É importante reduzir Marx aquilo que ele é para evitar distorções, diz Harvey
Embora a noite de sábado (23) estivesse convidando às festas no entorno do Sesc Pinheiros, uma pequena multidão de interessados ocupou o teatro Paulo Autran para ouvir uma aparentemente árida palestra sobre O Capital, de Karl Marx. Alguns jovens, inclusive, estavam na praça do Sesc assistindo pelo telão, enquanto o geógrafo britânico David Harvey apontava o que realmente precisa ser observado na leitura do clássico da crítica da economia capitalista: os conceitos que perduram e são capazes de nos orientar ainda hoje na análise das crises capitalistas.
O evento fez parte do IV Seminário Margem Esquerda: Marx e O capital (Etapa 2 do projeto Marx: a criação destruidora), com apresentação de Gilberto Cunha Franca (geógrafo) e mediação de Marcio Pochmann (economista). Durante o evento realizado pela Boitempo Editorial em parceria com o Sesc, com apoio das Fundações Maurício Grabois, Lauro Campos e Rosa Luxemburgo e FAU-USP, foram lançados os livros “Para entender O capital”, de David Harvey, e “O capital”, de Karl Marx, 15º título da Coleção Marx Engels.
A importância dos conceitos
Estudioso dos deslocamentos humanos e da urbanização, Harvey contou de sua pesquisa e do acesso privilegiado que teve a relatórios de proprietários de terras e hipotecários nos EUA. Sem que soubessem do fundo esquerdista e marxista de sua pesquisa, esses profissionais lhe ofereceram acesso a documentos que o ajudaram a compreender de perto o funcionamento do mercado imobiliário e como a crise econômica eclodiu naquele ambiente. Harvey se diverte contando da surpresa daqueles profissionais com os conceitos de valor de uso e valor de troca, oriundos d’O Capital: “Valor de uso e valor de troca, de onde vem? Ah, não vou contar”, dizia ele.
O mesmo aconteceu quando tomou contato com um diretor de imóveis do banco Chase Manhattan, que mostrava como a população de um bairro foi forçada a mudar de lá, após a valorização promovida pelo investimento do banco. Harvey disse que, se a burguesia só tem uma solução para a questão da habitação, ela desloca o problema. “Ele me perguntou de onde veio essa ideia, e eu disse que veio de Engels. Então, ele me perguntou: ele trabalha em Harvard?”
Para ele, é possível ir muito longe numa análise a partir de conceitos como valor de troca e valor de uso. Esses conceitos permeiam a análise de Harvey para o mercado imobiliário nos EUA, na medida em que esses valores foram se invertendo com o tempo e mostram nitidamente o mecanismo da crise. Segundo o britânico, nos primórdios do capitalismo, os imóveis tinham muito pouco valor de troca e muito valor de uso, por isso, nem havia muito interesse na propriedade de um imóvel. “No século XVIII, um imóvel em Londres era como uma commodity”, afirmou, referindo-se ao tipo de produto com valor fixo e universal, com pouca capacidade de inflacionar ou especular-se sobre o valor.
Em 1930, por causa da crise social, chegou-se ao ponto em que o valor de troca de um imóvel se tornasse desejável pelo proprietário; desse modo, a hipoteca se tornou o grande estabilizador social. Ou seja, era preciso estimular a compra de imóveis, fazendo o proprietário acreditar que ele detinha um bem com alto valor de troca. “O mercado imobiliário era visto como um estabilizador social, porque os proprietários de uma casa nunca entram em greve”, acrescentou.
A partir dos anos 80, a habitação se tornou um instrumento que todos podiam especular sobre o seu valor. “Até as pessoas relativamente pobres podiam se engajar nessa especulação e fazer um lucro muito grande vendendo depois a casa”, explicou. Esse ambiente de ganância que dominou toda a economia popular, aliada a desregulamentação dos bancos, foi a base para o desabamento desse mercado.
Leis e singularidades
Após esta explanação rápida sobre a importância de conceitos marxianos para a compreensão de assuntos complexos da economia contemporânea, Harvey focou o debate no teor de seu último livro: Para entender O Capital. Segundo ele, é preciso entender o que Marx está fazendo ao longo de sua obra, para não cometer grandes erros de análise e ser injusto com o autor. Ao longo de sua explicação, o geógrafo aponta assuntos que Marx deixou de abordar, causando frustrações em muitos estudiosos, e explicou o porque dessa escolha intelectual.
Harvey diz que Marx ignorou toda e qualquer particularidade e ateve-se às generalidades, por isso, não teria aprofundado relações de consumo ou de troca, mas foi às últimas consequências em conceitos de produção e distribuição. “É preciso entender porque ele não trata esses assuntos e quais são os assuntos que ele está tratando”, disse.
Na opinião de Harvey, uma das razões porque lemos Marx, hoje, é porque ele está no nível das generalidades. “Ele não tratou do consumo naquela sociedade vitoriana, porque a gente ia falar, ah, mas é muito diferente…” Por outro lado, ele acredita que “até certo ponto, os ecologistas estão certos em ficar loucos” com o modo como Marx exclui a natureza das relações capitalistas. “Marx não suportava a ideia de alguém tentar naturalizar o capital e o capitalismo”, disse.
Marx também não se interessou pelo modo como o mais-valor se distribui, mas
Se interessou pela totalidade de organização em que todos esses elementos interagem: produção, distribuição, consumo e troca. “Há coisas que não foram tratadas, mas que se tornaram muito importantes, como a natureza, as vidas cotidianas, as relações de poder”, destacou.
“Para lidar com o capitalismo, nós temos que pensar questões raciais e de gênero, por exemplo, mas temos que compreender o motor que está no centro disso”, alertou. Harvey denuncia que muitos estudiosos das ações afirmativas não leem Marx “porque ele não lida com isso”. “Este é o único lugar onde você vai ter isso: o motor como essas coisas funcionam”.
Por isso, alguns temas são muito fortes em Marx e outros não são tão conclusivos. Harvey escreve sua última obra para demonstrar essas forças e essas exclusões n’O Capital, justamente para evitar a crítica burguesa que isola trechos de escritos marxianos para demonstrar que ele estava errado sobre algumas previsões. “É importante reduzir Marx aquilo que ele é”, conclui ele, sobre as restrições que o autor colocou a seu próprio método nesta obra seminal e em outros escritos.
O fim da demanda
O autor britânico resume o primeiro volume dO Capital pela análise de “como os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres”. O volume dois, para ele, mostra que “a classe trabalhadora é reduzida ao empobrecimento, há uma falta de demanda numa classe trabalhadora que fica cada vez mais pobre”.
A partir dessa lógica, ele analise que, depois da segunda Grande Guerra até 1975, de acordo com Harvey, a política pública era orientada para o problema do volume dois: criar uma demanda por meio de gastos sociais, investimentos militares, infraestrutura e moradia.
Nos anos 70, o mundo do capitalismo estava em revolta contra os sindicatos fortes e a baixa demanda. Foi então que decidiram que a demanda efetiva não importava. Desde então, a classe trabalhadora foi demolida como poder político e os lucros se tornaram cada vez mais altos. “E um problema era para onde mandar tanto lucro”. Parte disso, segundo ele, foi resolvido dando cartões de crédito para todo mundo. “A análise marxista de 1860 é muito apropriada para o tipo de sociedade e tipo de mundo que estamos vivendo agora”.
Para compreender o capital é preciso apreender o seu método. É essa a preocupação de Harvey. Ele procura distinguir o método rigoroso de Marx em O Capital e a liberdade de análise que se permitiu em outros escritos mais políticos, como o 18 de Brumário e a guerra civil na França. Enquanto entende-se a análise do capital como determinista, afinal é assim que deve funcionar o capital, “o mundo da particularidade é o mundo da luta de classes, do acidente, das circunstancias fortuitas que tornam as coisas muito estranhas.” “É uma teoria mais aberta às forças sociais”.
Harvey exemplificou como a análise do sistema de crédito em Marx contribui para a compreensão dos equívocos cometidos pelo Banco Central Europeu, “nos metendo na confusão que estamos agora”. Ele comparou a desregulamentação dos bancos a criar adolescentes que falam o tempo todo em independência e autonomia, mas que quando estão encrencados voltam para casa. “O sistema de especulação é todo formado por adolescentes, que voltam ao estado pedindo para pagar as multas e tirá-los da prisão”.
Deslocamento indígena
Harvey ainda fez alguns comentários sobre questões colocadas pela plateia e pelos debatedores. Ele sugeriu, por exemplo, que enquanto o norte desenvolvido não consegue criar demanda efetiva, bombeando liquidez para bancos e a especulação às custas da miséria social, os emergentes vão “no sentido do livro 2”. Ele parece justificar a paralisia de Obama pelo bloqueio republicano, e afirma que não há crise alguma nos negócios privados e em Wall Street, que detém US$ 2 tri no caixa que não são gastos.
Por outro lado, ele diz que a China reagiu a uma quebra inicial de 30 milhões de empregos, em 2008, recuperando 27 milhões em alguns meses, por meio de vasta produção de infraestrutura, com construção de cidades. Ele relata que a China absorveu metade da oferta de aço no mundo e criou uma demanda efetiva para todos os produtores de commodities na América Latina. “Não há dúvida de que essa parte do mundo se engajou no Volume 2 de expandir a demanda efetiva”, diz ele, citando nesse quadro a expansão do mercado interno no Brasil e na Argentina, numa atitude inversa à dos EUA.
“Os europeus estão completamente loucos! Não precisam fazer isso. Uma política equivocada para quem? Para quem essa austeridade? O capitalismo não está bem, mas o capitalistas estão indo muito bem. São os bandidos dessa crise!” denunciou ele, citando o imenso crescimento do número de bilionários da revista Forbes, nos últimos anos. “A oligarquia está indo muito bem com a acumulação e concentração de riquezas”, disse citando a disputa entre os ricos pelo mercado imobiliário de Manhattan (Nova York).
Ele mostrou preocupado com uma suposta bolha de especulação imobiliária na China, assim como com os investimentos imobiliários legitimados pelos jogos olímpicos no Brasil. Em sua opinião, a maioria esmagadora dos países que apostaram nesses eventos esportivos se endividaram brutalmente e não conseguiram distribuir riqueza para sua população a partir deles. Para ele, é bastante óbvio o deslocamento violento de uma comunidade indígena no Rio de Janeiro, por causa de obras da Copa do Mundo. Ele relata as tragédias humanas similares ocorridas com milhões de pessoas em Seul, em Pequim, na África do Sul e em Roma. Em Nova York, essa compreensão pela opinião pública é tão clara, que o prefeito não consegue apoio da população para pleitear jogos naquela cidade, que já sofre com a desestruturação urbana de eventos da ONU, por exemplo. “Precisamos limitar o dano, porque ele é previsível”, sugeriu.
Ele ainda comentou as possibilidades da economia verde e seus mercados de carbono e suas falácias, por meio do que chamou de “lavagem verde”. Ele voltou a citar Engels e o deslocamento burguês dos problemas. “Por que a gente não pega todo o lixo e enterra na África?”, parafraseou ele, a naturalidade com que o pensamento capitalista desloca seus problemas. Ele cita o caso das comunidades indígenas americanas que recebem todo o aterro de lixo das grandes cidades, em troca de dinheiro. Citou também o “parece, mas não é” de propostas como os combustíveis menos poluentes, que acabam aumentando a fabricação e consumo de automóveis.