Publicado na revista de jornalismo científico Com Ciência (http://comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=86&id=1064)

Existe uma relação social historicamente determinada entre as práticas da liberdade, da cultura e da propriedade? Essas três noções podem ser observadas sociologicamente tanto como ação quanto como instituição que se alteram de sociedade para sociedade em cada período histórico. Além disso, as concepções de liberdade, cultura e propriedade tendem a ser bem diferentes, a depender da perspectiva filosófica, ideológica ou da visão de mundo daqueles que refletem sobre cada uma delas ou sobre sua inter-relação.

O arranjo liberal, no mundo industrial, enfatizou a superioridade da propriedade em relação à liberdade e a cultura. As correntes marxistas poderiam concordar com a visão liberal apenas no ponto de partida, ou seja, a apropriação da riqueza produzida determinaria, em última instância, as concepções de liberdade e as práticas culturais de uma dada sociedade. Mas, para os marxistas, a necessária justiça na distribuição da propriedade exigia a limitação da liberdade de iniciativa e implicaria em uma cultura distinta. O arcabouço jurídico e a cultura seriam fortemente influenciados e, para alguns intérpretes, até determinados pelas relações de propriedade.

Outras correntes do pensamento ressaltaram a primazia da liberdade. Esta seria a resposta de uma certa perspectiva nômade e implicaria em um cultura da mudança e da incorporação constante de fragmentos simbólicos de diversos povos. A propriedade não implicaria em um direito maior e muito menos em uma liberdade suprema. O olhar antropológico reforçou a desconfiança na superioridade ontológica da propriedade e relatou a cultura de povos que construíram outras noções e práticas daquilo que denominamos propriedade e liberdade.

Um olhar atento sobre a evolução do capitalismo industrial permitirá observar a intensa mercantilização do conjunto de práticas sociais baseadas na construção da propriedade como um direito maior. A própria perspectiva da liberdade negativa implicava, principalmente, na ausência de coerção do Estado sobre a propriedade e a liberdade de apropriação. Mas as demais liberdades, de expressão, pensamento e criação, entre outras, pareciam poder se constituir sem contradição com a supremacia da apropriação privada de tudo.

Quando a expansão da industrialização atingiu em cheio a cultura, a partir do século XIX, podemos notar o início das práticas discursivas a respeito do papel imprescindível da propriedade para a criação. Desse modo, a criatividade e a existência de expressões culturais fortes dependeriam de garantias rígidas para a apropriação privada dos produtos culturais. As legislações de copyright e direitos do autor buscavam consolidar essa visão. A criatividade só poderia proliferar com todo o seu potencial se a liberdade criativa fosse acompanhada de um sistema de proteção do criador. Todavia, quando olhamos mais profundamente as dinâmicas dessa proteção, encontramos no topo da cadeia de apropriações os intermediários da indústria cultural e somente como elo inferior o criador.

A ideia dominante do capitalismo industrial era de que a propriedade da criação deveria ser protegida da liberdade de uso pelo público tornado consumidor de produtos culturais. A proteção da propriedade seria a fonte ou base maior da criação. Todavia, existia um mal-estar com a proposição de tratar os bens culturais como coisas plenamente e irrestritamente privatizáveis. É bem conhecida a comparação que Thomas Jefferson fez, no início do século XIX, das ideias com a chama de uma vela1. Ao permitir que outra vela se ilumine com o mesmo fogo, a chama da primeira vela não se apaga. Para muitos, fossem liberais, conservadores ou socialistas, a propriedade sobre ideias ou sobre suas expressões era algo questionável. Tanto é que, até o momento, em nenhum país do mundo, a propriedade sobre uma música, um texto ou uma imagem é ilimitada no tempo.

A chamada proteção de uma obra artística ou de uma expressão cultural sempre foi temporalmente limitada. Por pressões constantes dos intermediários da criação e da crescente indústria cultural, esses limites foram sendo estendidos. Hoje, nos Estados Unidos, uma obra só entra em domínio público 95 anos após a morte do autor. No Brasil, isso ocorre 70 anos após o seu criador ter falecido. Isso quer dizer que a criação deve voltar à sua dimensão comum, cultural, após ter sido controlada e explorada privadamente por muitos anos. Desse modo, as leis também protegem o chamado domínio público e restringem a propriedade, ou seja, impõe uma barreira no tempo à apropriação privada das expressões culturais. Qual a relação do domínio público com a liberdade de criação? Estaria o criador desprotegido quando sua obra vai para o domínio público? Ele perderia sua liberdade?

O termo proteção pode ser caracterizado como demasiadamente ideológico, uma vez que podemos definir o período em que uma obra não pode ser retrabalhada e recombinada por diversos outros criadores como um período em que existe um cerceamento da liberdade de criação e não uma proteção. Embora, toda a lógica discursiva aponte para o direito do autor, a existência dessa proteção após sua morte não tem nenhuma relação com o criador, nem com o incentivo para que alguém continue a criar. Na verdade, com a expansão dos limites temporais das leis de copyright e de direitos do autor, o capitalismo industrial protege primordialmente as corporações e modelos de negócios baseados em uma série de intermediários que ganham com as obras de catálogos.

Uma arqueologia do discurso sobre a criação cultural no mundo industrial permite encontrar a estranha omissão da completa dependência histórica, na propriedade sobre a música, das tecnologias de gravação. Antes delas, o criador poderia vender partituras ou executar músicas em espetáculos de variada dimensão, mas tinha pouco interesse em ser “dono” da música. A possibilidade de vinculação da música a um suporte físico que poderia ser ouvido em outro tempo e espaço viabilizou a propriedade sobre a música. O autor se tornou dono.

As tecnologias digitais desvincularam o texto do papel, a música do vinil e o filme da película. As criações culturais foram multiplicadas em milhões de cópias sem desgaste do original e sem a necessidade dos antigos suportes físicos. Caíram os custos e as barreiras para os criadores disseminarem e compartilharem suas criações. Simultaneamente, aumentaram as dificuldades para a indústria cultural controlar as cópias e as recombinações, uma vez que as tecnologias digitais são tipicamente tecnologias de compartilhamento de bens imateriais, intangíveis. Assim, a intensa digitalização dos bens simbólicos trouxe novamente o debate sobre o caráter comum, coletivo, social, das criações. Alguns pensadores, como James Boyle, comparam as atuais tentativas de ampliar o tempo de cerceamento das expressões culturais, visando impedir sua entrada em domínio público, aos cercamentos das terras comunais que ocorreram na Europa a partir da dissolução do mundo feudal.

A liberdade de recombinar bens simbólicos é a base da criatividade. A internet não reduziu nem destruiu a criatividade. Ao contrário, nunca se viu tamanha profusão de criações. Não há nenhum indicador de que a diversidade cultural tenha se reduzido com a ampliação do compartilhamento de bens simbólicos nas redes digitais. A propriedade sobre ideias pode ter sido um importante modo de viabilizar ganhos no mundo industrial e, certamente, ainda ensejará diversas formas de ganhar dinheiro no cenário informacional. Entretanto, está longe de ser a fonte da criação. Tudo indica que o bloqueio à liberdade de compartilhamento é que pode reduzir a inventividade existente nas redes.

Assim como Jack Valenti, em 1982, então presidente da Motion Picture Association of America, tentou impedir que a Sony pudesse comercializar o gravador de videocassete (VCR) para evitar que as pessoas pudessem copiar vídeos em suas casas, atualmente a indústria da intermediação da cultura quer tentar retirar da internet algumas de suas liberdades basilares, a liberdade de copiar e de recombinar conteúdos online. Essa postura obscura desconhece as características mais marcantes da cibercultura, que são as práticas recombinantes e as reconfigurações dos inventos tecnológicos. Por recusar a perspectiva de dependência, no caso dos sistemas de propriedade sobre ideias, das tecnologias de armazenamento e disseminação de bens imateriais, considera que a criminalização e enrijecimento das práticas cotidianas da cibercultura serão suficientes para manter os modelos de negócios erguidos no mundo industrial.

Aproximadamente 50 milhões de pessoas, ou seja, 51% dos internautas brasileiros, fizeram download de músicas em 20112. Apostar na criminalização de práticas baseadas no compartilhamento parece ser um ato completamente descabido. Não parece razoável considerar ações cotidianas de milhões de pessoas como atos criminosos. A legislação de copyright e de direitos do autor foi criada para apoiar a edificação do mundo industrial no terreno da cultura. No cenário informacional, é mais que evidente que precisamos de outras leis. A liberdade de expressão, de criação e de compartilhamento estão sendo cada vez mais afetadas pelo agigantamento das leis de propriedade intelectual. Lei Sarkozy (França), Lei de Sinde (Espanha), Anti-Counterfeiting Trade Agreement (Acta), as frustradas tentativas de aprovação do Stop Online Piracy Act (Sopa) e do Protect IP Act (Pipa) (Estados Unidos), são a maior prova de que as leis de direito do autor e de copyright estavam se transformando em letra morta. São leis e tratados de ameaça contra a liberdade de compartilhar arquivos digitais.

Sérgio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC, doutor em ciência política, membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de Pesquisadores de Cibercultura (ABCiber) e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil.

Notas

1 Thomas Jefferson to Isaac McPherson: “He who receives an idea from me, receives instruction himself without lessening mine; as he who lights his taper at mine, receives light without darkening me.”
2 Veja pesquisa do CGI.br sobre o uso da Internet no Brasil: http://cetic.br/usuarios/tic/2011-total-brasil/rel-int-10.htm

Referências bibliográficas

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