Como sapato molhado nos pés

Foto: Debaixo de chuva de Beatriz Mendes

 

Hoje, ela comparava-se àquela tempestade que caiu em plena manhã, começo de semana caótica no trânsito da cidade. Na paisagem cinza e molhada, a água descia em riste agredindo telhados e árvores agitadas pela ventania fria. Parada ali na plataforma de acesso à estação do metrô, do andar mais alto, podia ver edifícios e carros açoitados pela chuva bravia. Sob o céu pretejado e prateado que a chuva pintava, como se pincéis e aquarelas entrassem em ação, analisava com tristeza a paisagem desolada, como ela, mas com certo regozijo, porque solidária com sua dor, era a melhor companhia para aquele momento solitário.

 

Frágeis barracos na favela, reerguida nas cinzas do incêndio recente e que deixou tudo em escombros, resistem à iminente catástrofe de boiar com o lixo na cheia do rio. Ela podia ver a favela se desmanchando e sentia-se assim frágil, como aquelas miseráveis pessoas que dormiam quase ao relento, em amontoados de casquinhas de madeira e plástico remendados um no outro, quase dentro do rio podre, onde boiam sofás velhos e cachorros enxotados pela fome.

 

Mas, mesmo nos dias que antecederam esse aguaceiro todo, nos dias ensolarados e quentes, ela também andava sentindo um frio e uma umidade por dentro. Uma friagem de sapato molhado nos pés, que faz tiritar e estremecer como febre, em calafrios. Noites sem dormir fragilizaram-na, madrugadas de preocupações desestruturaram-na.

 

Para tecer sua história, precisava desatar os nós da meada de sua vida, que vinha enrolado como um grande novelo, sabe-se de onde, e desde quando, cruzando mares e terras, na saga de sua família, no emaranhado desconhecido de tantas vidas antepassadas. E perdida em pensamentos ia desvencilhando os nós daquele fio que teceu sua vida, nós difíceis, ressequidos com o passar do tempo, das escolhas erradas, relações mal resolvidas, dos caminhos tortuosos que cada um vai seguindo…

 

Hoje, ela estava assim mesmo, sem graça, olhos molhados, riso contido. Sem fome, sem alegria. Qualquer um podia ver os trovões e os raios da imensa tempestade que caía dentro dela.

 

 

Eliana Ada Gasparini – fonte : http://coisasdeada.blogspot.com