Publicada no jornal Valor Econômico de 05/03/2013

Apesar da escassez de terra e água e da falta de escala de suas fazendas, a agricultura chinesa tem conseguido, à exceção da soja, fazer frente à explosão da demanda por alimentos. A produção anual de grãos aumentou em 120 milhões de toneladas na última década, para 571 milhões de toneladas. Mesmo com o forte aumento do consumo, o país produz praticamente todo o arroz, trigo, milho e carne suína que consome, além de ser exportador líquido de carne de frango. A principal fonte de avanço da produção foram ganhos de produtividade, de 20% na década. Entre 2007 e 2011, o gasto dos governos central e regionais com a agricultura cresceu de US$ 54,4 bilhões para US$ 159,6 bilhões anuais.

Apesar da escassez de terra e água e da falta de escala de produção de suas fazendas, a agricultura da China tem conseguido, à notável exceção da soja, fazer frente à explosão da demanda por alimentos no país nos últimos anos – fato até certo ponto obscurecido pelo apetite importador do gigante asiático.

De acordo com os últimos dados do Bureau Nacional de Estatísticas da China, a produção local de grãos aumentou quase 120 milhões de toneladas ao longo da última década, para mais de 571 milhões de toneladas.

Desse modo, as importações chinesas de cereais e farinhas mais relevantes ficaram pouco abaixo de 5 milhões de toneladas em 2011, segundo o Bureau chinês – pouco acima das 3,5 milhões de toneladas registradas em 2001, mas abaixo das 9,7 milhões de 2004.

Mesmo com o expressivo aumento do consumo doméstico nos últimos anos, o país tem se mantido capaz de produzir praticamente todo o arroz, trigo, milho e a carne suína que consome, além de ser um exportador líquido de carne de frango.

Conforme o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), os chineses produziram, nas últimas três safras, uma média de 464,7 milhões de toneladas apenas de arroz, milho, trigo e soja. Trata-se de um crescimento de quase 113 milhões de toneladas na comparação com o resultado médio obtido nas três primeiras safras dos anos 2000.

Só a produção de milho aumentou em 77,5 milhões de toneladas na mesma base de comparação, para 192,7 milhões de toneladas – na última safra, foram 208 milhões. Significa dizer que, em uma década, os chineses acrescentaram à sua produção uma colheita de milho equivalente à do Brasil nesta safra 2012/13. Trata-se de uma expansão comparável apenas à que os Estados Unidos, maior produtor mundial dessa commodity, promoveram para fazer frente à sua demanda por etanol.

Com isso, a produção chinesa tem se mantido relativamente equilibrada em relação ao consumo doméstico, que nas últimas três temporadas foi de 192,5 milhões de toneladas, em média. E, ainda que as importações tenham crescido – de praticamente zero, no início dos anos 2000, para 2,9 milhões na média dos últimos três anos -, o déficit entre a produção e o consumo vem diminuindo desde a temporada 2001/02, quando atingiu 7,5 milhões de toneladas.

Progressos semelhantes são observados nas culturas do arroz e do trigo. Desde o início da década passada, os arrozais chineses ampliaram em 14,5 milhões de toneladas a sua produção, para 140,2 milhões na média das últimas três safras, enquanto o consumo cresceu apenas 4,6 milhões, para 139 milhões. Com isso, os chineses praticamente zeraram o déficit de produção do cereal, que chegou a quase 9 milhões de toneladas, em média, entre 2001/02 e 2002/03.

Já a produção de trigo cresceu em 22,6 milhões de toneladas na comparação, para 117,73 milhões de toneladas, reduzindo o déficit em relação ao consumo de 13,2 milhões para apenas 1 milhão de toneladas na média dos últimos três anos.

De modo geral, a principal fonte de crescimento da produção foram os ganhos de produtividade – na média, o rendimento das lavouras de cereais cresceu 20%, ou mil quilos por hectare desde o início da última década, para 5,7 mil quilos por hectare.

O aumento reflete o maior acesso dos agricultores à tecnologia. Desde 2001, a força empregada por máquinas agrícolas no campo cresceu 85%, para 977,3 milhões de quilowatts, segundo dados oficiais, e o parque de tratores considerados médios e grandes mais do que quintuplicou, para 4,4 milhões de unidades. No período, o uso de fertilizantes químicos, que recebem pesados subsídios, cresceu quase 40% e a área de irrigação, 14,6%.

Os ganhos de produtividade permitiram que a China ampliasse o cultivo de milho em 10 milhões de hectares, ocupando áreas antes semeadas com arroz, trigo e soja. Contudo, a área total dedicada ao plantio de cereais ficou praticamente estável na última década, em pouco mais de 110 milhões de hectares.

O governo chinês tem batido na tecla de modernizar a agricultura a fim de garantir o abastecimento de commodities consideradas essenciais – o tema foi um dos destaques do último plano quinquenal, publicado em 2011.

Entre 2007 e 2011, o gasto dos governos central e regionais para apoiar a agricultura cresceu 193% entre 2007 e 2011, de US$ 54,4 bilhões para US$ 159,6 bilhões anuais – desde o início da década passada, o orçamento se multiplicou por mais de cinco vezes. “Há um grande volume de capital empregado pelo Estado para se aumentar a mecanização das lavouras, a compra de fertilizantes e o acesso a sementes”, disse ao Valor Daron Hoffman, diretor de pesquisa do Rabobank, em Xangai.

A prioridade absoluta do Partido Comunista é garantir a autossuficiência em milho. Em artigo publicado em maio do ano passado no Diário do Povo (o jornal oficial do Partido Comunista) o ministro da Agricultura, Han Changfu, afirmou que, “na estratégia chinesa de segurança alimentar, o milho precisa ocupar uma posição proeminente” e que o país precisa “evitar resolutamente que o milho chinês se transforme em uma segunda soja”.

Changfu se refere a um fato que os brasileiros conhecem bem. Em pouco mais de uma década, a demanda chinesa por soja explodiu – de pouco mais de 28 milhões de toneladas para além de 70 milhões -, mas a produção encolheu, o que transformou a China na principal peça do tabuleiro do comércio mundial da commodity. Só nesta safra 2012/13, o país deverá desembarcar 63 milhões de toneladas do grão em seus portos, quase cinco vezes mais do que há uma década. Em 2011, os chineses desembolsaram quase US$ 30 bilhões para pagar essa conta.

O milho é vital para que a China assegure o crescimento sustentável de sua criação de suínos – desde 2001, a produção de carne suína cresceu em mais de 10 milhões de toneladas, para 50,5 milhões em 2011. Como as necessidades de consumo da China respondem por mais da metade do comércio mundial da commodity, conclui Changfu, “as importações não resolvem o problema da nossa demanda crescente”.

Para Changfu, a demanda por milho é particularmente sensível ao aumento da renda em países de renda intermediária, como é o caso da China, por causa do incremento do consumo de proteínas animais. Entre 1965 e 2000, exemplifica, o uso do grão como ração animal cresceu, em média, 1,6% ao ano nos Estados Unidos, mas 4,1% no Japão. Em 2010, o consumo chinês de carnes, ovos, leite e peixes havia crescido 23%, 18,5%, 105%, e 31,8% em relação a 2003.

Finalmente, o ministro chinês aposta no potencial de crescimento da produtividade da commodity naquele país. “Na China, o milho é o produto cuja demanda mais cresce, mas também aquele com maior potencial para aumento de produtividade”.

O rendimento do milho na China é, na média, apenas a 21º do mundo, segundo ele. Em 2011, os chineses colheram 5,8 mil quilos de milho por hectare, ainda distante dos mais de 9 mil nas lavouras dos Estados Unidos. Mesmo dentro do país, as diferenças ainda são expressivas. Na Província de Shandong, a produtividade média é de 6.540 quilos por hectare, 990 quilos maior do que na Província de Henan ou, ainda, 2.430 quilos maior do que em Anhui.

Segundo Changfu, a China pode ampliar em mais de 750 quilos por hectare a produtividade média do milho apenas ampliando-se a densidade das lavouras, ainda baixa em relação aos países desenvolvidos. O ministro afirma ainda que o país pode ampliar a área de milho em aproximadamente 10% até 2020.

Estrutura de produção

Apesar do aumento expressivo da produção nos últimos anos, a China precisa fazer mais se, de fato, quiser perseguir a autossuficiência agrícola. Para o diretor de pesquisa do Rabobank em Xangai, Daron Hoffman, o país depende de uma “transformação estrutural” para alcançar esse objetivo. “A atual estrutura de produção é uma restrição a um crescimento mais acelerado”, afirma.

Segundo Hoffman, o principal problema é a falta de escala. Na China, o tamanho das propriedades em regiões de milho e trigo pode não ser maior do que meio hectare, o que inviabiliza o investimento em máquinas modernas e sementes mais produtivas. Conforme ele, o governo tem procurado ampliar o acesso coletivo a esses insumos, mas o resultado ainda é heterogêneo entre as diferentes culturas, regiões e produtores.

Além disso, há entraves burocráticos a essa expansão. Na China, não há propriedade privada, o que impossibilita o uso da fazenda como garantia de financiamento. O país adota um sistema de direito de uso, que pode ser arrendado a terceiros. No entanto, afirma Hoffman, estima-se que apenas um terço dos agricultores possua os documentos que comprovem seu direito de explorar a área. “Sem isso, é impossível arrendar as terras legalmente”, diz ele.

O governo chinês tem sinalizado que pretende incentivar a criação de operações agrícolas maiores com o intuito de estimular o investimento no campo. Segundo Hoffman, isso tem sido feito principalmente nas chamadas “fazendas estatais” – distritos agrícolas comandados por gestores estatais, que arrendam áreas para produtores agrícolas (ver contexto). Segundo o executivo, as fazendas estatais são as principais responsáveis pelo crescimento da produtividade nos últimos anos.

Por isso, o executivo acredita que a autossuficiência é um desafio ainda distante para os chineses. “No curto a médio prazo, os chineses terão de importar mais, porque a sua capacidade de aumentar a produtividade daqui para frente será inferior ao crescimento da demanda. No longo prazo, considerando o progresso recente e o que ainda pode ser feito, é possível que eles fechem essa lacuna”.

De acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), as importações chinesas de milho podem crescer a 20 milhões de toneladas até 2020, embora as aquisições de trigo e arroz devam se manter relativamente comportadas, assim como as de carnes. Já os desembarques de soja devem crescer a mais de 100 milhões de toneladas.

História

As bases das chamadas “fazendas estatais” chinesas foram criadas ainda antes da Revolução de 1949, segundo o pesquisador Q. Forrest Zhang, da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Cingapura. O modelo surgiu a partir da necessidade das forças rebeldes do Partido Comunista Chinês (PCC) de assegurar seu abastecimento durante a guerra civil. Após vitória do PCC e a fundação da república socialista, o sistema foi adotado em todo o país, especialmente nas regiões de fronteira, visando à segurança do novo regime. Segundo Zhang, as fazendas estatais ofereceram emprego às forças militares que haviam sido desmobilizadas após o fim do conflito, além de ajudar a estabilizar a economia nacional devastada após anos de conflito. Hoje, as fazendas estatais operam em 30 províncias e ocupam uma área de 39 milhões de hectares (4% de todo o território chinês), empregam mais de 3,5 milhões de pessoas – dando suporte a uma população de 12,4 milhões – e contribuem com aproximadamente 3,5% de toda a produção rural. conforme o pesquisador, as fazendas estatais passaram por diversas reformas ao longo das últimas décadas, que permitiram a divisão das áreas agrícolas e o seu arrendamento a produtores rurais independentes. Para ele, o sistema passa por uma transição para um “modelo de mercado”.