Chipre ou o pequeno Davi contra o grande Golias
Chipre é uma pequena ilha no Mediterrâneo oriental. Local de civilizações antigas, berço de culturas variadas, da agricultura e da metalurgia na Europa. Colonizada por fenícios, foi ocupada e convertida um progressivo núcleo da cultura grega e da religião ortodoxa. Permaneceu assim até a invasão dos turcos otomanos, que depois de 1570 expulsam os venezianos e dominaram a ilha.
Desta longa história, tumultuada e aguerrida, nasceu um pequeno Estado dividido entre sua herança histórica. Dos cerca de um milhão e meio de cipriotas, 77% são de origem grega (os cipriotas gregos), enquanto 18% são cipriotas turcos. Tal como seus países de origem – Grécia e Turquia – as duas comunidades não vivem harmoniosamente e as diferenças entre as duas religiões – a muçulmana sunita e a ortodoxa cristã grega – geram crises eram frequentes. Hoje, Chipre converteu-se, por uma série de fatores que bem ilustram a incapacidade do modelo de gestão europeu de resolver crises econômicas, no coração da crise do euro e da União Europeia.
Uma história tumultuada
Em 1974 a ditadura dos coronéis gregos imperante em Atenas (1967-1974) tentou um golpe de prestígio – uma espécie de Guerra das Malvinas dos gregos – invadindo e anexando a ilha. Era o chamado “Enosis”. O plano, também este, fracassou… Os turcos reagiram, invadiram o norte da ilha, onde se fixara a minoria cipriota turca e dividiram o país. A ditadura na Grécia pagou o preço da aventura cipriota com sua própria débâcle.
Hoje a ilha mantém-se dividia em duas porções: uma República Turca de Chipre, ao norte, que somente a própria Turquia reconhece e o restante da ilha como uma república multiétnica, embora majoritariamente grega. A ONU reconheceu o governo sediado em Nicósia, dominante grego, e em 2008, no auge do otimismo especulativo mundial – o último ano de crescimento da Europa -, a União Europeia incorporou – com todos os direitos, incluindo a moeda comum, o euro – Chipre.
Os europeus tinham, e continuam tendo, imenso interesse estratégico sobre a ilha. Fora os jazimentos de gás e petróleo [1] – numa Europa faminta por energia e grave crise financeira – a posição de Chipre (onde há uma base militar da Inglaterra, a “British Forces Cyphrus”, com cerca de 3.500 tropas de rápido deslocamento e com capacidade de amplo desdobramento em direção ao Oriente Médio e Golfo Pérsico) é de suma importância para o controle do Oriente Médio. Com o controle de Chipre têm-se condições estratégicas fundamentais para controlar o canal de Suez e o importante trânsito comercial entre áreas riquíssimas da Ásia, África e Europa.
Num esforço de normalização da situação na ilha, a União Europeia decidiu, em 2008 de integrar Chipre, incluindo aí a adoção do euro pelos cipriotas. Tratava-se, na percepção europeia, de uma população pequena, quase que tutelada por três países da OTAN. De um lado gregos e turcos e, por outro, os militares ingleses, numa ilha de lindas praias, excelente comida e um clima permanentemente agradável. Além disso, a economia de Chipre, extremamente pequena, baseada fortemente no turismo, o qual depende dos fluxos e financiamentos da própria Europa, não seria nenhum peso para a União Europeia. Para a inclusão do país foi imposto um amplo e duro programa de austeridade, cortes orçamentários e redução da inflação. Tudo isso foi feito pelos cipriotas, abrindo caminho para a adoção do euro. O turismo floresceu com a ajuda da mesma moeda, hotéis de estilo e gestão europeus, a fluência da língua inglesa. Tudo isso transformou a ilha numa continuidade “mediterrânea”, amena e pacífica para as levas de turistas europeus.
A Crise no Paraíso
Com a crise mundial a partir de 2008 a ilha começou a sentir os efeitos da diminuição dos fluxos de financiamentos da Europa e da diminuição do turismo. Em 2009 a economia da ilha encolheu 1.7%, com a iminente “implosão” dos projetos imobiliários de turismo. Nos anos seguintes a economia continuou encolhendo (menos 2.3% em 2012), dando sinais de forte desemprego e desinvestimentos massivos.
Para complicar a situação financeira da ilha, Chipre aceitou, prazerosamente, sediar grandes bancos (alguns vindos da Grécia) que manipulavam grandes fluxos financeiros. Assim, bancos da vizinha e sempre presente Grécia usavam a ilha como “solo internacional” para operações bancárias proibidas, ou sobretaxadas, no continente. Da mesma forma, a Rússia – muito presente em razão das relações históricas da religião ortodoxa e animosidade comum com a Turquia – permitiu que as novas oligarquias financeiras russas, em especial ligadas à indústria petrolífera, passassem a ter em Chipre um paraíso fiscal.
A crise grega acelerou a crise em Chipre: os gregos tiveram que retirar seus depósitos para fazer face às exigências de liquidez em suas próprias matrizes. Por fim, a economia da ilha ameaça entrar em colapso em 2012. O nível de endividamento é insuportável, com o comprometimento de cerca 7.4% do orçamento do país e o desemprego – numa economia por si só bastante informal – alcança quase 9% da população. As agências de “rating” declaram a dívida do país “lixo”, com mínimas chances de ser paga.
A União Europeia, que sempre pensou Chipre como uma estação de férias, mesmo avisada pelo governo de Nicósia de sua impossibilidade de fazer frente aos imensos déficits acumulados – já em meados de 2012 – não agiu, não fez qualquer movimento para remediar a situação da ilha.
A cegueira europeia
A Europa não agiu em razão de uma série de elementos característicos da situação da ilha. Mas, também não agiu em razão de uma série de elementos que tão bem caracterizam a própria imobilidade da União Europeia em face da crise da Zona do Euro.
A União Europeia, com a Alemanha de Angela Merkel à frente – da coalizão CDU/CSU, da direita conservadora alemã – pensou, desde logo, a ilha como irrelevante, sem quaisquer riscos, em face do papel diminuto da economia cipriota. Caberia somente dizer, no estilo “Diktat”, ao governo de Nicósia o que deveriam fazer, pagar e empenhar para salvar o sistema bancário e evitar – o mantra eterno da União Europeia é “salvar os bancos!” – qualquer risco ao modelo de transferência brutal dos custos das crises dos bancos para as populações. Tratava-se de impor a Chipre a mesma punição imposta a Portugal, Grécia, Irlanda, Espanha… A supressão de direitos trabalhistas, a redução do emprego e do crescimento econômico visando possibilitar os pagamentos devidos pelos Estados das dívidas contraídas com os grandes bancos.
Além de Chipre ser um pequenino país, que com certeza não poderia reagir, havia ainda outros elementos que levaram a União Europeia a tratar o antigo balneário como filho rejeitado. Tratava-se, em primeiro lugar, de demonstrar que o receituário de “austeridade” – leia-se, transferir o ônus do sistema bancário para a população – deve ser mantido e que resultaria na resolução da crise, mesmo depois de três anos de “austeridade” sem quaisquer resultados – além, é claro, do aprofundamento do desemprego.
Devemos ter em mente que a crise de Chipre eclode em 2013 num momento em que as eleições na Itália mostram a total rejeição ao governo “técnico” de Mario Monti, ao lado do amplo “cansaço” das populações de Portugal e Espanha com a política regressiva da “Troika”. Assim, Chipre deveria reafirmar a correção do rumo da União Europeia, do Banco Central Europeu e do FMI (a chamada “Troika”). Por outro lado, a presença de grandes capitais russos, a presença de grandes milionários das máfias russas (que sucedem os europeus em suas “vilas”) dá a União Europeia a brilhante (e demencial) ideia de que um confisco bancário – que se aplicaria sobre os depósitos destes novos ricos –seria bastante oportuno.
O resgate de Chipre, de cerca de 10 bilhões de euros, só seria acordado se o governo de Nicósia conseguisse arrecadar outros sete bilhões em recursos próprios (isso em face de um PIB estimado, em 2012, em 27 bilhões de dólares). Para isso, além da receita de três anos atrás já aplicada contra Lisboa, Madrid e Roma – a regressão social e a recuperação dos bancos – cabia ainda um confisco de depostos sobre todas as contas existentes nos bancos cipriotas, cortes de direitos sociais e fim de programas sociais. Aí entra a última peça do “puzzle” cipriota: os grandes bancos da ilha, incluindo aqueles que manipulam as fortunas de russos e do Golfo Pérsico – são bancos autônomos, sem direta vinculação com os bancos alemães, britânicos e franceses. Na verdade, eram mesmo concorrentes.
É neste contexto que a “Troika” entende que o esbulho das contas bancárias não teria qualquer reação contrária e não conseguiria atravessar as águas do Mediterrâneo até chegar aos centros financeiros da Europa.
Assim, a União Europeia, em 2013, repetiu o mecanismo “malandro” de Zélia Cardoso de Mello, no Governo Collor, em 1990, repetido, como desastre, por Domingos Cavallo na Argentina, em 2001 (Governo de Fernando de La Rua) impondo um “corralito” contra as contas bancárias no país. O FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia agiram de forma primária – mesmo para seus objetivos regressistas e espoliadores – repetindo práticas de total esbulho, falidas desde uma década na América Latina.
Aí, então, começam as diferenças e as reações inesperadas. A população cipriota se revolta – mesmo ante uma ameaça inopinada de Angela Merkel, dirigindo-se ao governo de Chipre como se fosse um colegial pego em falta! O Parlamento cipriota, ao contrário do português e do espanhol, recusa o plano de regressão social e de confisco. Um “tsunami” avança sobre a Europa, com um crescente medo que o “corralito” espalhe-se para Portugal, Espanha e Itália. As insinuações e tratativas para a Rússia – com imensas reservas monetárias – viesse “salvar” Chipre (e com isso salvar a União Europeia da maior trapalhada financeira da história recente da Europa) recebeu um sonoro “nyet” russo. Além disso, Moscou adverte a União Europeia que poderá rever sua política de manter o euro como parte das reservas russas, atingindo a credibilidade da moeda comum.
Em suma, a demência econômica dos economistas europeus chegou ao seu ápice.
Neste fim de semana (23/03/2013) a Europa ainda não possui uma resposta para Chipre. O país está paralisado, num longo feriado bancário, e prepara um plano alternativo. Pela primeira vez desde o início da crise econômica um país recusou a “sabedoria” da “Troika”.
NOTA
[1] Os jazimentos de gás, em especial o “Campo Afrodite”, fica na região do “off-shore” cipriota, na Zona Econômica Exclusiva e os primeiros blocos foram concedidos à empresa de petróleo americana “Noble Energy”. As reservas são avaliadas em 3.7 bilhões de barris de petróleo e cerca de 5-8 bilhões de pés-cúbicos de gás.
(*) Francisco Carlos Teixeira é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Publicado na Agência Carta Maior