Raia o sul!
Não seria delírio imaginar que o Anjo da História de Walter Benjamin rende-se e sucumbe à tentação de declarar que raiou afinal o dia do Sul Global.
Ah, sim, sim. Será estrada longa e sinuosa.[1] Mas se a geração Google/Facebook precisar só de um manual que explique a coisa dos sonhos, tentativas, atribulações do mundo em desenvolvimento no início do século 21, o manual será o recém-publicado The Poorer Nations [As nações mais pobres],[2] de Vijay Prashad. Podem considerá-lo sequência digital, pós-moderna, do clássico Os Condenados da Terra,[3] de Frantz Fanon.
É livro absolutamente essencial, a ser lido simultaneamente, com outra maravilha escrita por um asiático global, Pankaj Mishra, From the Ruins of Empire: The Revolt Against the West and the Remaking of Asia [Das ruínas do Império: A revolta contra o Ocidente e a reconstrução da Ásia],[4] que se serve de figuras chaves, como Jamal al-Din al-Afghani, Liang Qichao e Rabindranath Tagore para contar uma história extraordinária.
Prashad, diretor de estudos internacionais do Trinity College, Connecticut, e autor do esplêndido The Darker Nations [As nações mais escuras],[5] que deve ser lido como preâmbulo ao novo livro que acaba de lançar, demarca a cena já logo na abertura do livro, com a indispensável citação de Fanon: à altura de 1961, o que se configurou foi uma luta entre o Projeto do Terceiro Mundo (“por paz, por pão e por justiça”) e o Projeto Atlântico. Principais atores: o Movimento dos Não Alinhados (MNA) [orig. Non-Aligned Movement (NAM)], o secretariado de fato do Projeto do Terceiro Mundo e o Grupo das 77 nações em desenvolvimento criado em 1964 para agir em nome e na defesa do MNA na ONU.
Os fundadores do MNA converteram-se em ícones do mundo pós-colonial: Jawaharlal Nehru na Índia; Gamal Abdel Nasser no Egito; Sukarno na Indonésia; Josip Broz Tito na Iugoslávia. Mas todos sabiam que seria combate morro acima. Como Prashad observa,
“a ONU fora sequestrada pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial haviam sido capturados pelas potências atlânticas; e o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade [Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio]), precursor da Organização Mundial do Comércio (OMC), foi constituído para minar qualquer esforço que as novas nações tentassem na direção de revisar a ordem econômica internacional.”
Quanto ao Projeto Atlântico, basta citar uma frase de Henry Kissinger, de 1969. Kissinger – codestruidor do Cambodia; agente que capacitou o líder chileno Augusto Pinochet; aliado, embora contra-vontade, dos sauditas (“os mais incompetentes, preguiçosos e covardes dos árabes”) e elogiador-em-chefe do Xá iraniano (“sujeito durão, que sabe o que quer”):
“Nada de importante pode vir do sul. O eixo da história começa em Moscou, vai a Bonn, salta por cima de Washington e vai a Tóquio. O que acontece no sul não tem importância.”
Os atlanticistas empenharam-se ferozmente contra o (“sem importância”) Projeto Terceiro Mundo, mas também contra a democracia social e o comunismo. O Santo Graal deles era mergulhar fundo em quaisquer lucros de brotassem de uma nova geografia de produção, “mudanças tecnológicas que capacitaram as empresas a extrair vantagem máxima de diferentes padrões salariais” – sobretudo dos salários muito baixos pagos em todo o leste da Ásia.
Estava pronto, pois, o cenário para a emergência do neoliberalismo. Aqui, Prashad acompanha o indispensável David Harvey, detalhando o modo como o Sul Global chegou ao ponto de ser plenamente (re)explorado: bye bye libertação nacional e ideias de bem coletivo.
Manter os bárbaros à distância
Com o FMI sendo parte, hoje, da troika que dita austeridade à maior parte da Europa Ocidental (junto com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu), é fácil esquecer que, em 1944, as coisas já estavam bem amarradas. O mundo em desenvolvimento não falou em Bretton Woods, muito menos deu palpite nos vários tipos de controle impostos ao Conselho de Segurança. Foi o silêncio dos cordeiros. Os lobos disseram o que quiseram, e a desigualdade virou cláusula pétrea.
Prashad oferece os detalhes indispensáveis de como o dólar norte-americano tornou-se moeda mundial efetiva, com os EUA fazendo dançar o preço do dólar, por todo o planeta, sem medir consequências: formou-se o Grupo dos Sete, como mecanismo mundial essencialmente antidesenvolvimentista (e não anti-Soviético); e, claro a muito temida Comissão Trilateral, criada por David Rockfeller do Chase Manhattan para impor a vontade do norte, contra o sul.
E adivinhem quem foi o arquiteto intelectual da Comissão Trilateral? O inefável Zbigniew Brzezinski, adiante consigliere do presidente Jimmy Carter. O Dr. Zbig queria “conter” a “ameaça contagiosa da anarquia global”. Dividir para governar, mais uma vez. A periferia tinha de ser posta no seu lugar.
Deve-se lembrar, quanto a isso, que em seu épico de 1997, The Grand Chessboard [O Grande Tabuleiro de Xadrez], o Dr. Zbig, que seria feito conselheiro para política externa de Barack Obama em 2008, escreveu:
“Os três grandes imperativos da geoestratégia imperial são impedir a colusão e manter a dependência em segurança entre os vassalos; manter os tributários dóceis e protegidos; e impedir que os bárbaros se unam.”
Por muito tempo os “vassalos” foram facilmente contidos; mas o Dr. Zbig, um passo à frente de Kissinger, já planejava um modo para conter os dois “bárbaros” chaves, as duas potências euroasiáticas ascendentes: Rússia e China.
O Grupo dos Sete, seja como for, foi estrondoso sucesso, levando sua “teoria da governança” para todo canto, implementada pela máfia de Bretton Woods – e quem mais seria? Prashad define claramente:
“O que recebeu o nome de “neoliberalismo” foi menos uma doutrina econômica coerente, que uma campanha muito direta, posta em andamento pelas classes proprietárias, para manter ou restaurar sua posição de dominação” – mediante a “acumulação por despossessão” (termo cunhado por David Harvey), também bem conhecida de milhões de europeus sob o codinome de “austeridade”.
Os números contam a história. Em 1981, o fluxo líquido de capitais para o Terceiro Mundo foi de $35,2 bilhões. Em 1987, $30,7 bilhões deixaram o Terceiro Mundo, para bancos ocidentais. Por graça de Deus e sua lei escrita em pedra, também chamada “Ajuste Estrutural”, baseada em “condicionalidades” (privatização selvagem, desregulação, destruição dos serviços sociais, “liberalização” das finanças).
Parafraseando (Bob) Dylan, quando você tem nada, você ainda tem esse nada, a perder. Jamais houve qualquer estratégia política, do norte, para negociar a crise da dívida dos anos 1980s. Os cordeiros do Sul Global só foram autorizados a desfilar, em triste procissão, para receber o ajuste estrutural consagrado, um a um.
Mas nem tudo isso bastaria. Com o fim da URSS, Washington ficou livre para desenvolver a Dominação de Pleno Espectro. Os que não se submeteram completamente foram rotulados “estados delinquentes” – como Cuba, Irã, Iraque, Líbia, República Popular Democrática da Coreia e até, por certo tempo, a Malásia (porque resistia ao FMI).
Mas então, lenta mas firmemente, o Sul Global começou a erguer-se. Prashad detalha as razões – o boom de commodities puxado pela China; lucros advindos da venda de commodities que fizeram renascer as finanças latino-americanas; mais investimentos estrangeiros diretos correndo mundo. O Sul Global começou a negociar mais dentro do próprio Sul Global.
Então, em junho de 2003, à margem da reunião do Grupo dos Oito em Evian, França, emergiu algo chamado IBSA (“Diálogo Índia-Brasil-África do Sul). O IBSA estava apto a “maximizar os benefícios da globalização” e a promover crescimento econômico sustentado. O ministro de Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, definiu-o naquele momento como “uma ideologia no melhor sentido da palavra: ideologia de democracia, diversidade, tolerância e busca de cooperação”.
Paralelamente, a China estava – como teria de estar – crescendo. É essencial lembrar aqui, a viagem, crucialmente decisiva, que Deng Xiaoping fez a Cingapura, em novembro de 1978, quando foi recebido por Lee Kuan Yew. Sobre essa visita, Prashad poderia ter escrito um capítulo inteiro. Foi o ‘gancho’ de suspense, para o capítulo seguinte. Deng entendeu que podia mobilizar as guanxi (“conexões”) da diáspora chinesa, com todo o seu potencial. Nunca esquecerei minha primeiríssima viagem a Shenzhen, apenas um mês depois do famosíssimo tour de Deng pelo sul, em janeiro de 1992. Foi quando o boom realmente começou. Naquele momento, senti que estava mergulhado, até o pescoço, na China maoísta.
Façam avançar a fita até hoje, com a China ajudando a desenvolver a África. Vastas porções do mundo em desenvolvimento jamais sequer considerariam a possibilidade de abraçar cegamente o azhongguo moshi – o Modelo Chinês. A coisa se passa mais como Prashad faz, começando com essa maravilhosamente clara frase de Donald Kaberuka, um ex-ministro das finanças de Rwanda e atual presidente do Banco Africano de Desenvolvimento:
“Podemos aprender [dos chineses] como organizar nossa política comercial, como sair do status de baixa renda, para um status de renda média, como educar nossas crianças em setores e habilidades que, em poucos anos, pagarão o próprio custo.”
BRIC a BRIC*
O que nos traz aos BRICS, criados como grupo em 2009, da união BRIC-IBSA e que são hoje a principal locomotiva do Sul Global.
Àquela altura, “Culpem a China” já se tornara uma das Belas Artes, em Washington; era absolutamente imperativo que todos os chineses se convertessem em consumidores. Eles são e serão – mas ao ritmo deles e seguindo o seu próprio modelo político.[6]
Até o FMI já admite que, por volta de 2016, os EUA já terão deixado de ser a maior economia do mundo. Tinha razão portanto o grande Fernand Braudel, quando escreveu Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII[7] (Le temps du monde [1979, 3 volumes]); (ing.) The Perspective of the World: Civilization and Capitalism, Fifteenth- Eighteenth Century, em que diz que esse seria o “sinal do outono” para a hegemonia atlântica.
Claro que os BRICS enfrentam problemas imensos, como Prashad detalha. As respectivas políticas domésticas podem, sim, ser interpretadas como uma espécie de “neoliberalismo com características do Sul Global”. Estão ainda longe de ter construído ou de ser alternativa ideológica para o neoliberalismo. Não têm nem qualquer mínima condição de defesa contra a arrasadora hegemonia militar dos EUA e da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN (basta ver o fiasco na Líbia). E não são o embrião de mudança revolucionária na ordem mundial.
Mas, pelo menos, trazem “uma lufada de ar fresco para oxigenar o mundo estagnado do imperialismo neoliberal”.
O ar fresco circulará sob a forma de um novo banco de desenvolvimento, um Banco BRICS do Sul, versão do Banco del Sur sulamericano fundado em 2009 (para conhecer a leitura de Prashad, veja ““Os grandes BRICS: a China afinal encontra seu nicho”.[8] China e Brasil já definiram uma conta de $30 bilhões em moeda própria para pagar contas comerciais, deixando de lado o dólar norte-americano. Pequim e Moscou aprofundam a parceria estratégica (ver “BRICS conseguem furar o cerco”[9]).
Os BRICS como são hoje – três grandes produtores de commodities e dois grandes consumidores de commodities tentando abrir uma picada que os salve do desastre para o qual o ocidente dirige o mundo – são só um começo. Já começam a movimentar-se como poderoso ator geopolítico, o que destaca a multipolaridade. Logo haverá novos BRICS – os países MIST (México, Indonésia, [South] Coreia (do Sul) e Turquia). E não esqueçam o Irã. Será hora, já, para os BRICS MIIST?
O que se vê, como que desenhadamente claro, é que o Sul Global já sofreu demais –dos saques que sofre do turbo-capitalismo de cassino, à OTAN fazendo-se de Robocop, do norte da África ao sudeste da Ásia, para nem falar da Eurásia, que vai sendo cercada por aquela quimera de Dr. Fantástico – um escudo de mísseis.
O Sul Global ainda padece sob muitos absurdos. Basta pensar nas petro-gás-monarquias do Conselho de Cooperação do Golfo – aqueles exemplares de ‘democracia’ – já configurados como anexo da OTAN. Poucos eventos recentes foram tão espantosamente assustadores, quanto a Liga Árabe, a lamber as botas de seus senhores na OTAN e desrespeitando todas as leis internacionais, para pôr os tresloucados ‘rebeldes’ sírios na cadeira que, por direito, cabe à Síria, estado soberano e membro fundador da própria Liga.
Cenas estranhas na mina de ouro[10]
A queda do neoliberalismo será sangrenta – e demorada. Prashad tenta uma análise objetiva da unidade do Sul Global, seguindo a trilha do pensamento de um marxista indiano, Prabhat Patnaik.
Patnaik é pensador consistente. Ele sabe que “não se vê no horizonte qualquer resistência coordenada global”. Mas considera “a centralidade de construir a resistência dentro do estado-nação, e sua análise pode ser facilmente estendida a regiões (escreve prioritariamente sobre a Índia, mas produz análise aplicável aos experimentos bolivarianos na América Latina)”.
Assim sendo, o mapa do caminho sugere que se enfrente a “questão camponesa” – que envolve, essencialmente, terra e direitos; e que nos concentremos em lutas imediatas para melhorar as condições de vida e de trabalho das pessoas. Inevitavelmente, Prashad teria de fazer, e faz, referência ao vice-presidente da Bolívia, Alvaro Garcia Linera, um dos mais importantes intelectuais latino-americanos contemporâneos.
Sob vários aspectos, é em partes da América Latina que o processo de emancipação está mais avançado. Fiquei imensamente impressionado quando visitei a Bolívia, no início de 2008. Prashad praticamente resume as análises de Linera, de como se desenvolve o processo.
Tudo começa com uma crise do estado, que permite que “um bloco social dissidente” mobilize o povo para um projeto político. Desenvolve-se um “embate catastrófico” entre o bloco do poder e o bloco do povo, o qual, no caso da América Latina, pôde resolver-se, pelo menos por hora, a favor do povo. O novo governo tem, então, de “converter o que foram demandas da oposição, em atos de Estado” e construir hegemonia mais profunda e mais ampla, “combinando as ideias da sociedade mobilizada e recursos materiais oferecidos ou pelo Estado, ou através do Estado.” O ponto de virada (“ponto de bifurcação”), para Garcia Linera, vem mediante “séries de confrontações” entre os blocos, que se resolvem de modos inesperados, ou com a consolidação da nova situação, ou com a reconstituição da situação velha. Estamos no ponto de bifurcação, ou bem próximos. O que virá não é previsível.
O que as melhores cabeças na Ásia, África e América Latina já sabem, até agora, é que nunca houve qualquer fim da história, como papagueavam patéticos órfãos de Hegel; e tampouco houve algum fim da geografia, como papagueavam os panacas dançantes da globalização, para os quais “a Terra é plana”. Está finalmente em curso a libertação do pensamento do Sul Global, que se vai livrando do pensamento do Norte. Esse é processo sem volta, irreversível. Não há retorno possível à velha ordem. Se fosse um filme, seria 1968, repetido sempre, sempre, sempre, em tempo integral, sem parar. Sejamos realistas: exijamos e implementemos o impossível.
——————————————————————————–
[1] Orig. a long, arduous and winding road. De verso dos Beatles. Ouve-se em http://letras.mus.br/the-beatles/190/traducao.html [NTs]
[2] PRASHAD, Vijay. The Poorer Nations: A Possible History of the Global South, 2013, New York: Verso, 300 p. http://www.amazon.com/The-Poorer-Nations-Possible-ebook/dp/B007NQVV1G
[3] FANON, Franz. Os Condenados da Terra [1961, pref. Jean-Paul Sartre], Juiz de Fora: Ed. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006 (http://www.livrariacultura.com.br/Produto/LIVRO/CONDENADOS-DA-TERRA-OS/5060504
[4] http://www.amazon.com/From-Ruins-Empire-Against-Remaking/dp/1250037719
[5] http://books.google.com.br/books/about/The_Darker_Nations.html?id=iPxsQGDri8MC&redir_esc=y
* Há aqui um trocadilho intraduzível. A palavra brick (ing.) significa “tijolo”. Com mínima diferença de grafia e nenhuma de pronúncia, quem diga “BRIC by BRIC” (ing.) diz também “brick by brick” (ing.), “tijolo a tijolo”. Tentamos “BRIC a BRIC”, como tradução possível, para salvar pelo menos uma parte da metáfora. Há outras possibilidades [NTs].
[6] Primavera, 2013, Zhang WeiWei, “Why China prefers its own political model” [Por que a China prefere seu próprio modelo político], Europe’s world – http://goo.gl/Pv8tn
[7] http://books.google.com.br/books/about/Civiliza%C3%A7%C3%A3o_material_economia_e_capita.html?hl=pt-BR&id=OEuMAAAACAAJ
[8] 27/3/2013, Visay Prashad, “Os grandes BRICS: a China afinal encontra seu nicho”, em http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/03/os-grandes-brics-china-afinal-encontra.html [em port.]
[9] 26/3/2013, Pepe Escobar: “BRICS conseguem furar o cerco”, http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/03/pepe-escobar-brics-conseguem-furar-o.html [em port.]
[10] É subtítulo de um livro: BOXALL, Fiona Vivien, The New Age of Corporate Management: Weird Scenes Inside the Goldmine [A nova era da gestão corporativa: cenas estranhas na mina de ouro], Ed. Macquarie University (Division of Society, Culture, Media & Philosophy, Department of Anthropology), 2003, 742 p.
Publicado em 4/4/2013, no Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/World/WOR-01-050413.html
Traduzido pelo coletivo Vila Vudu