Na eleição municipal do ano passado, em Salvador, o Partido Social Cristão (PSC) teve entre suas esperanças de puxador de voto o árbitro de futebol amador, compositor e ativista da causa gay Fábio Santana dos Santos. Mais conhecido como Fabety Boca de Motor – alegadamente pelo gosto de deitar falação -, o candidato concorreu com o número 20024. Fabety amealhou apenas 1.473 votos, mas contribuiu para que o PSC atingisse o quociente partidário e elegesse dois vereadores na capital baiana. Envolvido em trabalhos sociais e artísticos, como a participação no grupo de axé Raghatoni, Fabety é um exemplo do pragmatismo eleitoral do partido cuja “boca de motor” mais famosa é a do deputado federal paulista Marco Feliciano.
Fabety é o antípoda de Feliciano. O pastor, como se sabe, tornou-se a face mais visível de uma sigla até agora quase desconhecida pela maioria da população, depois de ser eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e vir à tona declarações homofóbicas e racistas. Seu companheiro de partido baiano é negro, fundou uma associação LGBT e costuma fazer arrecadação de alimentos para dar aos pobres. Feliciano, por sua vez, afirma que os africanos são amaldiçoados e sua especialidade é subtrair de fiéis – a maioria de baixa renda – somas de dinheiro que vão além da oferta prevista na Bíblia, o dízimo, seja em cheque predatado, cartão de crédito ou mesmo nos próprios bens (computador, automóvel) – o que lhes dá aperto no coração. Mas os crédulos atendem em nome da fé e sob a pressão do líder religioso.
“Nós temos meta, gente. A oferta você dá de bom grado, em gratidão e emocionado. Agora, é sacrifício. Sacrifício você dá tremendo. É aquela oferta que dá desarranjo e você fala “ai, meu Deus”. É essa que Jesus ama”, argumenta o pastor em culto cuja gravação chegou à internet. No vídeo, Feliciano reclama que ninguém havia ainda oferecido algo semelhante a uma picape Blazer de R$ 35 mil, supostamente doada à igreja naquela semana.
Do mesmo modo que o seu deputado mais ilustre, o PSC também tem metas. Fundada em 1985 e com registro definitivo desde 1990, a sigla vem batendo seus objetivos e trabalha para sair da condição de “nanica” para o status de um partido pequeno para médio. A aceitação de candidatos como Fabety Boca de Motor faz parte de uma estratégia que põe o PSC como a legenda que mais cresce no país. Em apenas três eleições, aumentou o número de deputados federais de um, em 2002, para nove, em 2006, e emplacou uma bancada de 17 parlamentares em 2010. É maior que a do PCdoB, que ocupa o Ministério do Esporte.
Na Bahia, conta o presidente estadual Eliel Santana, o partido não faz discriminação. Voto, assim como Deus, é poder. Na última disputa municipal, havia na lista partidária desde evangélicos, católicos, espíritas até três candidatos a vereador que pertenciam a religiões afro.
O deputado federal e ex-jogador de futebol Deley (RJ) é espírita. O ex-deputado estadual e ex-presidente da seção paulista, Said Mourad, é muçulmano.
O perfil do PSC, no entanto, é predominantemente cristão. Alguns dos principais nomes são católicos, como o deputado licenciado e secretário estadual de Desenvolvimento Urbano do Paraná, Ratinho Júnior. (PR); o ex-líder da bancada Hugo Leal (RJ); o atual, André Moura, e seu conterrâneo, o senador Eduardo Amorim, da seção eleitoralmente mais forte do partido, a de Sergipe.
A maioria da bancada, porém, 11 entre 16 deputados, é de evangélicos, bem como a direção nacional do PSC, cujo centro de gravidade está no Rio de Janeiro. Oficialmente, o presidente da legenda é o fundador e católico Vítor Nósseis, que mora em Belo Horizonte. Mas desde julho de 2003 o comando de fato foi transferido com a entrada no partido do pastor Everaldo Dias Pereira, o primeiro vice-presidente, que pertence à Assembleia de Deus, maior igreja evangélica do país.
A chegada de Pereira no PSC fez parte de um duplo processo. Por um lado, representava uma mexida no partido para superar a cláusula de desempenho, de 5% dos votos nacionais à Câmara, obrigatoriedade que acabou sendo derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2006. Por outro lado, significou a colonização da sigla pelo ex-governador do Rio e hoje deputado federal Anthony Garotinho (PR), que lançou mão de uma estratégia para acomodar melhor seu grupo político, então no PMDB, especialmente os evangélicos.
O pastor, no entanto, tomou o controle da sigla, levando ao rompimento com o ex-aliado, de quem havia sido homem de confiança. Everaldo Pereira foi subsecretário estadual de Gabinete Civil por quase três anos e meio e coordenou o principal e polêmico programa social de Garotinho, o Cheque Cidadão, alvo de denúncias de irregularidades e de privilegiar clientelas evangélicas.
No PSC, o pastor se revelou um articulador político hábil e promoveu o crescimento vertiginoso do partido. “Sou atuário de formação. Sempre trabalho com metas”, diz Everaldo Pereira, ao mesmo estilo dos cultos de Feliciano no ministério Assembleia de Deus Catedral do Avivamento.
De origem brizolista, Pereira nega que o partido seja de direita, como chegou a afirmar o deputado da Comissão de Direitos Humanos (CDH). “Mesmo meu partido sendo conservador e de direita, ninguém será tolhido na comissão”, disse Feliciano, no início de março, quando foi indicado pelo PSC para presidir a CDH.
“É um partido de centro. Não somos de direita, nem de esquerda. Jesus, até na hora de morrer, morreu no centro [entre outros dois crucificados]”, argumenta o dirigente.
No início dos anos 80, Pereira era um entusiasta do ex-governador do Rio Leonel Brizola e se aproximou dos petistas com a ida de Lula ao segundo turno da eleição presidencial de 1989. “Apoiamos o “sapo barbudo”, como o Brizola o chamava. Viajei o país para ajudar”, conta o pastor, que tem divulgado em seu blog fotos de participação em campanhas da época para mostrar sua relação histórica com o campo da esquerda. Pereira apoiou outros candidatos do PT, especialmente a ex-senadora e hoje deputada federal Benedita da Silva, também evangélica, que lhe pediu colaboração na disputa à Prefeitura do Rio em 1992. Em 1999 filiou-se ao PT, onde pertenceu ao Núcleo Cristão, e ficou até 2001, quando o partido rompeu com Garotinho e Pereira preferiu seguir o governador. Depois de sofrer um acidente de carro, Anthony Garotinho batizou-se na Igreja Presbiteriana, em 1995, mas só depois de eleito, em 1998, passou a ativar o segmento religioso com objetivos políticos.
Everaldo Pereira diz que o PSC não se confunde com igreja, “não segrega, não exclui” e é ele mesmo que aponta a candidatura do homossexual Fabety Boca de Motor como exemplo da diversidade no partido. No entanto, há quem observe uma recente ênfase no “fundamentalismo” religioso, que seria capitaneado pelo pastor e seus auxiliares mais próximos da Executiva Nacional, a maioria oriunda do governo Garotinho. É o núcleo duro, formado pelo secretário-geral Antônio Oliboni, ex-secretário estadual de Justiça; o tesoureiro geral Rogério Vargas, que foi secretário de Administração e sucedeu Waldomiro Diniz (flagrado numa negociata com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, em 2004) na presidência da Loterj; e os presidentes do partido em São Paulo, o ex-deputado federal Gilberto Nascimento; e no Rio, o atual secretário estadual de Turismo Ronald Ázaro, um dos poucos remanescentes entre os fundadores do partido.
Depois de um período de ecletismo, a ênfase no conteúdo religioso teria sido percebida como melhor estratégia eleitoral e estaria representando uma inflexão na trajetória do partido. A mudança foi reforçada pelo estouro do caso Marco Feliciano, mas já vinha sendo desenhada desde o fim da última eleição presidencial.
Com o desempenho surpreendente da ex-ministra e evangélica Marina Silva, que alcançou quase 20% dos votos pelo PV, em 2010, o PSC detectou já em janeiro de 2011 a oportunidade de mobilizar este eleitorado religioso num projeto mais ambicioso em 2014.
“O partido terá candidatura própria à Presidência”, afirma Everaldo Pereira, que seria o provável candidato.
O assunto, no entanto, é controverso. No encontro nacional realizado em novembro, em Salvador, o PSC se dividiu. Alguns deputados da bancada federal, o grupo de Sergipe e o deputado Marco Feliciano questionavam os benefícios da candidatura, que, em sua visão, poderia atrapalhar o crescimento do partido. Caso a proposta fosse adiante, porém, Feliciano se apresentou como um nome para a disputa, rivalizando com Pereira.
A notoriedade repentina e nacional do deputado, por outro lado, é vista como um fator que aproximou mais do que afastou os dois. A bandeira conservadora erguida por Feliciano – e que teve respaldo da direção do PSC – estaria servindo como um instrumento importante para o projeto de Pereira de se lançar à Presidência, já que o partido hoje é muito mais conhecido do que antes do imbróglio na Comissão de Direitos Humanos. Quanto a Feliciano, o cálculo é de que sua votação, que foi de 211 mil em 2010, possa mais que triplicar no ano que vem, alcançando entre 500 mil e 600 mil votos. Com isso, ele poderia concorrer à reeleição, e eleger outros deputados em sua esteira, ou mesmo se lançar ao Senado. Seu plano de carreira estaria suficientemente garantido. E a exploração da clivagem religiosa na eleição presidencial poderia ser feita por um nome menos desgastado e “novo”.
Foi essa aliás uma das primeiras sugestões surgidas no PSC, que vinha cogitando o lançamento à Presidência do pastor midiático Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo – num movimento que preocupa setores do partido.
“Abomino qualquer tipo de discriminação. Cristo nos ensinou a pregar a não discriminação. Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra. Somos iguais perante as leis. O partido sabe que sou desta opinião, mas foi decisão da Câmara e não do Senado”, afirma o senador Eduardo Amorim, sobre a decisão do PSC de não retirar Feliciano da CDH, apesar da pressão da opinião pública.
Publicado no Valor Econômico – 09/04/2013