Em seu artigo A contemporaneidade de O Capital (1997) (1), você argumenta sobre a atualidade da crítica científica de Marx, ao capitalismo, no final do século XX. Diz inclusive haver, no ataque da teoria econômica conservadora e vulgar, propagandista da morte das idéias de Marx, um “ultraje à inteligência teórica”. De algum modo, os combates antiglobalização e a contestação radical ao neoliberalismo na América do Sul somaram-se à sua opinião. Comente sobre esse ambiente em 2005.
Braga – Quanto mais se aprofunda o capitalismo mais se revela a pertinência da análise de Marx sobre esse tipo de economia. Deixada sob as leis do mercado a sociedade fica complicada porque como se tem visto a desigualdade impera mesmo nos países mais desenvolvidos. Sem controle sobre a economia não dá para garantir sequer o pleno emprego que era um ideal do Keynes, defensor da ordem burguesa. Em 2005 os problemas de sociabilidade emblematicamente estouraram até mesmo na França e, para mim, isso diz tudo. Na América Latina, no meu entendimento, à exceção do Chile todos os países dão sinais de grande instabilidade. O capitalismo e a acumulação dos grandes capitais locais e estrangeiros vão em frente, mas a população em sua grande maioria padece. No Brasil, ataca-se de baixo crescimento e muita exclusão social. Essa avalanche neoliberal é uma “revolta das elites” – lembrando Cristopher Lash – contra o capitalismo regulado e o Estado do Bem-Estar, como sabemos. Não creio que economicamente venha a “capotar”, mas é do ângulo social insustentável mundo afora e politicamente é um ataque à democracia.

Você enfatiza, no artigo, estar hoje “presente como nunca” a Lei Geral da Acumulação Capitalista. Fale-nos sobre a contradição lá identificada entre o desenvolvimento das forças produtivas e o alastramento da chamada “redundância” do trabalho vivo. Aliás, é possível considerar hoje realmente “avançado” o capitalismo central, com essas taxas altíssimas de desemprego?
Braga – Pois é, muito bem lembrado: assim não dá mais para chamar de capitalismo avançado. Fica bizarro. Contudo, o capitalismo nunca teve nem terá compromissos com o trabalho ou os trabalhadores. Se não tiver força política há uso e abuso, por dizer assim. É descarte, isto é, desemprego estrutural. Pensava Marx: a combinação de tecnologia e capital transforma o tempo livre em desemprego. Como a tecnologia é necessária à humanidade o problema está nos limites do capital historicamente postos: ele desvencilha-se do trabalho e “desorganiza” a sociedade. Por isso, Keynes se preocupava. Como é possível sobreviver um sistema que não oferece emprego a todos os que querem trabalhar para viver?

Nas suas observações sobre a “globalização financeira”, e a visão de Marx sobre a “riqueza fictícia” ou do “fetiche” da riqueza fictícia, Marx chama de “capitalização” à formação dessa riqueza; e desvela a não mediação produtiva em D-D’, ou como o dinheiro gera dinheiro como capital portador de juros. Às vezes não se entende bem os processos de valorização do valor (criação da mais-valia) fora do “chão da fábrica”, tampouco a idéia marxiana da “autonomização” de formas do capital. Como entender melhor isso?
Braga – Porque capital é igual a trabalho não-pago, mas também é dinheiro gerando dinheiro, mais dinheiro. E na esfera financeira o dinheiro gira em torno de si mesmo, vira ficção até que venha uma crise de desconfiança nas valorizações absurdas das ações nas bolsas, por exemplo. Antes que isso ocorra alguns ganham dinheiro e quando chega a queda outros ficam com o mico. Ou seja, no capitalismo, dizia Marx, a valorização parte do âmbito capital-trabalho, mas se acelera e se autonomiza no âmbito do dinheiro como capital ou do capital como dinheiro.

Para Marx, a concorrência, a concentração e a centralização do capital configuravam uma tríade decisiva na dinâmica desse modo de produção. Vivemos a época em que nunca se presenciou um movimento tão frenético de centralização do capital, quando gigantescas e bilionárias aquisições e fusões propiciam assimetrias do poder econômico (e político) aparentemente de impossível controle. Voltou-se inclusive a falar em “ultra-imperialismo”, o que daria razão às teses de Karl Kautsky, e não às de Lênin [ver: A formação do império americano, do Professor Moniz Bandeira]. O que você pensa disso?
Braga – Um cartel internacional do capital – o ultra-imperialismo – me parece difícil porque existirá sempre, no capitalismo, a concorrência intercapitais e inter-Estados nacionais. Ou não? Ao mesmo tempo, a idéia de Lênin sobre fase superior, “última” etapa, para mim aparentemente não se confirma. Assim, creio que as rivalidades entre os dominantes persistem e como Marx e Lênin sabiam as contradições ficam abertas à história. Assistimos atualmente a um domínio “imperial” americano, mas não isento de tensões com os asiáticos, com os europeus e com as nações subdesenvolvidas. De todo modo, o grau elevadíssimo de centralização do capital à escala mundial, conectando ademais propriedades de diferentes origens nacionais, determina poderes privados globais numa dimensão que assusta. Como criar instâncias internacionais para lidar com isso?

Sob o comando avassalador do grande capital financeiro – já identificado por Lênin, na melhor tradição do pensamento marxista, com sendo a forma “superior a todas as outras” – passamos a vivenciar um crescente debate acerca do caráter desse capitalismo contemporâneo. Há quem fale da existência de uma “nova fase” sistêmica desse regime; os que teorizam sobre um “regime de acumulação predominantemente financeiro”. Você é um dos pioneiros, internacionalmente, a trabalhar a categoria “financeirização da riqueza” capitalista, como um padrão particular de produzir e gerir essa riqueza. Como situarmos essa discussão depois da imposição norte-americana desse padrão capitalista mundo afora?
Braga – “Imposição” americana, em termos, porque os capitais dos demais países e muitos governos têm acatado esse padrão com exemplar dedicação. Veja o Japão nos anos 1980. Tornou-se país credor do mundo, seus conglomerados – os Keiretsu – acumularam dinheiro e partiram para a especulação financeira interna e internacional. Entraram numa relativa estagnação nos anos 1990 e estão lá a eleger o “cabeleira” liberal. Pode? Logo o Japão que, segundo Conceição Tavares, seria um caso exemplar de Capitalismo Organizado etc. Evidentemente sob um comando americano exasperador, bélico e tudo mais. Essa financeirização é a expressão da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e a valorização do capital numa escala e numa forma de causar perplexidade ao próprio Marx e a Keynes que entendiam muito bem dessa história de riqueza abstrata. Veja bem o Brasil: quando o Estado paga o exagero de juros que paga e deixa de cuidar da saúde, dos transportes coletivos etc; o que é isso? É o paroxismo da conivência do poder público com a dominância financeira. Então, é um padrão capitalista altamente adequado ao capital, ao seu afã de gerar mais dinheiro exponencialmente, mas, decididamente não é civilizatório. É o que Marx previu: o capital cumpriria durante um período uma missão civilizatória, desenvolvendo as forças produtivas etc; mas abriria contradições agudas e se revelaria limitado histórica e socialmente, o que não quer dizer colapso econômico. Quer dizer tensões crescentes entre expansão e crise. Quer dizer conflitos de toda espécie. Sem controle da sociedade sobre a economia a tendência é a barbárie. Ou não é a isso que estamos assistindo?

*A. Sérgio Barroso é doutorando em economia pela Unicamp.

Nota
[1] O artigo encontra-se em Os clássicos da economia, Carneiro, R. (org), São Paulo, Ática, 2002, 2ª impressão.

EDIÇÃO 82, DEZ/JAN, 2005-2006, PÁGINAS 57, 58, 59