A melhor maneira de relembrar o gênio Karl Marx é recuperar várias de suas categorias e interpretações que se projetam no tempo, adquirindo novas formas pelo movimento mesmo do regime do capital.
Revisamos notas anteriores neste artigo, acerca do debate sobre a interpretação marxiana – e marxista – das crises capitalistas. Os objetivos principais são: a) buscar contribuir para a compreensão do fenômeno, e parte integrante da estrutura dinâmica do capitalismo – as crises –, segundo aspectos centrais da teoria de Karl Marx [2]; b) situar criticamente interpretações anacrônicas do marxismo, algumas na crise global de agora que ressuscitam a mania escatológica [3]; c) aludir a novos fenômenos que “assaltaram” o capitalismo movido pelas finanças.
Com efeito, tais questões aqui se entrelaçam buscando clarificar um panorama marcado por grandes incertezas, o que dificulta horizontes mais claros para combates mais consequentes. Noutras palavras, a crítica de análises reducionistas das teorias de Marx e Lênin frente aos complexos (e singulares) processos, como das grandes crises, não é problema acadêmico ou exclusivamente teórico: possuem grave incidência politica, na medida em que por vezes resultam na substituição dum sistema tático de reforço das posições revolucionárias, pelo discurso estratégico errático, esquemático.
Aspectos fundamentais inseparáveis: dinamismo e crises
A valorização do valor (da mais-valia) é objetivo central da produção capitalista, o que resulta, do ponto de vista sistêmico, sempre em superacumulação de capital – que também são ativos financeiros. Fenômenos que se manifestaram na origem e no desenrolar da crise global que ora presenciamos.
1. Certamente que as crises no capitalismo não podem ser separadas da sua dinâmica própria, intrínseca. O capitalismo, em seu móvel de acumular por acumular, jamais se interessará pelas “necessidades sociais” das massas trabalhadoras. Isto diz respeito à sua “missão”, a qual, segundo Marx, é produzir em larguíssima escala, até superproduzir capital. Quer dizer, sobreinvestir para fazer crescer a produtividade social do trabalho e suplantar a concorrência, superproduzir para superlucrar, e superacumular capital em excesso e em todas as suas formas, referenciando-se numa dada taxa média de lucro.
Portanto, a superprodução de capital – essencialmente de máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas, e ativos financeiros – é uma “novidade” do século 19, então anunciada por Marx contra as teorias Smith e Ricardo. Mais além, constitui imenso equívoco borrar as formas que redesenham as crises mimetizadas no desenvolvimento do capitalismo.
Exemplifico. Trata-se sim – a atual – de uma crise gestada num padrão de acumulação capitalista francamente voltado para a acumulação financeira, onde a “financeirização” dos mercados de riqueza se fez institucional. Repetindo: o capital nunca foi somente máquinas, equipamentos e instalações, tampouco mercadorias: é também ativos financeiros que rendem juros e dinheiro. Manipulado por capitalistas, o dinheiro produz mais dinheiro por ser reserva de valor, por agir como capital a juros (capital-dinheiro), por potencialmente atrair mais crédito. O capital procura valorizar-se sempre – sinuosamente tal qual uma serpente – movimentando-se entre o dinheiro, os ativos financeiros, as mercadorias ampliando sua base de valorização. Na operação crédito/capital a juros o capital converte-se em mercadoria e exprime-se “cada vez mais como puro capital”, no capital por ações, e outros títulos financeiros que representam o direito de apropriação da riqueza [4]. É uma dimensão do movimento de suas formas, que o gênio Karl Marx denominou de “As três figuras do ciclo”:
“Sempre mudando de forma e se reproduzindo, parte do capital existe como capital-mercadoria que se converte em dinheiro; outra, como capital-dinheiro que se transforma em capital produtivo; uma terceira, como capital produtivo que se torna capital-mercadoria. A existência contínua dessas três formas decorre de o ciclo do capital global passar por essas três fases” [5].
Para R. Guttmann, “A crise atual, todavia, é diferente. Não apenas emanou do centro, em vez surgir de algum ponto da periferia, como também revelou falhas estruturais profundas na arquitetura institucional de contratos, fundos e mercados que compunham o sistema financeiro novo e desregulamentado. Estamos diante de uma crise sistêmica, que é sempre um evento de proporções épicas e efeitos duradouros. Claras são as distinções da preponderância esmagadora da finança, nesta crise”.[6]
O que quer dizer também: as crises não são sempre estruturais desde priscas eras.
Valorização, superacumulação e crises
2. Conforme Marx: “a força motriz da produção capitalista é a valorização do capital, ou a seja a criação de mais-valia, sem nenhuma consideração para com o trabalhador” [7]. Crescimento, recessão, recuperação, expansão e instabilidade – também estagnação – são as categorias principais do capitalismo, portanto historicamente datadas, e seu vetor de acumulação é projetado pela hegemonia da haute finance (Karl Polanyi).
Pelo seu caráter incontornavelmente expansivo [8], de outra parte não seria possível a “financeirização” – um padrão que passou a ser imprescindível às determinações da grande finança especulativa e concorrencial -, “brotar” da estagnação (veremos adiante mais sobre isso). Nas grandes fases expansivas antecedem a dinâmica das crises, geralmente: monopolização + “financeirização” + superacumulação (também de riqueza financeira fictícia) + crises [podendo haver ou não estagnação].
Está em Marx que o desenvolvimento do moderno sistema de crédito decorre da imperiosa necessidade de centralização de massas de capitais, o que coincide com o processo de autonomização do capital a juros, configurando um circuito financeiro que mobiliza, utiliza e centraliza capital monetário e valoriza capital fictício. É assim que: a) a proliferação de títulos financeiros passa “a ter uma circulação e valorização próprias”; b) as variadas formas de ativos “passam a ser disputadas pelas massas centralizadas de capital”, onde o investimento busca todos os espaços de valorização; onde a sistemática “transformação dos lucros em excedentes financeiros” se submetem “a uma lógica particular de valorização” [9].
Importa aqui destacar é que o monopólio não apenas reafirma a tendência à superacumulação, como introduz novas determinações que terminam por agravar a instabilidade e a incerteza do cálculo capitalista, próprias desse regime de produção; muito mais ainda na época da “globalização financeira”. E que a teorização dos processos mais recentes que catapultam as crises via circuitos da “finança mundializada” (Chesnais) são similares aos mecanismos originários das crises desse regime de produção. O que, mais uma vez, na presente crise global, pode ser constatado cabalmente na decomposição de vários dos maiores bancos de “investimento”, gigantescos bancos e coração do sistema financeiro dos EUA.
Aliás, além de superacumulação-superprodução, devemos insistir em que a desproporção entre os departamentos e a lei de tendência de queda da taxa de lucro são igualmente fenômenos que se expressam da dinâmica da crise. Crises que, conforme Marx, em última instância tem como determinação originária o antagonismo irresoluto: apropriação cada vez mais privada X produção cada vez mais expansivamente social.
“Financeirização” e crise
“Essa mudança é chamada de financeirização. A crescente integração dos mercados financeiros em cada país e a interligação global entre as praças financeiras são necessárias às operações da gigantesca riqueza financeira atual. (…) Aumentaram os episódios das crises financeiras, como os anos de 1990 e 2000 demonstraram (R. Souza, 2008) [10].
Trazendo à luz das passagens referidas, chamemos atenção a três fenômenos centrais da dinâmica do regime do capital do nosso tempo: a) a fixação da categoria “financeirização” da riqueza capitalista; b) a ideia de uma interligação sistêmica dos “mercados financeiros nacionais e internacionais” [11]; c) o visível aumento da frequência das crises (detonadas nas esferas) financeiras, notadamente desde os fins dos anos 1980 tipificando assim uma particularidade dessa dinâmica.
Como assinalamos, encontra-se no centro das perspectivas do capitalismo, a problemática da financeirização, quer dizer, da predominância avassaladora da valorização financeira no atual padrão contemporâneo de acumulação capitalista mundial, impulsionado pela liberalização e desregulamentação financeiras expandidas desde os anos 1980. Singularidades que se explicitam na marcha da grande crise atual.
Assim, a dominância sistêmica do capital financeiro e da finança em geral é fato amplamente comprovado. Simplesmente porque justifica determinações rígidas, estáticas das leis de movimento do capital – e especialmente apontadas no Livro 3 de O Capital -, recusando o movimento do real:  “revoltar-se” contra uma “suposta” financeirização é pretendender que passemos a andar em círculos na crise do marxismo.
Não se trata de artificializar discrepâncias intelectuais, muito menos transformá-las em rivalidades. A obra de economia política de Karl Marx não só é complexa como necessita de uma visão do conjunto de suas teses essenciais. Num exemplo teórico notável de formulações centrais do estatuto científico do marxismo, escreve o epistemólogo português Armando Castro:
“A totalidade teórica organiza e enuncia um sistema de relações entre representações (cujo centro são as leis), permitindo chegar à explicação de um conjunto de relações com propriedades próprias e diferentes das que se reconhecem nos seus elementos interligados” [12].  Mas expliquemos isso com vagar.
O histórico e o lógico. Desconhecimento e negação da teoria de Marx
1. Numa dimensão histórica, consistem em fatos reconhecidos e fartamente analisados a regulamentação do comércio e das finanças internacionais, institucionalizada pelo sistema de Bretton Woods (1944), através das limitações aduaneiras protetivas na periferia e no centro capitalista e também por restrições ao livre movimento de capitais. O que foi sucedido pelo móvel da globalização neoliberal: essencialmente desregulamentação da produção e da circulação de mercadorias em nível internacional e dos mercados financeiros internacionais. No que se seguiu uma forte valorização da riqueza financeira, impulsionada pelos novos instrumentos (inovações financeiras) e seus mercados. A propósito, recorde-se aqui: em 2007-8 completaram-se dez anos da crise iniciada na Ásia, inicialmente na Tailândia, detonada por uma onda de sucessivos ataques especulativos a várias moedas da região, fazendo desabar países (produto e emprego) que particularmente desregulamentaram e liberalizaram a configuração de seus mercados financeiros.
2. Noutra dimensão, do ponto de vista teórico, as ideias de Marx, do final do século XIX, sobre o caráter das crises do capitalismo, demonstraram não só ser de uma força histórica tremenda. Elas abrigam duas questões cruciais à compreensão da dinâmica sistêmica do capitalismo: a) assinalam a ruptura do ciclo ascensional, por “parada” ou bloqueio dos investimentos, com desdobramento inexorável em “queima de capital”; b) reafirmam o imperativo estrutural de funcionamento no movimento constitutivo e contraditório de expansão-instabilidade-crise.
Dito de outra maneira, não se trata apenas de acusar “problemas relevantes” na esfera financeira. Essa é uma visão que simplesmente “descola” produção de circulação. Para Marx, o próprio desenvolvimento do capital e do sistema de crédito sofre, nas crises, interrupção em:
  “inúmeros pontos da cadeia de obrigações de pagamento em prazos determinados, e se agravam com o consequente desmoronamento do sistema de crédito que se desenvolve junto com o capital. Assim redundam em crises violentas, agudas, em depreciações bruscas, brutais, estagnação e perturbação física do processo de reprodução e, por conseguinte em decréscimo real da produção” (Marx, “O Capital”, Livro 3, v. 4, p. 292, Civilização Brasileira, s/ data).
Hodiernamente, na medida em que o “capital portador de juros” (Marx) passou a ser o motor das operações financeiras na ascensão do neoliberalismo, assim como foi promotor de uma época crônica de instabilidade e crises financeiras mais frequentes, deve-se acentuar que:
“Sob o aspecto qualitativo, o juro é mais-valia, proporcionada pela nua propriedade do capital, pelo capital em si, embora o proprietário esteja fora do processo de reprodução; é mais-valia que o capital rende, dissociado de seu processo” (Marx, Livro 3, v. 5, Cap. XXIII, p. 434) [7]. Como assim, “dissociado”? É que, no processo de valorização do capital portador de juros,
“O ciclo D…D’ entrelaça-se com a circulação geral de mercadorias, sai dela e nela entra e é parte dela. Entretanto, constitui, para o capitalista individual, movimento próprio autônomo do valor-capital, movimento que se efetua parte na esfera da circulação geral de mercadorias e parte fora dela, mas conservando sempre seu caráter autônomo” (Marx, “O Capital”, Livro 2, v. 3, p. 57).
Não deixando dúvidas, mais enfaticamente diz ele ainda sobre a especificidade do capital portador de juros e sua relação com a tendência à superacumulação capitalista:
“Assim, o ciclo do capital-dinheiro é a forma mais exclusiva, mais contundente e mais característica de manifestar-se o ciclo do capital industrial. O objetivo e o motivo propulsor deste nele saltam aos olhos: expandir o valor, fazer dinheiro e acumular (comprar, para vender mais caro)” (Marx, idem, p. 60).
No entanto, recordando a interpretação dialética de Marx (“As três figuras do ciclo”) do movimento do capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital produtivo, referidas no artigo anterior, é imprescindível que assim compreendamos a totalidade desse movimento:
“Mas, cada parte ininterrupta e sucessivamente de uma fase, [pode passar] de uma forma funcional para outra. As formas são portanto fluidas e sua simultaneidade decorre de sua sucessão”. “(…) Só na unidade dos três ciclos se realiza a continuidade do processo global… O capital global da sociedade possui sempre essa continuidade e seu processo possui sempre a unidade dos três ciclos” (Marx, idem, p. 107).
3. Na evolução do capitalismo contemporâneo, a manipulação do capital-dinheiro assim aparece formulada: a) F. Chesnais [13], insistindo, diz que o “predomínio financeiro puro” do ressurgimento das formas do “capital-dinheiro concentrado”, a manejar as alavancas de controle do sistema capitalista mundial, “acentuou o processo de financeirização crescente dos grupos industriais”; b) segundo P. Gowan, a estratégia original do grande capital financeiro norte-americano e britânico, impunha a inflação baixa para manter a função da moeda “como um padrão fixo de valor de acordo com os interesses do capital-dinheiro”, tendo sido esta a “verdadeira base para a inauguração do neoliberalismo do Atlântico” [14]; c) porém, em sua dinâmica concreta, ou seja, na macroestrutura financeira desse capitalismo do nosso tempo, realizam-se operações monetário-financeiras e patrimoniais de um conjunto de instituições (bancos centrais relevantes, pelos bancos privados, por diversas organizações financeiras, pelas grandes corporações e pelos proprietários de grandes fortunas); operando em várias praças financeiras a valorização e desvalorização das moedas, dos ativos, gerindo os mercados interligados de crédito e de capitais, ampliando “as transações cambiais autonomizadas em relação ao comércio internacional, direcionando a ‘poupança financeira’ e a liquidez internacional” – descreveu Braga [15]; d) padrão sistêmico esse neoliberal que, por sua feita, determinou as últimas décadas “como as mais tumultuosas da história monetária internacional, em termos de número, escopo e gravidade das crises financeiras” – enfatizam Kindlerberger e Aliber. [16]
Superacumulação e crises financeiras
Vê-se que a globalização financeira adveio da liberalização do movimento de capitais e transposição de fronteiras econômicas, a par de decisões do Estado norte-americano em catapultar a grande finança especulativa. Cada vez mais intensa, a instabilidade do sistema tende a ser permanente, obstando a taxa de investimento, o que pode reduzir o ritmo da acumulação e do crescimento econômico no centro capitalista e em parte da periferia do sistema.
Assim, as crises canalizadas pelas esferas financeiras, desse estágio do capitalismo monopolista, e fortemente oligopolizado do ponto de vista do poder financeiro, mantêm a mesma lógica, numa vertente fortemente induzida pelo caráter fictício da acumulação financeira, da crise de superprodução; refletindo o excesso de valorização do capital em relação à determinada taxa de juros. Mas se exacerbam alguns traços típicos dessas crises como a rapidez da propagação e a recorrência.
O que significa dizer: as crises contemporâneas se tornam mais frequentes, por expansão e aumento da especulação, e do volume na acumulação fictícia; o que, por sua vez é decorrente da quantidade/velocidade das transações com ativos financeiros, cada vez mais abrangentes, se propagando mais rapidamente pelos mercados nacionais e alcançando facilmente regiões inteiras ou mesmo o mundo.
Observe-se: divulgou-se em 2008 que a relação entre a riqueza (fictícia) nocional financeira (aquela que é alavancada e derivativa e pode chegar a valer de acordo com o que valha no futuro câmbio ou juros) seria de US$ 350 trilhões, enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) dos países do planeta alcançaria US$ 56 trilhões [números redondos e aproximados].
De outra parte, na direção oposta dos que ainda insistem na tese da “estagnação” como produtora de “financeirização”, escreve Marx, desvelando já então um aspecto estrutural (e contemporâneo!) que integra as crises financeiras:
“Esse capital fictício reduz-se enormemente nas crises, e em consequência o poder dos respectivos aos proprietários de obter com ele no mercado. A baixa nominal desses valores mobiliários no boletim da Bolsa não tem relação com o capital real que representam, mas tem muito que ver com a solvência do proprietário” [17]. Em definições mais precisas, (i) Marx alude a dois tipos de capital financeiro: o portador de juros e o fictício; (ii) o capital fictício consistindo em títulos negociáveis no futuro (para ele composto por ações ordinárias das Bolsas, títulos públicos e a própria moeda de crédito (bancária). Aliás, indispensável o registro da formidável narrativa do norte-americano Guttmann:[18]
“Já há um século atrás, Marx (1894) fazia distinção entre dois tipos de capital financeiro, tais sejam capital de empréstimo portador de juros e o que denominou capital fictício. Esse último consistia, segundo Marx, em títulos negociáveis sobre compromissos de fluxo de caixa futuros (securities), cujo valor era derivado unicamente da capitalização da renda antecipada, sem nenhuma contrapartida em capital produtivo. Marx identificava, como fontes-chave de capital fictício, ações ordinárias negociadas na bolsa de valores, títulos públicos e a própria moeda-creditícia. Todos os três se tornaram muito mais importantes hoje do que eram nos tempos de Marx. Desde então, a maioria das grandes empresas transformaram-se em corporações controladas por acionistas, e a bolsa de valores tornou-se um mecanismo fundamental para a expansão empresarial e a reestruturação industrial. O mercado de títulos públicos, cuja dramática expansão foi fruto de meio século de aumento nos déficits orçamentários, na maioria dos países industrializados, oferece hoje aos investidores um instrumento altamente líquido e relativamente livre de risco para aplicar o dinheiro excessivo em caixa”.
Um parêntesis pertinente. Trata-se de um exemplo recente de que não é a estagnação que produz a financeirização, quando examinamos a experiência da longa estagnação japonesa (1990-2002). 1) Conforme o especialista Ernani Torres Filho, entre 1983 e 1991 – exatamente o período que antecede a grande crise do país -, o crescimento médio da economia japonesa foi de 4,4%, bem maior que o dos EUA (3,0%) ou da Alemanha (3,1%). O período que vai de 1992 a 1995 – exatamente no período que o Japão afundava na estagnação -, esse crescimento foi de 0,7%, o dos EUA 3,2%, o da Alemanha 1,1% [20]. 2) Para se ter ideia do custo fiscal do Japão para enfrentar a estagnação, deflagrada com a desvalorização de riqueza e a deflação, posteriores à especulação da bolsa de valores e de imóveis, ele foi estimado em 20% do PIB, contando apenas a partir dos anos 1992 a 1995 [19].
Estamos afirmando então que, já em Marx simultaneamente se processa: a) a acumulação de capital à base da apropriação do trabalho excedente; b) a taxa de lucro induzindo a taxa de juros; c) o capital portador de juros gestando capital fictício. Isso conduza a um vetor que se relaciona com a busca incessante de valorização do valor, para a qual a especulação passa a ser intrínseca ao desenvolvimento do moderno sistema de crédito. Especulação, que, de acordo com uma formulação de Marx é consequência do desenvolvimento do sistema de crédito e lucro a partir dos juros, e:
“Reproduz nova aristocracia financeira, nova espécie de parasitas, na figura de projetadores, fundadores e diretores puramente nominais; um sistema completo de especulação e embuste no tocante à incorporação das sociedades, lançamento e comércio de ações” [20].
Ademais, um processo especulativo (e cíclico) que Marx vincula também, claramente, à deflagração de crises financeiras:
“Essa são crises cujo movimento se centra no capital monetário e, por isso, bancos bolsas de valores e finanças são suas esferas imediatas”. [21]
Superacumulação e Lei da Tendência de Queda da Taxa de Lucro
Pensamos ter ficado (razoavelmente) compreensível a correlação anunciada entre valorização do valor e superacumulação – desdobrando-se em valorização financeira. A guisa de introdução, passemos então a outra correlação (inversa): entre a superacumulação e a Lei de Tendência de Queda da Taxa de Lucro.
Não “apenas” porque, a) a tendência à queda da taxa de lucro é efetivamente, segundo Marx, uma expressão típica desse modo de produção, na medida em que o processo de acumulação capitalista necessita, obrigatoriamente, continuar a expansão da produtividade social do trabalho. Mas notadamente porque, b) a partir da segunda metade do século 20, a enorme expansão do sistema internacional de crédito potencializa a superacumulação de capital.
Expansão essa que, de acordo com interpretação algo diferenciada de P. Nakatani, acerca do que denomina “desenvolvimento da esfera financeira”, terminou se manifestando na esfera financeira em escala mundial. De uma parte – diz ele -, a expansão do sistema financeiro teria absorvido o excesso de capital monetário da esfera produtiva; de outra parte, “gerou uma remuneração que encobriu, pelo menos parcialmente e contraditoriamente, a tendência à queda na taxa de lucro, gerando os períodos de euforia com as ‘bolhas financeiras’; enfim, essa esfera passou a comandar o conjunto do sistema” [22].
Importa então aqui relembrar simplificadamente que, para Marx, assim se deve equacionar a Taxa de Lucro: Taxa de Lucro: l= m/(c+v)
Sabemos que m é a Taxa de Mais-Valia, c o capital constante e v o valor da força de trabalho (salários). Como afirmamos, para o capitalista é decisivo o investimento em c (máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas), no sentido de aumentar a produtividade do trabalho (força produtiva social). Na mesma medida em que ele mesmo descarta ou até “aniquila” (Belluzzo) a força de trabalho. Ou seja, fica evidente que a tendência (de longo prazo) da taxa de lucro é cair. E por que afirmo no “longo prazo”?
Porque se deve apreendê-lo em duas dimensões:
1) Nas palavras de Marx, cujo idêntico raciocínio crucial persiste especialmente nos Capítulos XII, XIV e XV do Livro 3, v. 4 (também no livro 1):
“Assim, ao progredir o modo capitalista de produção, o desenvolvimento da produtividade social do trabalho se configura na tendência à baixa progressiva da taxa de lucro e, além disso, no aumento absoluto da massa de mais-valia ou lucro extraído” (“O Capital”, Livro 3, v. 4, p. 255).
2) Entretanto, há muito se discute que é o próprio Marx – e sua extraordinária profundidade intelectual – quem apresenta fatores que contrariariam esta tendência de queda, encarando-a como sendo lei de longo prazo. Diz ele que esses fatores seriam: a) o aumento do grau de exploração do trabalho; b) a redução dos salários; c) a baixa no preço dos elementos que compõem o capital constante; d) a superpopulação relativa (o exército industrial de reserva da Lei Geral da acumulação capitalista); e) o comércio exterior; f) o aumento do capital por ações (juros+rentismo).
Sistema de crédito, especulação e crises
“Se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da especulação excessiva… (…) acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e a formação do mercado mundial… (…) Ao mesmo tempo, o crédito acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises… (…) levando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo” (Marx, O Capital, Livro 3, v. 5, p. 510).
Prosseguindo no enfoque mais teórico, vimos que, segundo Marx, a) mutantes, o capital-dinheiro, o capital-mercadoria e o capita-produtivo formam as “três figuras do ciclo”, isto querendo dizer que são distintas as formas que o capital assume, mantendo-se a unidade do ciclo; b) nas crises do capitalismo – (que se expressam regularmente nos fenômenos de superprodução/superacumulção, lei da tendência de queda da taxa de lucros e desproporção entre os departamentos), a manifestação em uma de suas esferas (como em 2007, iniciada na financeira) é inseparável da dinâmica do ciclo global do capital.
Quer dizer, não há sentido algum apartar a esfera financeira da produtiva (circulação e produção), ou falar-se que “a crise não é só financeira, é econômica”, do ponto de vista do modo de produção capitalista. Dito de outro modo, a existência contínua das três formas referidas decorre de o ciclo do capital global passar por essas três fases. Mas o mesmo não se pode dizer da “autonomização” que realiza o capital financeiro enquanto formas distintas: a) de capital portador de juros; b) de capital fictício. Por que, como assim?
“Da totalidade do capital destaca-se e se torna autônoma determinada parte, na forma de capital-dinheiro [como capital portador de juros], tendo a função capitalista de efetuar com exclusividade essas operações para toda a classe dos capitalistas industriais e comerciais” (Marx, idem, p. 363).
Notadamente hoje – analisa R. Guttmann -, “(…) o capitalismo dirigido pelas finanças tem dado prioridade ao capital fictício, cujos novos condutos, com derivativos ou valores mobiliários lastreados em ativos, estão a vários níveis de distância e qualquer atividade econômica real de criação de valor. Nessa esfera, o objetivo principal é negociar ativos de forma lucrativa para obter ganhos de capital, uma atividade bem mais definida como especulação” [23].
“Financeirização”, crises e tipologias
Com a grande crise capitalista atual, não à toa a categoria “financeirização” da riqueza capitalista, assim como sua mediatizada relação com as crises financeiras mais recorrentes vêm assumindo um nível mais elevado de teorização. Num artigo do economista J. C. Braga, as ideias centrais que sustentam sua nova formulação em “Crise sistêmica da financeirização e a incerteza das mudanças” [24], enfatizam não só ser a crise da natureza do capital e do capitalismo desregulado. Para Braga não há “nenhuma deformação, nenhum desvio da essência do processo de acumulação”, seja pela via da acumulação produtiva, seja pela “articulação daquela com a acumulação financeira e da autonomização dessa última”. Isto porque, em palavras mais diretas e se referindo a crise das “hipotecas subprime”:
“A dinâmica da valorização imobiliária e seu fenecimento que está na origem da crise atual expressou a extensão da globalização financeira e a intensificação da financeirização das economias” (idem)
Sob ângulo similar, a temática comparece em entrevista com o destacado economista cubano Oswaldo Martínez. Em sua opinião, uma das principais características da economia capitalista contemporânea diz respeito a
“um nível de financeirização da economia mundial enormemente superior também. (…) Hoje a especulação financeira alcança uma sofisticação imensa, e essa sofisticação é por sua vez um dos pontos débeis, quer dizer, fazem operações especulativas tão sofisticadas, arriscadas, irreais, e tão fraudulentas, que se encontra na base da explosão financeira que tem ocorrido” [25].
O que significa que as formulações de Braga e Martínez convergem, essencialmente, para uma outra conclusão de Guttmann, no ensaio acima referido:
“Mas agora este sistema está em crise. É verdade, o capitalismo dirigido pelas finanças sempre teve uma propensão a crises financeiras em momentos fundamentais de sua expansão territorial ao trazer economias até então dirigidas pelo Estado para a órbita da regulamentação do mercado…” [26].
É fundamental, no entanto, perceber que as características da dinâmica capitalista, previstas na teoria de Marx, apontam a relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e do moderno sistema de crédito com as formas assumidas pelas crises. Por exemplo, a crise atual, de excepcionais dimensões e ainda em seu desenrolar de grandes perplexidades, chama a atenção de Guttmann exatamente porque,
“(…) como sempre acontece com crises financeiras importantes, esta também tem características únicas. Particularmente surpreendentes têm sido a velocidade, o alcance e a ferocidade das rupturas… (…) Uma crise de tais dimensões acontece muito raramente…” – prossegue ele ao acrescentar a destruição do sistema bancário dos EUA, de atuação global (Guttmann, idem).
Altvater, Hobsbawm, Marramao e Roberts: críticas de teoria das crises e da “teoria del derrumbe”
A esse respeito, análise dogmática – afirmo – de certa tipologias das crises do capitalismo foi examinado num célebre ensaio do alemão E. Altvater [27]. Assim, para ele, as “teorias das crises” existentes não seriam capazes de reproduzir conceitualmente a complexidade dos processos de crise, tampouco servirem para dar consequência a “projetos políticos adequados”. Ou seja: a) a teoria do “desequilíbrio ou desproporção” dos departamentos não captaria a “contraditoriedade social expressa na valorização do capital”; b) as teorias do “subconsumo” seriam a representação de um modelo do ciclo capitalista “bastante simplificado”, constituindo uma variante da “teoria do colapso ou da impossibilidade” sistêmica de uma nova fase de acumulação; c) a do colapso de H. Grossmann incapaz “absolutamente, de compreender o capitalismo como sistema social”; d) a do russo E. Varga, uma teoria subconsumista “aperfeiçoada com elementos extraídos da teoria da superacumulação”, que impossibilitaria – imagina Altvater – igualmente “uma regeneração temporária com o auxílio da crise”.
Concordando com as “teses” de Altvater, (mas não isolando a importância da desproporção/desequlíbrio dos departamentos como retroalimentador da crise) acrescento, que, seguindo a interpretação marxiana, Lênin (1897), após implacável rechaço da visão “subconsumista” como produtora de crises capitalistas, sublinha-se acerca da configuração contraditória da produção capitalista:
“Pelo contrário, se explicamos as crises pela contradição entre o caráter social da produção e o caráter individual da apropriação, reconhecemos com isso a realidade e o caráter progressivo do caminho capitalista (…)”. [28] Isto significa dizer – afirma a seguir Lênin – que a versão subconsumista das crises “vê a raiz do fenômeno fora da produção”; a teoria de Marx “a vê precisamente nas condições da produção” (idem, p. 98). Ora, sabemos bem que raiz é uma coisa, frutas frescas e outras podres são bem distintivas; relacionam-se mediatizadamente.
De outra parte, não é à toa que o historiador Hobsbawm foi buscar na grande contribuição de Lênin a ideia de que é falsa a “teoria el derrumbe del capitalismo”, a partir da correlação finalística “crise-catástrofe-colapso”, imputada à teoria leninista. Dissertou ele:
“A Era dos Impérios ou, como Lênin a chamou, o imperialismo, não foi, evidentemente, ‘a etapa final’ do capitalismo; mas, à época, Lênin nunca afirmou realmente que fosse. Simplesmente a denominou, na primeira versão de seu influente escrito, “a última etapa” do capitalismo” [29]. Até porque – enfatiza o historiador – todas as tentativas de “isolar a explicação do imperialismo do desenvolvimento específico do capitalismo no fim do século 19” não passam de “exercícios ideológicos” (idem, p. 110).
Num ângulo similar, o marxista italiano G. Marramao, quando do vasto exame do debate marxista dos anos 1920-30 sobre as “vicissitudes da ‘teoria do colapso’”, destaca o erro grosseiro dos que não distinguiam e faziam “referências indevidas entre o ‘plano lógico’ e o ‘plano histórico’ (exposição científica das leis tendenciais e movimento real), tanto na defesa como na crítica da análise marxiana do capitalismo” [30].
Bem mais recentemente, e se referindo à profundidade da crise atual, o pesquisador marxista Michel Roberts, ao analisar as tese de R. Kurz e D. Graeber, defensores da teoria do colapso, conclui sobre esses autores que:
“Tenho grande simpatia pela visão de Kurz e de Graeber, mas mantenho as minhas reservas nesse entretempo. Se ao longo dessa depressão não ocorrer a sua substituição por meio da política dos movimentos recém-energizados de trabalhadores, é possível que o capitalismo emergente possa criar um novo período de desenvolvimento. Também não é certo que o capitalismo maduro não possa desenvolver e explorar novas tecnologias, mesmo se tem falhado em áreas tais como robótica, inteligência artificial, impressão em 3D e nanotecnologia. Na verdade, alguns argumentam que a tecnologia norte-americana está desenvolvendo a técnica para extrair óleo e gás do xisto, de um modo tal que trará o balanço do poder energético de volta para os Estados Unidos da América do Norte, assim como para as economias maduras, em detrimento da Ásia e do Oriente Médio”. [31]
Crise por “subconsumismo”: violação dogmática da teoria de Marx
No rastro da grande crise dos dias que correm, teóricos voltaram a ressuscitar a tese de ser a crise atual gerada por “subconsumo das massas”; e por “superprodução de mercadorias”. De saída, o não consumo dos chamados bens salários seriam os responsáveis pelas crises de superprodução. Vejamos mais uma vez sobre o assunto, de inegável importância, e questão representativa de uma visão deveras falseada da essência da dinâmica do regime do capital, conforme estudos de conjunto da obra marxiana.
Na interpretação de Marx: a) capital (máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas, ativos financeiros) é valorização do valor que se expande; b) expande-se a mais-valia a partir da extração do excedente do trabalhador assalariado, subtraindo o valor do tempo de trabalho socialmente necessário, vis-à-vis ao pagamento para reprodução de seus meios de subsistência, da jornada de trabalho produtora de mais-valor; c) a concorrência intercapitalista impõe a ampliação das escalas de produção e o aumento da produtividade social do trabalho; d) para tal, tendência inexorável do capital é aumentar investimentos no capital constante (C), o que representa inovação tecnológica em bens de produção (bens de capital), em detrimento (ou no descarte) da força de trabalho e seus salários (v); e) na lei geral da acumulação capitalista, as duas alavancas decisivas são a concentração (e centralização) de capitais e o moderno sistema de crédito; f) a concorrência, o crédito, a concentração-centralização de capitais implicam nos fenômenos estruturais de superacumulação e superprodução de capitais; g) a superprodução de capital não indica em outra coisa senão superacumulação de capital, enquanto que o subconsumo assalariado representa o dado de que se parte previamente.
A esse respeito, observe-se então como Lênin prossegue aclarando Marx,   a propósito da contradição entre a tendência à ampliação ilimitada da produção e a necessidade de um consumo limitado (a consequência da situação proletária das massas do povo): “Sem embargo, o capitalismo leva sempre implícita, de uma parte, a tendência a ampliação ilimitada do consumo produtivo, a ampliação ilimitada da acumulação e da produção e, de outra parte, a tendência à proletarização das massas do povo, que traz limites bastante estreitos à ampliação do consumo individual” (idem, 1974, p. 211-12).
Ou seja, as crises do capitalismo se expressam em superprodução de capital – e também de mercadorias; superprodução que, para ser assim designadas, envolve os vários ramos da economia e jamais serão deflagradas “por subconsumo das massas”. Regime do capital onde nunca existiu “estagnação” enquanto “modo de ser”, o que deveria ocorrer em função do “subconsumo das massas”, na era dos monopólios, como imaginaram P. Baran e P. Sweezy em seu estudo conceitual “O capitalismo monopolista” (1969).
Como bem explica J. Gorender, em sua conhecida “Apresentação” a “O Capital”, o que acontece mesmo no desenlace do ciclo econômico não é que a crise sucede a uma queda do consumo, bem ao contrário, ela sucede a uma alta de mais acentuado consumo, uma elevação que na é a regra. [32] Quem escrevera antes e enfaticamente: é “por demais incontestável que Marx recusou a ideia de que a crise cíclica se desencadeasse por efeito da insuficiência de demanda solvente (ou demanda efetiva)” (Gorender, idem).
Ainda sobre ao assunto, importa notar que após de escrever o exposto na epígrafe deste artigo, Lênin, em sua obra clássica “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia” (1899), referindo-se a variadas  passagens – objetivamente passagens que induzem a erros crassos, na medida do não cotejamento delas com o conjunto completo da obra de Marx sobre a temática ciclo-crise -, do texto magno de Marx,  enfatiza que:
“Marx se limita a por manifestamente aqui uma contradição do capitalismo assinalada já em outras passagens de O Capital, a saber: a contradição entre a tendência a ampliação ilimitada da produção e a necessidade de um consumo limitado (a consequência da situação proletária das massas do povo)” (Lênin, 1899). [33]
Cumpre notar aqui: Karl Marx levava em absoluta consideração o caráter revolucionário do seu Método, assentando nele boa parte dos êxitos de sua poderosa interpretação teórica. Com efeito, a clara distinção entre investigação e exposição significava exaustiva e a mais completa possível apropriação dos dados da realidade em movimento. Vistas as fontes em sua maior completude possível, a análise se voltava então para as conexões e as formas de desenvolvimento da matéria anatomizada. Só então passar-se-ia à exposição (interpretando) os resultados obtidos.
Voltemos, sob esse prisma, ao nosso ao tema. Hodiernamente, se o “subconsumo as massas” é a razão central das crises desse padrão de acumulação do regime do capital financeirizado, isto significa que:
1)se o “subconsumo as massas” é a razão central das crises, então quanto maior o crescimento do PIB e do PIB per capita, mais se afastaria a possibilidade das crises no capitalismo dos nossos dias, certo? Totalmente errado: a Suécia sofreu em 2009 uma recessão grave, com queda de 4,2% no PIB (Produto Interno Bruto), a maior desde o início da Segunda Guerra Mundial; retornará o desemprego em massa ao patamar de 12% até 2011, de acordo com as previsões do governo (Folha On Line, 01/04/2009 – 11h09). Ora, a Suécia sempre foi exibida como exemplo paradisíaco da moderna sociedade burguesa, vangloriando-se de uma renda per capita recentemente calculada em nada menos que US$ 39,6 mil (janeiro/2009).
Bem, “subconsumo das massas” suecas como causa da crise? Isto é apenas piada em graça.
2) A Índia, segundo dados oficiais, possui cerca de 700 milhões de pessoas em condições pobreza, e pouco mais de 300 milhões incluídas entre as variadas camadas médias e burguesas. Entre 1991-2008, sua taxa de crescimento foi maior que 6%, alcançando em 2006-7, nada menos que 9,4% de avanço de seu PIB. Por que a Índia, ao invés de ser submetida a crises econômicas de “subconsumo das massas”, dadas especialmente as centenas de milhões de pessoas (cerca de 2/3 de sua população) vivendo em condição de pobreza crônica, cresce vertiginosamente sua economia a taxas tão elevadas? [34]
3) Finalmente, como se pode insinuar que a crise atual, objetivamente gerada a partir da débâcle das hipotecas suprime nos EUA, ou seja, uma crise centrada no capital portador de juros contidos nos título (hipotecas), auxiliada por residências vendidas aos milhões a uma baixíssima taxa de juros – o grande móvel de massas norte-americanas para, a partir das hipotecas, inflar empréstimos para o hiper-consumo (2/3 do PIB dos EUA); movimento esse revertido  e “quebrado”, também pela inédita alavancagem do sistema bancário-financeiro, reforçada pela especulação derivativa, quer dizer, pela manipulação de títulos podres e impagáveis de famílias endividadas astronomicamente para consumir, tudo isso originou uma crise nos EUA “de subconsumo das massas?”
Exatamente sobre a questão, num esclarecedor artigo, L. Belluzzo chama a atenção para o fato de o consumo representar mais de 70% da demanda agregada nos Estados Unidos.  Conforme ele explica,
“A economia americana, nos últimos 20 anos, foi impulsionada, sobretudo, pelo crescimento sem precedentes do consumo das famílias. Nos últimos três anos e meio essa característica da economia americana exasperou-se: o crescimento do consumo “descolou” [disparou] da evolução da renda, dos salários reais e do emprego. Sua evolução depende cada vez mais do efeito-riqueza, concentrado, nos últimos anos, na valorização dos imóveis residenciais”. [35]
Seguramente, é de Lênin – e do ucraniano Túgan-Baranovski – a ideia moderna de que no capitalismo o que é preponderante é a demanda por meios de produção (bens de capital; e + ativos financeiros, hoje).
As crises não são, portanto, deflagrada, criadas, originadas pelo “subconsumo das massas” ou por “superprodução de mercadorias”. As condições de realização da produção capitalista não são determinadas pelo nível de renda dos trabalhadores ou consumo das massas. É o investimento capitalista a variante independente e central na dinâmica capitalista, e por sua vez, é ele quem pode deflagrar a superacumulação e a superprodução – e as crises concretas.
Duas catástrofes – e um sistema financeiro fantasmático
Na grande e grave crise capitalista que vivenciamos nestes dias – fortes movimentos depressivos -, a grande catástrofe que se apresenta, até agora, é o desemprego elevadíssimo e em massa que se espraia sobre as massas trabalhadoras, especialmente no capitalismo central e havia pouco “desenvolvido”. De resto, uma gigantesca queima de capital (Marx) e crescente ampliação das desigualdades sociais. E intensa resistência do proletariado e demais trabalhadores ao ataque brutal contra as conquistas do Welfare Estate, particularmente na Europa, bem como grandes protestos nos EUA.
Repetindo Marx mais uma vez: “a força motriz da produção capitalista é a valorização do capital, ou a seja a criação de mais-valia, sem nenhuma consideração para com o trabalhador” [ver nota 7].
Condição humana perene, pois, do trabalho sob o capitalismo, desvendado na mesma na direção da enorme importância que ele dava ao desenvolvimento do moderno sistema de crédito: e se o dinheiro (então na forma de metais preciosos) consistia no “fulcro” desse sistema de crédito, este “supõe o monopólio” dos meios de produção sociais (capital + propriedade fundiária) em mãos privadas, além de ser a “força motriz” dum desenvolvimento capitalista superior. Essencialmente, segundo Marx,
“O sistema bancário é, pela forma de organização e pela centralização, o resultado mais engenhoso e refinado a qual leva o modo capitalista de produção”, onde apenas o desenvolvimento completo do sistema de crédito e do sistema bancário promove e efetiva por inteiro esse caráter social do capital” [36].
“Caráter social do capital”? Sim, para Marx, o sistema bancário, sofisticadamente, “retira das mãos capitalistas privados e dos usurários a repartição, o negócio específico e a função social do sistema” (idem, p 396), tornando-se (os bancos e os sistema de crédito) inclusive “um dos veículos mais eficazes das crises e da especulação” (idem, ibidem).
Consideramos tais definições são de alcance impressionante. No curso da grande crise de 2007-08, de epicentro nos EUA, acabou o mistério do que vem se conhecendo por  shadow banking system. Um sistema financeiro/bancário sombra, denominado pela primeira vez por Paul McCulley (2007), diretor executivo da maior gestora de recursos do mundo, a Pimco. Sua definição de shadow banking system “inclui todos os agentes envolvidos em empréstimos alavancados que não têm acesso aos seguros de depósitos e/ou às operações de redesconto dos bancos centrais”. E, entre as medidas adotadas pelo Fed (Banco Central dos EUA) e por outros bancos centrais, encontra-se a abertura do acesso às operações de redesconto para essas diversas instituições que não podiam utilizá-las como os bancos de investimentos e as GSE (ações negociadas na bolsa, mas patrocinadas pelo governo) [37].
Quer dizer, do surgimento e desenvolvimento de produto financeiros de alto teor especulativo – como por exemplo o Credit Default Swaps (CDS) [38] –, passando pelo desabamento do mercado hipotecário norte-americano (crise das “subprime”), ao colapso financeiro sistêmico provocado pela implosão do banco Lehman Brothers (2008), desvelou-se a emergência de um sistema financeiro sombra.
Não há nenhuma dúvida de que, no capitalismo da globalização neoliberal, o sistema de crédito hodierno chegou perfeitamente “a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo” (Marx, O Capital, Livro 3, v. 5, p. 510).
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Nos 130 anos de seu desaparecimento, resgatar a teoria de Karl Marx também significa não recusar a luta de ideias contra “um certo marxismo” Aquele que desinforma quando simplifica grosseiramente a interpretação da crise capitalista atual resumindo-a a “crise de superprodução e do crédito”; ou, pior ainda, creditar a Marx a ideia de que a crise do capitalismo ocorre quando “a interrupção do processo de circulação do capital ocorre com a paralisação da venda de mercadorias…”.
Notas
[1] Ver: Escritos Económicos Menores, México, Fondo de Cultura, p. 204, 1987.
[2] Para Marx: “As crises não são mais que soluções momentâneas e violentas das contradições existentes, erupções bruscas que restauram transitoriamente o equilíbrio desfeito”. Em: O Capital, Civilização Brasileira, Livro 3, v. 4, p. 292. s/data.
[3] Os “adivinhadores de crise” são os mesmos que agora tergiversam sobre seu longo passado diuturno militante em prol da “catástrofe iminente” do capitalismo, da “decomposição iminente do padrão dólar”, e procuram confundir a análise as grandes crises do capitalismo, como a que transcorre, inúmeras vezes apontadas previamente como tendências que vinham se plasmando – dado o visível grau de superacumulação geral de capital, expansão, especulação, alavancagem e instabilidade.
[4] Ver: “Capitalismo e crise contemporânea – a razão novamente oculta”, de A. S. Barroso, dissertação de Mestrado, Campinas, Unicamp/IE, 2003. A passagem tem por base observações de Braga, J. C. S. (2000).
[5] Em: “O Capital” Livro 2, v. 3, Cap. IV, p. 106, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, s/data.
[6] Antes, Guttmann argumentara em seu importante ensaio “Uma introdução ao capitalismo dirigido pelas finanças”: “As finanças foram profundamente transformadas por uma combinação de desregulamentação, globalização e informatização. Este impulso triplo transformou um sistema financeiro estritamente controlado, organizado em âmbito nacional e centrado em bancos comerciais (que recebem depósitos e fazem empréstimos), em um sistema auto-regulamentado, de âmbito global e centrado em bancos de investimento (corretagem, negociações e underwriting [lançamento de ações com subscrição pública com intermediário] de valores mobiliários). A preferência por mercados financeiros em vez de finanças indiretas utilizando bancos comerciais foi em grande parte facilitada pelo surgimento de fundos (fundos de pensão, fundos mútuos e, mais recentemente, fundos de hedge e de participações) como compradores chave nesses mercados (in: Revista Novos Estudos, CEBRAP, nov. 2008).
[7] Em: “Capítulo inédito D’o Capital – resultado do processo de produção imediato”, Marx, p. 20, Porto, Escorpião, 1975.
[8] Há sim limite estrutural irreversível na dinâmica estrutural do capitalismo: enquanto investe perenemente em sua base técnica (desenvolvimento das forças produtivas como determinante histórico do desenvolvimento), parar alagá-la, expandir a produção e suplantar a concorrência, Das Kapital tem que reduzir, descartar, até mesmo destruir sua própria base de valorização: o trabalho humano e o tempo social necessário à sua subsistência e o da extração da mais-valia.
[9] Ver todo o Capitulo 2 (“O monopólio do capital”) do estudo que considero uma pequena obra-prima, “A contradição em processo – o capitalismo e suas crises”, de professor Frederico Mazzucchelli, especialmente as pp. 84-90 (Campinas, Unicamp/IE, 2004, 2ª edição).
[10] “Dominação global, neoliberal e financeira”, Renildo Souza. E imediatamente a seguir acresce com precisão Souza: “Ademais, as crises cíclicas periódicas são fomentadas pela superprodução e superacumulação, sob o acicate da globalização da concorrência”. In: “Capitalismo contemporâneo e a nova luta pelo socialismo”, pp. 49 e 52, São Paulo, Anita Garibaldi, 2008.
[11] Luís Fernandes foi certamente pioneiro no Brasil a teorizar sobre uma dimensão crucial das ideias revolucionárias de Marx e Engels, quais sejam, o processo de gênese, consolidação e expansão global do capitalismo, contidas no Manifesto do Partido Comunista: “A força dessa compreensão reside na identificação de um impulso expansionista insaciável por parte do capital, que o empurra incessantemente para a busca de novos mercados em todo o globo. Em tempos da chamada ‘globalização’, a atualidade dessa leitura não poderia se mais evidente” (“O Manifesto Comunista e a dialética da globalização”, de L. Fernandes, in: “O Manifesto comunista 150 anos depois”, Reis Filho, D. A. (org.), pp. 109 e 114, Rio de janeiro, Contraponto, 1998.
[12] Ver: ”A contribuição de Marx à teoria e à metodologia das ciências sociais”, de A. Castro, in: “Conhecer o conhecimento”, p. 95, Avante! 1989.
[13] Ver: “Da noção de imperialismo e da análise de Marx do capitalismo: previsões da crise”, de F. Chesnais, in: “O Incontornável Marx”, p. 64, Nóvoa, J. (org), Salvador/São Paulo, Unesp/Edufba, 2007.
[14] Ver: “A roleta global. Uma aposta faustiana de Washington para a dominação do mundo”, p. 81, Rio de Janeiro, Record, 2003.
[15] Ver: “Temporalidade da Riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo”, de J. C. S. Braga, Campinas, Unicamp/IE, 2000.
[16] Em: “A reconstrução do sistema financeiro global”, de Martin Wolf, Cap. “Crises financeiras na era da globalização”, p. 31, Rio de Janeiro, Elsevier/Campus, 2009.
[17] Ver: “O Capital”, Marx, Livro 3, v. 5, p. 50.
[18] Ver; “A transformação do capital financeiro”, de R. Guttmann, Economia e Sociedade, nº7, Campinas, Unicamp/IE, dez.1996
[19] Ver: ”A crise da economia japonesa nos anos 90: impactos da bolha especulativa”, de E. T. Filho, in: Revista de Economia Política, nº 65, São Paulo, jan./mar 1997; sobre dados de Scott, B.; da OCDE, Economic Outlook, vários anos.
[20] Antes, afirmara: “com o juro ascendente cai o preço deles [dos papéis]. O que também provoca essa queda é a escassez geral de crédito, que força os detentores a lançarem-se em massa no mercado para obter dinheiro” (O Capital, Livro 3, volume 5, pp. 566-7).
[21] Em: “O Capital” volume I, p. 116, Nota 99 [à terceira edição alemã], Abril Cultural, 1983.
[22] Ver: “A crise atual do sistema capitalista mundial”, de P. Nakatani, mimeo, s/data. O texto foi indicação do professor Renildo Souza, como bibliografia complementar à Escola Nacional do PCdoB, Núcleo de Economia Política & Desenvolvimento.
[23] Completa adiante o raciocínio Guttmann: “Em outros termos, estamos diante de uma crise sistêmica, que é sempre um evento de proporções épicas e efeitos duradouros”.(Idem, 2008).
[24] “Revista Estudos Avançados da USP”, março de 2009.
[25] Ver: “Crisis económica global. ¿Hasta cuándo?, ¿hasta dónde?”, de O. Martínez, in: rebelión.org (29/4/2009).
[26] Em: Guttmann, idem.
[27] Ver: “A crise de 1929 e o debate marxista sobre a teoria da crise”, de E. Altvater, in: “História do marxismo”, Hobsbawm, E. (org.), v. 8, Paz e Terra, 1987, 2ª edição, especialmente pp. 95-133.
[28] Ver: “Para una caraterización del romanticismo econômico. (Sismondi y nuestros sismondistas nacionales”), de V. I. Lênin, p. 104, in: “Sobre el problema de los mercados”, Escritos económicos, vol 3, Madrid, Siglo Veinteuno editores s.a., 1974.
[29] Ver: “A era dos impérios – 1871-1914”, de E. Hobsbawm, p. 27, Paz e Terra, 2003, 8ª edição.
[30] Ver: ”O político e as transformações. Crítica do capitalismo e ideologias da crise entre os anos vinte e trinta”, de G. Marramao, p. 102, Oficina de livros, 1990.
[31] Ver: “Crise ou colapso?”, de M. Roberts, em: Economia e Complexidade, Blog de Eleutério Prado, post 16/10/2012.
[32] Ver: Apresentação a “O Capital”, J. Gorender, v. 1, p. LX, Abril Cultural, 1983.
[33] Em: “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, Apud Mazzucchelli, F., 2004: 58: “A contradição em processo. O capitalismo e suas crises”, Unicamp, 2004.
[34] Acrescente-se: um informe governamental estima que 77% da população trabalhadora da Índia vivem com menos de meio dólar por dia. Ver: “Índia: a economia cresce, a fome também”, Anuradha Mittal, Portal Terra, 01/10/2008.
[35] Ver: “O consumo americano”, de L. Belluzzo, Portal Terra, 10/10/2008.
[36] Em: “O Capital”, Livro 3, v. 5, p.695.
[37] Ver: “A crise financeira e o global shadow banking system”, de Marcos Cintra e Maryse Farhi, em: São Paulo, Novos Estudos CEBRAP, nº 82, novembro 2008.
[38] Operação, financeira que consiste numa troca entre o vendedor de proteção (fundo de pensões, as empresas de seguros) e um comprador de proteção (bancos). Depois de ter recebido uma remuneração chamada de “prêmio de risco”, os investidores institucionais cobrem ou “compram” o risco de crédito de um banco (em decorrência a vendedora do risco). De modo geral, os fundos de pensões aceitam cobrir o risco quando os crédito são bem notados pelas agências de risco (a nota máxima é triplo A). Mas na realidade, o sistema é um pouco mais complexo do que isso pois ele integra um mecanismo de venda/revenda de crédito e um mecanismo de transferência do risco do crédito. (Ver a explicação em “Uma análise da crise financeira americana e de suas repercussões para a economia brasileira”, de R. Guttmann, ao II Encontro da Associação Keynesiana Brasileira, setembro de 2009).