“Dama de Ferro” ou parceira do establishment britânico?
A que se deve a atual promoção de Margaret Thatcher? Existe uma percepção bastante generalizada em círculos conservadores de que, nestes momentos difíceis de crise, o que se necessita é de um líder de governo que se atreva a fazer as mudanças necessárias, enfrentando os grupos poderosos responsáveis pela crise. Entre estes, considera-se os sindicatos como um dos maiores culpados pelo elevado desemprego. Na sua pretensa “defesa egoísta” dos seus próprios interesses (atribuindo-lhes estreiteza de vistas por se preocuparem exclusivamente com os trabalhadores que já têm trabalho – os famosos “insiders”), os sindicatos estão dificultando a integração no mercado de trabalho dos jovens, das mulheres e de outros coletivos – conhecidos como “outsiders”-. O que se precisa – dizem-nos – é enfraquecer os sindicatos e implementar, entre outras medidas, a facilidade de demitir os trabalhadores com contratos fixos, fazendo com que seja mais fácil os “insiders transformarem-se em “outsiders”, o que, paradoxalmente, facilitará – de acordo com eles – a queda do desemprego.
Nesta interpretação dos fatos, o elevado desemprego atribui-se ao poder excessivo dos sindicatos com os quais ninguém se atreve a se meter. O que faz falta é alguém com tomates que os meta nos eixos e, de caminho, reduza os direitos sociais e trabalhistas adquiridos, arrasando o Estado-Providência, porque este consome recursos que o país não tem, além de a disponibilidade de tantos benefícios sociais amolecer os cidadãos e dar-lhes segurança excessiva, fazendo-os perder a sua criatividade e atitude empreendedora. Tem de reduzir-se a pretensamente excessiva proteção social para fortalecer o espírito empreendedor da população. Competitividade e dinamismo têm de substituir a colaboração, a solidariedade e a segurança.
Durante estes anos de crise assistimos ao domínio deste pensamento em centros financeiros, empresariais, mediáticos e políticos de países dos dois lados do Atlântico Norte. A deterioração da situação econômica que a aplicação das políticas derivadas deste pensamento conservador e neoliberal estão criando, gerou o apelo, por parte destes centros, a uma figura política (que costumava chamar-se ‘caudilho’ e que agora se define como “personalidade a quem não tremem as mãos”) para enfrentar os “poderosos”, como os sindicatos, os funcionários públicos, as classes populares e uma longa lista de setores da população que não se caracterizam precisamente pelo seu grande poder econômico, financeiro, mediático ou político. Na realidade, “valentia ou machismo político” é atrever-se a enfrentar os fracos, em representação dos poderosos.
O que o filme não diz
Um exemplo desta pretensa coragem política é a chamada “Dama de Ferro”, Margaret Thatcher, a figura política da Grã-Bretanha que foi mais dócil e servil para com os grupos mais poderosos daquele país (desde a City, o centro financeiro, ao grande mundo empresarial). Um “líder” destes era um mero instrumento destes poderes, realidade ocultada no filme “A Dama de Ferro” (que idealiza esta figura a níveis hiperbólicos).
Longe de ser a figura anti-establishment britânica que o filme apresenta, Margaret Thatcher foi um produto desse establishment, promovida por ele próprio. A Grã-Bretanha (país onde vivi durante vários anos) é um país onde a classe social adquire uma dimensão muito marcante na vida cotidiana da população. Este establishment britânico sempre se preocupou com a imagem que o seu instrumento político (o Partido Conservador) apresenta à população. A origem social dos seus dirigentes dá uma imagem que preocupa o establishment. Daí que, num momento de grande agitação social, esse establishment tenha querido dirigentes que não procedessem das classes dominantes, que quebrassem essa imagem. Thatcher, filha de merceeiros, e Major, filho de um desempregado, foram figuras escolhidas para quebrar aquela imagem que, apesar destas mudanças, o Partido Conservador continua a ter (David Cameron é filho de uma família de grande fortuna).
Thatcher foi uma figura promovida pelo establishment com o objetivo de destruir os sindicatos, cujo grupo central e mais radical foi o sindicato dos mineiros. Reduziu também a proteção social a tal ponto, que a mortalidade na maior parte dos setores populares (como largamente documentou Richard G. Wilkinson no seu livro Unhealthy Societies) aumentou durante o seu mandato, incluindo as taxas de suicídio, homicídio e alcoolismo, fazendo aparecer de novo um problema já extinto: a fome, em especial entre as crianças, e muito particularmente nas regiões mais pobres, como Yorkshire, Escócia e País de Gales (ver The Iron Lady: the Margaret Thatcher Movie we don’t need, de Laura Flanders, The Nation, 04.01.12).
O filme mostra os sindicalistas como sendo violentos, vociferadores e irracionais mas nunca explica por que razão as classes populares e os sindicatos se revoltaram contra as condições miseráveis que as políticas thatcherianas estavam a impor à classe trabalhadora da Grã-Bretanha. Foi ela quem tornou famosa a expressão “acreditamos na luta de classes e venceremos”. Thatcher, tal como Reagan nos Estados Unidos, tentou criar uma cultura na qual todas as vítimas do sistema darwiniano que ela desejava estabelecer se sentissem responsáveis pela sua própria situação.
Thatcher feminista?
Mas o que atinge níveis absurdos no filme é apresentar Margaret Thatcher como feminista, o que deu origem a protestos generalizados dos círculos feministas nos dois lados do Atlântico Norte. Como referiu a NOW (a maior associação feminista dos Estados Unidos), Thatcher foi a dirigente britânica que recortou mais drasticamente os direitos das mulheres na Grã-Bretanha. O seu desprezo pelas feministas e os cortes de direitos trabalhistas e sociais que efetuou atingiram duramente as mulheres britânicas. O seu profundo reacionarismo levou-a também a apoiar as ditaduras mais reacionárias existentes no mundo, incluindo a do general Pinochet, transformando-a numa das suas maiores defensoras. E as suas políticas neoliberais foram a causa da crise que vemos agora na Europa.
Mas o seu cinismo chegou ao extremo de criar uma guerra (a guerra das Malvinas) para tentar recuperar a sua popularidade, coisa que se reconhece no filme e que os seus promotores apresentam como exemplo de equilíbrio na análise a esta figura. Mas esta apresentação crítica (excecional no filme) de Margaret Thatcher foi muito pouco explorada, porque não revela suficientemente o equacionamento oportunista na programação da guerra que Thatcher efetuou e que foi claramente documentada nos meios de comunicação. Hoje, os establishmentsconservadores e neoliberais britânicos, americanos ou espanhóis, entre outros, sentem a falta da Sra. Thatcher, uma das figuras – a par de Ronald Reagan – mais negativas e destrutivas do século XX.
Vicenç Navarro é catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA), onde exerceu docência durante 35 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e pela Universidade Johns Hopkins. Dirige também o Observatório Social de Espanha.
http://www.vnavarro.org/index.php?p=6841&lang=es
Tradução de Helena Pitta para o Esquerda.net