Cinco dias na terra de Bolívar
*Elza Maria Campos é coordenadora da União Brasileira de Mulheres (UBM)
Artigo publicado originalmente em 2007 e republicado a pedido da autora em homenagem a Hugo Chávez
A injeção ainda doía no braço durante as mais de cinco horas de vôo, mas o contentamento por poder representar a União Brasileira de Mulheres no XIV Congresso da FDIM (Federação Democrática Internacional de Mulheres) suplantava o desconforto.
Simon Bolívar, aí vou eu! Desembarquei no dia 11/4 no Aeroporto Internacional que leva o nome do revolucionário sul-americano e, bagagem na mão, fui em busca de alguma referência da organização do Evento. Lá encontrei Lúcia Rincon, também delegada da UBM, cuja fluência em inglês prontamente ajudou duas sul-africanas a se localizarem. Meu conhecimento de espanhol, embora muito modesto, ajudou a travar relações com as nicaraguenses que acabavam também de chegar. De resto, ficamos à vontade com a gentileza da graciosa militante da juventude do Partido Comunista, que, toda sorrisos, nos recepcionou no aeroporto e acompanhou durante longas horas na espera do carro que levaria ao credenciamento do Congresso.
No percurso desde o aeroporto até o Hotel Hilton, pela janela do veículo começamos a conhecer facetas da capital venezuelana, uma bela cidade engastada num grande vale entre montanhas salpicadas de casas nas encostas. Corriam ante nossos olhos muros e painéis ilustrados com saudações a Simon Bolívar, emulado pelo governo federal como herói, de ontem e de hoje, do povo venezuelano. Nesses painéis também se lê frases de chamamento à consciência popular, sobre a educação, a saúde, a habitação, o meio ambiente e o poder popular, pondo em destaque o reconhecimento ao Presidente Hugo Chávez.
Ao Congresso da FDIM, cujos trabalhos se deram no Teatro Tereza Carreño, acorreram cerca de mil mulheres, representando 91 países, cujo conjunto proporcionava um multicolorido espetáculo de tipos de beleza e indumentárias diversificadas das delegadas e invitadas. Em meu primeiro dia, a plenária de debates e de apresentação do trabalho dos grupos propiciou novas doses de conhecimento e cultura sobre aquela multidão de nações. Mulheres de diversos países registraram suas opiniões e denúncias contra manifestações de discriminação e de opressão, em particular da opressão político-econômica do imperialismo.
Ainda nesse mesmo dia, no teatro Tereza Carreño, tivemos o encontro com Hugo Chavez, gravado ao vivo para uma rede de rádio e TV para quatro países da América Latina – o Programa Alô Presidente. Muitas mulheres foram ao microfone saudar efusivamente tanto Chávez como Fidel Castro. A animada delegação de Cuba se somou à delegação da Venezuela e as mil mulheres presentes puderam pessoalmente acompanhar a fala do Presidente, além de ter acesso ao microfone aberto para quem quisesse falar sobre a realidade das mulheres e homens de seus países. Hugo Chavez começou declarando-se inimigo do machismo e amigo das mulheres, enfatizando a importância de ser este o primeiro Congresso da FDIM realizado na América Latina desde sua fundação em 1945. Afirmou o presidente: “Essa nossa revolução terá muitos feitos pela frente, e um deles é recuperar a consciência do que somos”. Dentre as falas da plenária, destacaram-se as de representantes da Palestina, da Índia, da Grécia, de Cuba. Uma representante do Movimento das Mães da Praça de Maio, com a voz embargada, elevou a temperatura emocional no teatro ao contar que, desde o desaparecimento de sua filha sob a feroz ditadura argentina dos anos 80, não sentia vontade de ver e abraçar um militar; Chávez, oficial do Exército venezuelano, retribuiu calorosamente o comovido abraço da mãe argentina. Momentos assim incrementaram não só a pulsação, como também a convicção anti-imperialista de toda a audiência presente, que fez ecoar a palavra-de-ordem: “alerta, alerta, alerta, que camina la espada de Bolivar por America Latina”.
Chávez teceu comentários acerca das relações da Venezuela com alguns dos países ali representados pelas delegadas. Deu destaque a Cuba, a maior delegação estrangeira presente ao Congresso, lembrando de sua grande amizade com Fidel. Falou dos avanços e das dificuldades para levar adiante as conquistas bolivarianas, das reservas energéticas da América Latina a serem preservadas, da unidade latino-americana para resistir ao imperialismo comandado por George Bush. Mas também se referiu à necessidade de combater o machismo, e enalteceu heroínas como Clara Zetkin e Manuela Saenz, a lutadora companheira de Simon Bolivar.
Um outro ponto alto deste Congresso foi a marcha das mulheres no dia 13 de abril, data em que o povo venezuelano comemora o retorno de Chávez ao poder com o apoio de militares leais à Constituição e nos braços das massas populares, revertendo o golpe de direita de abril de 2002. De novo, cinco anos depois, cerca de um milhão de pessoas se aglomerou diante do Palácio Presidencial de Miraflores para celebrar sua festa pela liberdade, um imenso lençol rubro estendendo-se por quilômetros das ruas de Caracas com bandeiras, camisetas, bonés, lenços, em defesa da prevalência democrática da vontade da maioria de revolucionar seu país.
A entoação do Hino Nacional arrancou, dessa gente simples e sofrida, lágrimas e manifestações de alegria esperançosa, na recitação empolgada de versos como: “Gloria al bravo pueblo, que el yugo lanzó, la ley respetando, la virtud y honor”. E, para arrematar a festa com uma atitude concreta, o presidente Chávez anunciou o fim das dívidas venezuelanas com o FMI e o Banco Mundial. No dia seguinte, o jornal El diário estampou a despedida: “Chao com ustedes, Banco Mundial y al Fondo Monetário Internacional”. O ministro do Poder Popular para a Economia e Finanças, Rodrigo Cabezas, enfatizava o ganho em soberania nacional com tal medida, criticando a postura controladora de países em desenvolvimento assumida por aqueles organismos internacionais. Em contraste – como sabermos ser ainda corrente na grande mídia venezuelana – o periódico El Nacional simplesmente nada publicou sobre o gigantesco ato da véspera em Caracas, escancarando o tipo de jornalismo parcial de quem teve seu golpe derrotado em 2002…
No sábado, dia 14, já satisfeita por esta rica, ainda que curta, experiência neste país que atrai tanta atenção da América Latina, saí em companhia das representantes da UBM a um passeio por alguns locais turísticos de Caracas e da região próxima. Passamos pela Avenida Los Proceres e avistamos apartamentos de interesse social, construções efetivadas pelo governo Chavez (um dos problemas centrais em Caracas é a habitação, recebendo assim especial atenção do Governo Popular). Visitamos ainda a fábrica “Arte Murano”, local de artesanato onde se produzem obras de arte em cristal.
Sobre a República Bolivariana do povo da venezuela
A Venezuela possui 27 milhões de habitantes, residindo em Caracas cerca de 6 milhões. Trata-se de uma nação, como as demais da América Latina, fruto de intensa mestiçagem; a esmagadora maioria de sua população tem uma mistura de sangue europeu, índio e africano. Por outro lado, no país habitam perto de 25 grupos indígenas, aproximadamente 200.000 pessoas, que representam 1% da população total do país. As principais comunidades indígenas são as dos Guajiro, no norte do Maracaibo, Piaroa, Guajibos, Yekuanas, Yanomamis, no Amazonas, Warao, no Delta do Orinoco, Karinha e os Pemão no sudeste do país.
Lideranças do movimento popular brasileiro, como o líder do MST, João Pedro Stédile, sublinham passagens gloriosas do passado venezuelano no século XIX, em especial as lutas pela independência lideradas por Simon Bolívar e Ezequiel Zamora. Nas andanças guerreiras através da América do Sul, Bolívar contou com a ajuda de um revolucionário pernambucano, José Inácio de Abreu Lima (1794-1869), de história ainda pouco conhecida no Brasil, e que escreveu um livro de conteúdo influenciado pelo socialismo utópico francês denominado “O Socialismo” (publicado em 1855).
O subsolo venezuelano guarda imensas reservas de petróleo, um dos motivos centrais de ter virado objeto de cobiça dos Estados Unidos. Para a pilhagem dessa fonte de energia, diz Stédile, operou-se uma “santa aliança” entre uma minoria de oligarcas locais, que se apoderou do Estado e dos recursos do petróleo, enquanto 80% da população se constituía de pobres e miseráveis, outros 8% da população sobrevivendo no meio rural, ficando a agricultura completamente marginalizada e obrigando o país a comprar 88% dos alimentos no exterior.
Conseqüência do movimento bolivariano liderado por Chávez, a nova Constituição da Venezuela, aprovada em plebiscito em 1999 por 89% dos eleitores, busca hoje promover uma democracia participativa para incluir a população mais intensamente nas decisões do país, para tornar realidade os direitos dos historicamente marginalizados, perseguindo o objetivo de que a Venezuela transforme-se num território de paz e justiça social, em plena integração com as demais nações latino-americanas.
Não tivemos tempo de conhecer as organizações sociais bem como o trabalho realizado pelos órgãos públicos de Caracas. Mas procuramos fazer um “recorrido” (itinerário) de indagações sobre mais alguns dados da realidade local. Ouvimos que em três anos foram alfabetizadas cerca de um milhão de pessoas e que, em convênio com Cuba, o povo venezuelano se beneficia da atenção de 14 mil médicos cubanos. Os programas sociais organizados pelas Missões oferecem hoje à população condições mais favoráveis na saúde, na previdência, na habitação, na cultura, saneamento e educação. A Missão Robinson, uma ação cívico-militar importante da história republicana da Venezuela, erradicou o analfabetismo no país e a Missão Barrio Adentro garante a milhões de venezuelanos a assistência básica à saúde.
Sobre as mulheres venezuelanas
As mulheres da Venezuela podem ser consideradas as principais protagonistas das mobilizações para garantir a atuação de Hugo Chavez. Seu entusiasmo aparece expresso no sorriso largo e na sua patriótica atuação na consolidação das relações de solidariedade com as organizações de mulheres do mundo todo, para favorecer a autodeterminação dos povos. Hoje, há mulheres ocupando 50% das funções de governo e a presidência da Assembléia dos Deputados.
Como no Brasil, a violência ainda atinge altos índices. Para combater esta crônica mazela da humanidade, surgiu a “Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre de Violência”, que pune quem “humilha”, ofende, isola, faça comparações destrutivas e ameaças constantes que atentam contra a estabilidade emocional ou psíquica da mulher. A lei estabelece que os infratores dessa legislação que ofendam, humilhem ou ameacem mulheres terão que cumprir pena de 6 a 18 meses de prisão. Também condena a 20 meses de prisão os que atentam contra uma mulher através de assédio, fustigação e ameaças, assim como estabelece penas mais severas contra a violência sexual, os atos lascivos, a prostituição forçada, a escravidão sexual e a violência no trabalho.
A participação do movimento de mulheres em particular neste debate é visível. Recebemos diversos materiais que tratam da nova lei e dos mecanismos de superação da violência como a criação de Redes Solidárias – Os Pontos de Encontro (mais de quatorze mil por todo o país), além da aprovação do Plano Nacional de Prevenção e Atenção da violência contra a mulher.
Há diversas organizações de mulheres, sendo as mais destacadas a INAMUJER e a Associação de Mulheres Clara Zetkin.
Um ponto que vale destacar é a participação da mulher jovem nos Partidos Socialista e Comunista, assim como no próprio movimento de mulheres e no da juventude.
Um pouco da história da FDIM
A FDIM foi criada por ocasião da realização do I Congresso Mundial de Mulheres, em dezembro de 1945, em Paris, com o objetivo de lutar contra a guerra imperialista e pela paz mundial. Sua primeira presidente foi Eugenie Cotton, cientista francesa, humanista, e que participou da Resistência à ocupação da França pelas tropas nazistas.
São filiadas à FDIM 660 organizações, de 160 países. Do Brasil são filiadas a União Brasileira de Mulheres, a Confederação de Mulheres do Brasil e o Centro de Informação da Mulher.
O congresso
O 14º Congresso Mundial da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM) contou com a presença de representantes dos cinco continentes, sob o lema “Por um mundo em paz, mulheres em luta”.
É a primeira vez que o Congresso de Mulheres da FDIM acontece na América Latina, depois de mais de 60 anos de história da organização.
Além das plenárias, da Marcha e do encontro com o presidente, as participantes tiveram a oportunidade de debater os temas em 10 grupos de trabalho de conteúdo variado: 1-Os impactos (negativos) da globalização neoliberal sobre as mulheres; 2-A luta das mulheres e o impacto do terrorismo de Estado, as ocupações e as guerras imperialistas. A luta das mulheres pela independência nacional; 3-O tráfico e a mercantilização das mulheres e crianças (com especial referência à exploração sexual da imigrante, refugiada e mulheres ´´deslocadas´´); 4-Construção da solidariedade internacional contra a repressão política às mulheres e todas as formas de violência contra as mulheres; 5-Defesa dos direitos das mulheres indígenas e afro-descendentes à cultura e pela igualdade; 6-Avançar na igualdade dos direitos sociais ao trabalho, saúde, educação, seguridade social, no combate à fome e outros; 7-Transformar o papel negativo dos meios de comunicação no trato da imagem das mulheres; 8-Mulheres no poder e a tomada de decisão política; 9-A história e o papel da FDIM na defesa dos direitos das mulheres, independência nacional, justiça social, democracia e paz; 10-O feminismo e a teoria de gênero.
O Congresso da FDIM foi precedido da realização do 2º Encontro da Mulher Jovem, que também desenvolveu debate sobre esses diversos temas.
A tônica do Congresso foi a da solidariedade das mulheres para lutar por igualdade de direitos, por sociedades com soberana nacional preservada, sem exploração e opressão. Em conseqüência, a ampla unidade em torno do fortalecimento da luta dos povos e da condenação do imperialismo, destacadamente o praticado pelo Estado norte-americano.
Ao final, o 14º Congresso da FDIM aprovou por unanimidade a Declaração de Caracas, da qual destacamos alguns trechos:
´´O 14º Congresso da FDIM (Federação Democrática Internacional de Mulheres), realizado em Caracas, de 8 a 14 de abril de 2007, se declara herdeiro das heróicas lutas das mulheres e dos povos do mundo inteiro. Nossos 62 anos de existência têm suas raízes na luta das mulheres contra o fascismo, pela independência nacional e pela paz sobre nosso globo terrestre (…)
Não é casual que nosso 14º Congresso se realize na Venezuela de Bolívar e de Manuelita Saenz (…)
Somos e seremos mulheres em luta para transformar o mundo e alcançar o bem-estar, com justiça econômica, social, política e de gênero, incluindo a indispensável luta pelos direitos da mulher trabalhadora (…)
Queremos um mundo de igualdade entre homens e mulheres, onde a igualdade seja real e efetiva. Condenamos a guerra silenciosa que o grande capital transnacional impôs com suas políticas neoliberais, gerando fome, desnutrição, miséria, analfabetismo, desigualdades no mundo, males que nos afetam em particular (…)
Queremos um mundo onde cada cidadã e cidadão sintam respeitados seus direitos e por isso exigimos a eliminação de todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres, desemprego, exclusão de imigrantes, tráfico de mulheres e crianças, exploração sexual, prostituição, assassinato e tráfico de drogas, assim como a eliminação dos obstáculos de acesso aos recursos e emprego em igualdade de condições que propiciem a autonomia econômica (…)
As mulheres não são um setor ou um grupo, nem um tema. Estamos em todos os setores e em todos os âmbitos da sociedade, por isso estamos convencidas de que a diversidade e a transversalidade nos dão a riqueza de nossas visões e propostas. Essa diversidade é a que gera iniciativas criadoras, que mata os esquemas e a mediocridade do pensamento único.
(…) Por isso nossa exigência se baseia na necessidade histórica de incorporar toda a experiência acumulada, nossa reflexão, tendo presente a situação econômica, social, cultural e política de cada continente, de cada região, de cada país (….).´´
Exigindo um mundo de paz e condenando a escalada imperialista guerreira do governo dos Estados Unidos, a declaração do 14º Congresso da FDIM alerta para a necessidade de nos apropriarmos do mais avançado pensamento revolucionário e feminista.
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Minha viagem foi breve, mas está marcado com especial afeto o regozijo em conhecer de perto tantos fragmentos da interessante realidade de um país que está ousando sonhar de novo com liberdade e justiça social. Se o sonho todo poderá virar realidade para esse povo venezuelano corajoso, dependerá de sua unidade, de sua luta e de uma escrupulosa leitura das condições políticas de nosso continente e do mundo. Voltei, de todo modo, revigorada e com mais confiança no futuro, acreditando ainda mais que no Brasil também existe um grande povo, sonhador e lutador, única força capaz de levar o país a verdadeiros tempos novos plenos de igualdade e liberdade.