A matéria que você vai ler abaixo é parte integrante da edição 119 da revista Fórum, até o fim de fevereiro nas bancas. A ideia era mostrar como os movimentos sociais estavam reagindo à ausência de Hugo Chávez àquela altura (a matéria foi apurada em dezembro de 2012). E o que se viu foi a confiança da população no prosseguimento do processo revolucionário do país. Confira: 

Por Lucas Krauss, de Caracas, Venezuela

Faltavam apenas cinco dias para o Natal e o clima era de esperança nos microfones da rádio comunitária “La radio social de Petare”, localizada na maior favela das Américas, na região metropolitana de Caracas, capital da Venezuela. Moram na comunidade mais de 800 mil pessoas e tal otimismo se referia à possibilidade de o presidente reeleito em outubro, Hugo Chávez Frías, se recuperar a tempo de tomar posse perante a Assembleia Legislativa no 10 de janeiro próximo.

Após cada notícia sobre o estado de saúde do presidente, que recebeu o diagnóstico de câncer na região pélvica e foi submetido a quatro cirurgias em um complexo tratamento em Cuba, os locutores recebiam novas ligações de ouvintes. Alguns buscando se informar, mas a maioria pedindo orações. Poucos dias antes, quando o país estava em época de eleições para governadores dos estados, um dos participantes de um programa matinal foi mais incisivo: “Amigos, cada voto nos candidatos do chavismo é uma oração ao presidente!”. Assim foi. O Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), agremiação do presidente, ganhou em 20 dos 23 estados venezuelanos, consolidando o processo revolucionário que segue no país.

Já no curto período – porém bem longo para os venezuelanos – do Natal até o dia 10 de janeiro, a esperança passou a conviver com a apreensão. Chávez permanecia internado, as complicações do pós-operatório eram graves e sua última aparição em público já completava quase um mês, ocasião em que, preventivamente, garantiu a indicação de Nicolás Maduro, vice-presidente, como seu potencial sucessor político. Os debates se acaloraram no país, com a oposição elaborando interpretações da Constituição visando à convocação de novas eleições, caso o presidente não comparecesse ao evento de posse no dia 10. O imbróglio foi parcialmente resolvido na véspera, 9, após decisão do Tribunal Supremo de Justiça (TST) afirmando ser legítimo que Chávez prestasse juramento de posse em data a ser futuramente estabelecida. O presidente, portanto, com o devido respaldo jurídico, bem como autorizado pela Assembleia Legislativa, poderia continuar seu tratamento.

Nesse meio-tempo, Nicolás Maduro exerceria a presidência, em nome da “continuidade administrativa”, conforme os termos da decisão do TST. A possibilidade de novo pleito no curto prazo, no entanto, permanece em voga, pois o vice-presidente não é eleito na Venezuela, mas sim indicado. Dessa forma, conforme o texto constitucional, após constatação de “ausência permanente” do presidente da República, deve assumir o presidente da Assembleia, tendo este 30 dias para convocar novas eleições. O próprio Chávez citou trechos da Constituição em sua última declaração oficial na TV e, considerando justamente essa previsão caso não se recuperasse, pediu votos para Maduro.

É por esse motivo que, apesar deste adiamento da posse, a saúde do presidente e o futuro do país ainda preocupam, e muito, os venezuelanos. Em dezembro, na capital Caracas, do garçom do botequim ao motorista de ônibus, passando por donos de vendas de “arepas” (comida típica local), simplesmente tocar no assunto fazia modificar os semblantes. Uma pergunta pairava no ar, carregada de eufemismos: o que aconteceria com a Venezuela sem Chávez daqui a cinco ou dez anos?

O tema, apesar do clima pesado, era enfrentado. Das universidades aos movimentos sociais, das barbearias às padarias, dos esperançosos aos mais céticos, todos debatiam os cenários possíveis. “Há o enorme peso da figura individual do presidente e sua relação afetiva com o povo venezuelano, mas o processo de mudança não começou com Chávez e não vai terminar com Chávez. Há uma corrente nacional forte, muito diferente da forma mais individualizada de participação, muito arraigada nos movimentos populares, que deverá garantir que o Estado se mantenha a serviço dos mais desfavorecidos e que não se percam os avanços conquistados durante seu período”, analisa Andrés Antillano, da Coordenação Nacional do Movimento de Moradia venezuelano.

O professor de Economia da Escola de Estudos Internacionais da Universidade Central da Venezuela (UCV), Héctor Constant, concorda e diz que o futuro dependerá de toda a sociedade, não apenas de Nicolás Maduro. “Neste cenário hipotético, o desafio seria articular uma dirigência política coletiva ao lado de uma gestão eficiente. E evitar que as crescentes demandas sociais de um povo que anseia muito pela figura de Chávez superem a capacidade individual de Maduro, o que traria um subsequente custo político”, sustenta.

As análises dos mais atrelados ao pensamento chavista, maioria no país, convergem claramente no sentido de que o processo revolucionário na Venezuela não depende exclusivamente da figura do presidente. Trata-se de um movimento coletivo, de baixo para cima, popular. Ao longo da história, foi fundado por três pilares fundamentais: um militar, um sindical e outro universitário. Estes movimentos, que evidentemente se articulam com suas contradições, possuem quadros revolucionários que garantiriam a continuidade do processo, mesmo levando em consideração o primeiro impacto de uma possível ausência de um presidente amado por seu povo, há 14 anos no poder. “A história da humanidade sempre confirmou que a liderança de uma cultura política em particular é difícil de repetir. A associação criada entre a população mais desfavorecida por décadas e a liderança de Chávez é muito sólida, mas essa ausência poderá gerar nos próximos anos um movimento de esperança, principalmente naquele que representar de forma mais genuína o seu legado”, diz Gustavo Merino, poeta, professor da Universidade Central da Venezuela e da Universidade Metropolitana, doutor em Patrimônio Cultural.

Mas o “xis” da questão no debate sobre o futuro venezuelano não depende apenas da figura do vice-presidente, provavelmente vitorioso em uma possível eleição presidencial no país. O que está em jogo é o próprio significado da expressão “chavismo”, momento em que uma outra palavra-chave é posta à prova: unidade. “O fundamental do chavismo sempre foi o reconhecimento do protagonismo dos movimentos populares no exercício da política, reconhecer o pobre como sujeito político. E sua sobrevivência dependerá da unidade dos movimentos revolucionários, que têm grande força e estabilidade hoje, como demonstrou o resultado das eleições para governadores”, diz Antillano, representante do movimento de moradia.

Dentro da lista de possíveis cenários, há aquele que pode ser vislumbrado no curto prazo, com a presidência sendo exercida provisoriamente por Nicolás Maduro, mas com Chávez como mentor político-intelectual, debilitado pela doença, ainda em tratamento do câncer. A questão a ser debatida nos próximos meses é: por quanto tempo o presidente da República poderia ficar oficialmente no cargo, ainda em licença médica? Para o sociólogo Júlio de Freitas, também professor da Universidade Central de Venezuela (UCV), essa é uma preocupação legítima. “O que se pode temer é uma tensão permanente com relação à legitimidade ou não do governo e seu presidente nesta situação de ausência temporal, que poderá terminar gerando espirais de violência talvez até incontroláveis no curto prazo. Esse seria o pior cenário nos próximos meses”, diz.

De fato, existe uma lacuna jurídica na Constituição venezuelana no que diz respeito a quanto tempo o presidente poderia ficar em tratamento, em “ausência temporal”. A primeira licença médica dada pela Assembleia, de 90 dias, já foi concedida, assim como posteriormente foi emitido comunicado que concede “todo o tempo necessário” ao tratamento. No entanto, há previsão legal para que se conceda uma renovação da licença, por mais 90 dias, estendendo o prazo por cerca de seis meses no total. O Brasil, por meio do assessor da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, sugeriu justamente o prazo de 180 dias para que se dê continuidade ao tratamento e, então, só depois seria considerada a possibilidade de convocação de novas eleições.

“O futuro das comunicações”

A rádio comunitária em Petare, favela com mais de 800 mil habitantes em Caracas, recebeu a concessão para operar em 2002. O nome oficial, “CRP 91,5 FM”, faz referência às siglas de sua fundação: “Coletivo Radiofônico Petare”. Um de seus coordenadores, José Gregorio Sánchez, também opina sobre o futuro da Venezuela em um cenário sem a presidência sendo exercida por Chávez, principalmente com relação às políticas de comunicação. “Há um novo ministro das Comunicações, que já está fazendo contato com os meios comunitários para saber como poderão ser feitas melhorias. Nossa primeira esperança é que Chávez continue e nossa segunda esperança é que Maduro siga nos apoiando, o que deverá ocorrer, sem dúvida”, diz. Ele explica que as rádios nos bairros pobres venezuelanos não foram uma “invenção” da revolução chavista, mas que, pouco antes de 2002, quando da tentativa de golpe de Estado frustrado contra Chávez, as comunidades viam urgência em exercer um contraponto à intensa campanha midiática pró-golpe. Após o episódio, o presidente teria compreendido melhor a centralidade do tema e passou a fortalecer de forma mais sistemática as emissoras comunitárias.

Na Venezuela, historicamente, como em toda a América Latina, houve predomínio dos meios privados de comunicação, tornando o espectro eletromagnético altamente concentrado. Desde que assumiu a presidência, Chávez trabalhou para reduzir essa concentração, tendo sido 2002 o ano decisivo para tal. Dados da Comissão Nacional de Telecomunicações, por exemplo, mostram que em 1998 existiam 40 concessões de televisão no país. Em 2012, o número passou para 150 canais, sendo 75 na TV aberta e 75 nos canais a cabo. Dos canais com sinal aberto, apenas quatro têm alcance nacional e outros 71 são TVs regionais privadas, estatais ou comunitárias. Os sistemas estatal e público também foram fortalecidos.

Ou seja, dentro do novo contexto latino-americano de reformas radicais do espectro – como vêm ocorrendo na Argentina, Bolívia, Equador e Uruguai – o processo venezuelano é distinto. Lá, a política chavista supera, de certa forma, a divisão tripartite, equânime, em que um terço do espaço seria dedicado, por exemplo, às rádios e televisões comunitárias. Na Venezuela, há um maior aporte financeiro e elaboração de políticas públicas voltadas às emissoras estatais, públicas e comunitárias, enquanto o sistema privado é criticado não só nas falas de Chávez, mas também na de seus ministros, auxiliando a construção de uma visão crítica a respeito dos meios que está na “ponta da língua” dos venezuelanos.

As políticas de fortalecimento das comunas e de seus meios de comunicação, por exemplo, deverão ser mantidas. Maduro vem dos movimentos populares, é uma liderança natural, impulsionado pelo presidente Chávez para garantir a continuidade do processo. É jovem, tem uma grande formação, ocupou importantes cargos e, mesmo se não fosse ele, teriam outras lideranças comprometidas, pois nossa luta não é de agora, nossa luta é de mais de 50 anos”, diz Jesús Bermúdez, da Escola de Trabalhadores para a Comuna, que apresenta um programa na “Rádio Arsenal”, localizada no bairro 23 de Enero, conhecido reduto da esquerda revolucionária em Caracas.

Há diversas rádios espalhadas pelo populoso bairro, repleto de comunas socialistas e seus respectivos “Conselhos Comunais”, dividindo espaço com os centros médicos do programa “Missão Bairro Adentro”, que provê saúde gratuita à população por meio de convênio com Cuba – atuam na Venezuela hoje mais de 25 mil médicos cubanos – e também com as centenas de prédios voltados à população carente, no programa “Grande Missão da Moradia”, atual prioridade do governo de Chávez, que prevê a entrega de 2 milhões de moradias dignas até 2017.

“Não me leve ainda”

A política voltada aos meios de comunicação comunitários somada aos programas para a educação, a saúde e a habitação constituem exemplos do porquê da preocupação da população, principalmente a mais pobre, com a saúde do presidente Hugo Chávez. Outros números auxiliam a compreender sua popularidade. A renda per capita do país, por exemplo, era de 4 mil dólares em 1999 e passou para quase 10,8 mil em 2011. Já a pobreza extrema caiu de 23,4% da população para apenas 8,8% e o índice de desigualdade caiu de 55,4%, em 1998, para 28%, registrado no ano de 2008.

Uma hipotética Venezuela sem Chávez no que diz respeito à luta por moradia digna, vislumbrada a seguir por Andrés Antillano, também pode ser aplicada à comunicação e a outras áreas sociais. “Os movimentos de moradia têm contribuído para uma ação política, assumida por Chávez, de recuperar a cidade, o solo urbano, para o povo. Foi iniciado um processo revolucionário, revertendo paradigmas, enfrentando o negócio imobiliário. Seria muito difícil reverter essa política porque enfrentaria uma forte resistência popular. E penso que isso deverá ocorrer em todas as áreas. Chegamos a um avanço tal do processo revolucionário que dificilmente vai ser revertido, muito menos de maneira imediata. Nicolás Maduro, por exemplo, assumirá esses compromissos e, mais do que isso, deverá aprofundá-los”, finaliza Antillano.

No dia 8 de dezembro, no discurso em que pede votos ao vice-presidente caso não sobreviva ao tratamento do câncer, Chávez citou a palavra “unidade”, repetindo-a três vezes seguidas. Desta palavra-chave, pois, parece depender o futuro imediato do chavismo. Demonstrando confiança nisso, mas também uma visível preocupação com o futuro, Chávez fez questão de reforçar, em dezembro, durante missa realizada em sua homenagem, que é “apenas mais um dessa grande corrente bolivariana” e que “essa revolução não depende de um homem”. Próximo do final da celebração, o atual presidente da República Bolivariana da Venezuela mirou o céu e disse, esperançoso: “Não me leve ainda, Cristo. Tenho muito por fazer”.