partido dos Trabalhadores tem de comemorar seus primeiros dez anos de governo. Tem motivos. Soube promover mudanças estruturais, sociais e econômicas. O Brasil de hoje está melhor que o Brasil de anos atrás. O PT deve comemorar, mas não pode sonhar, embalado pelos avanços, e relaxar. Muitos dos desafios colocados pelos governos do PSDB (1995-2002) aos governos de Lula e Dilma (2003-2012) já foram superados. A novidade é que os desafios que o PT colocou ao PT são muito maiores. A tarefa da década é muito difícil.
A concepção do Estado mínimo e do governo privatizador foi superada. A visão do Estado mínimo está isolada. Vez por outra, seus representantes, os neoliberais, tentam emplacar aqui ou acolá um argumento ou um cargo no governo. Não têm obtido êxito no embate político. Suas vozes são dominantes somente nos grandes veículos de comunicação.
Concessões, sim, mas não em setores estratégicos
Quando o PT chegou ao governo, o cerco neoliberal era grande e contaminava. Entretanto, as necessidades reais e os desafios cotidianos foram solidificando a cada dia uma posição mais republicana e estatal no interior dos governos Lula e Dilma. A crise de 2008-2009, por exemplo, foi enfrentada com um receituário organizado pelo Estado e a favor de toda a sociedade. Recentemente, com a renovação das concessões do setor elétrico em um processo dirigido pelo governo, todos ganharam com a redução de tarifas.
Os governos do PSDB representaram de forma bastante genuína o minimalismo estatal. Sonhavam em privatizar a Petrobras. Tentaram desmoralizar a empresa e trocar seu nome para Petrobrax. Houve resistência às privatizações. Além da Petrobras, objetivavam privatizar os bancos públicos. Em 1999, o ministro Pedro Malan informou em documento oficial do governo brasileiro dirigido ao FMI (disponível no site do Ministério da Fazenda: “(…) O governo solicitou à comissão de alto nível encarregada do exame dos (…) bancos federais (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, BNB e BASA) a apresentação (…) de recomendações sobre (…) possíveis alienações de participações nessas instituições, fusões, vendas de componentes estratégicos ou transformação em agências de desenvolvimento ou bancos de segunda linha”.
Os governos do PT podem fazer privatizações e concessões, mas não devem e não têm feito em setores e empresas estratégicas. É isso que importa. O neoliberalismo propõe privatizar e fazer concessões em posições estratégicas para que o Estado perca sua capacidade de organizar o mercado e a sociedade. Além disso, minimalistas estatais são, por razões óbvias, contra a construção de novas universidade públicas, contra a realização de concursos para contratação de mais professores e se opõem à construção de novos Centros Federais de Tecnologia (Cefets).
Os governos de Fernando Henrique Cardoso não construíram nem implantaram nenhuma universidade pública e nenhum Cefet. Tornaram os concursos públicos escassos. Nos governos do PT, foram mais de uma dezena de universidades públicas e centenas de Cefets. E milhares de professores prestaram concursos e se tornaram servidores.
Trajetória concentradora de renda foi revertida
Nestes dez anos, a trajetória concentradora de renda foi revertida. Todos os índices que medem o grau de distribuição da renda entraram em trajetória benigna para os trabalhadores. Hoje, a participação das rendas do trabalho como proporção do PIB é maior que a do capital. Dez anos atrás as rendas do capital ocupavam a maior parcela.
Atualmente, o salário mínimo possui uma regra que garante a manutenção de seu poder de compra ao longo do tempo. E se houver crescimento econômico haverá valorização real do mínimo. Essa regra foi elaborada durante o governo do presidente Lula e aprovada no Senado no governo da presidenta Dilma. O salário mínimo, rotulado de custo empresarial durante os governos de FHC, foi encarado como elemento de melhoria de vida do trabalhador, de forma coerente com a história e o código genético do PT.
No ano 2000, em documento oficial do Ministério da Fazenda do período FHC (disponível no site da instituição), avaliava-se que
“…o aumento no valor do salário mínimo pode vir acompanhado de um aumento da informalidade e uma redução do grau de cobertura do salário mínimo, sem que se atinja, ao menos plenamente, o objetivo de promover um ganho real nos rendimentos dos trabalhadores com menor remuneração”.
A teoria dos tempos neoliberais de FHC de que aumentos do salário mínimo poderiam provocar maior informalidade no mercado de trabalho foi colocada à prova nos últimos dez anos. Estava fragorosamente errada. Houve um aumento acentuado do salário mínimo acompanhado de uma redução da informalidade do mercado de trabalho. Aconteceu exatamente o oposto da previsão neoliberal: milhões de empregos formais foram criados nos governos Lula e Dilma. E hoje, diferentemente do passado, a maioria dos trabalhadores possui relações formais de trabalho.
No período em que as ideias neoliberais estavam no auge, alardeava-se que os empregos formais não cresciam porque a formalização era muito custosa para os empresários. Supostamente, uma reforma que retirasse direitos trabalhistas seria boa para as empresas, que teriam custos menores, e boa para os trabalhadores informais, que ganhariam carteira assinada.
Essa crença neoliberal estava errada. Está provado que quando há crescimento econômico a forma de ocupação que mais se beneficia é o emprego com carteira assinada. Outras, como o trabalho informal ou por conta própria, são menos influenciadas pelo crescimento. Não havia aumento de empregos formais no período FHC porque a economia estava semiestagnada e porque a visão de Estado mínimo predominante tornou os concursos públicos eventos raros. A culpa pela geração medíocre de empregos formais não era dos direitos trabalhistas ou de uma possível recuperação mais ousada do salário mínimo. A culpa era do baixo crescimento.
Durante o período que Fernando Henrique Cardoso governou o Brasil, a economia não podia crescer. A valorização do salário mínimo era modesta (e sempre envergonhada). O crédito, um privilégio das altas classes de renda e dos ricos. O investimento público, cadente. E as estatais que restaram após as privatizações tinham planos de investimentos limitados.
Elementos estimuladores do crescimento
No primeiro mandato do presidente Lula (2003-2006), a economia iniciou um processo de recuperação. Esse impulso inicial ao crescimento decorreu da política de valorização do salário mínimo e da ampliação do crédito para as famílias e as empresas. No segundo (2007-2010), além dos elementos estimuladores que estavam em curso, a política de investimentos públicos e das estatais, que incentivou o investimento privado, foi o elemento-chave.
A presidenta Dilma enfrentou problemas em 2011 e 2012. No primeiro ano, houve pressões inflacionárias e a constatação de gargalos na infraestrutura que limitaram a repetição de altas taxas de crescimento. O governo foi obrigado a desacelerar a economia para ganhar tempo. Foi uma experiência nova para o PT: calibrar a economia para reduzir seu ritmo de crescimento.
Ademais, a crise europeia contaminou o cenário internacional, gerando no Brasil, em menor grau, e no mundo, de forma mais intensa, expectativas empresariais de apreensão e receio em relação ao futuro. Sob essas condições a economia atravessou 2012, um ano em que o governo e empresários não realizaram planos de investimentos que pudessem garantir um crescimento satisfatório. Apesar do modesto crescimento durante o primeiro biênio do mandato da presidente Dilma, a taxa de desemprego se manteve baixa.
Redução drástica do desemprego
Em dez anos, Lula e Dilma aplicaram políticas econômicas e sociais que a reduziram drasticamente. Lula recebeu uma economia com uma taxa de desemprego de dois dígitos, semelhante à que vigora na Europa em crise. Hoje, o índice é menos da metade do que era nos tempos de FHC. Vivemos praticamente uma situação de pleno emprego em certas regiões e em setores econômicos específicos.
Trabalhadores empregados e formalizados ganharam o passaporte para o sistema financeiro. Com o crescimento econômico, microempresas, empresas de porte médio e grandes empresas também foram ao mercado de crédito. O volume de crédito mais que dobrou nos últimos dez anos. O empréstimo bancário deixou de ser um privilégio das classes de rendas mais elevadas e dos ricos. Não há problema algum no endividamento familiar. A estabilidade do mercado de trabalho é a garantia de pagamento das parcelas. E, recentemente, o Banco Central e os bancos públicos (principalmente, a Caixa e o Banco do Brasil) iniciaram um processo de redução das taxas de juros cobradas nos empréstimos. Os bancos privados acompanharam o movimento.
Os diversos vetores positivos da economia formaram as bases para a constituição de um grande mercado de consumo de massa. O volume de vendas do setor varejista dobrou durante os governos do PT. Mais de um terço da população brasileira que era praticamente excluída dos mercados de bens e serviços se transformou em consumidor. Foi isso que possibilitou ao Brasil sair apenas com pequenos arranhões da crise de 2008-2009.
Desafio é socializar o bem-estar
Foram muitas realizações durante os dez anos de governos do PT. Devem ser comemoradas. Não devem, contudo, anestesiar sonhos, planos e projetos. O PT fez o Brasil dar os primeiros e mais importantes passos rumo ao desenvolvimento. Mas agora é preciso muito mais. É isso almejam os milhões de trabalhadores e pequenos empreendedores (chamados por alguns de classe média C). Eles já foram incluídos nos mercados de bens e serviços. O que desejam a partir de agora é bem-estar. Desejam aquela lista de coisas que as classes de renda A e B já possuem e só percebem sua importância quando algum item lhes falta.
Além do emprego e da renda, o que milhões de brasileiros querem é saúde pública de qualidade, educação formal gratuita, transporte barato e eficiente, iluminação pública, coleta de lixo, varrição, saneamento, segurança nas ruas, acesso a água potável etc. Este é um importante desafio da década: socializar o bem-estar, o bem viver.
O governo, assim, precisa aumentar a taxa de investimento público. Um ambiente urbano e rural organizado atrai o investimento privado, essencial para que o desemprego seja mantido em patamares reduzidos. No século 21, a organização das cidades e do campo e a socialização da oferta de equipamentos e serviços públicos dependem, de forma essencial, da utilização de tecnologia. Certamente, precisamos de mais médicos, policiais, fiscais, gestores públicos, mas precisamos também incorporar tecnologia nas atividades do Estado brasileiro para que, com uma maior produtividade, todos possam ser atendidos por serviços que promovem o bem-estar.
Por último, o PT já mostrou sua força eleitoral e sua capacidade de governar para todos, mas ainda não possui instrumentos e expertise para fazer algo que se torna cada dia mais importante: disputar e ser vitorioso em guerras de ideias e ideais. Não foi capaz ainda de construir uma hegemonia de pensamento na sociedade. Essa talvez seja a sua maior debilidade – e um de seus desafios.
Em conclusão, o PT e a sociedade brasileira, principalmente as camadas que auferem rendas mais baixas, têm motivos para comemorar os primeiros e principais passos rumo à cidadania e ao desenvolvimento. As comemorações não devem anestesiar o PT, seus dirigentes e governantes, e sim servir para o estabelecimento de parâmetros para que os desafios da década possam ser superados. O passado ficou no retrovisor, o futuro precisa ser construído e a tarefa será mais difícil. O que ficou para trás será esquecido, as exigências da sociedade estão no para-brisa dianteiro.
João Sicsú é professor do Instituto de Economia da UFRJ e ex-diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Ipea (2007-2011)