A Venezuela está longe de ser a sucursal do paraíso na terra. Mesmo assim, ainda que por uma diferença pequena de votos, seu povo insiste em avançar na contracorrente das advertências oferecidas, entre outros, pela mídia brasileira e por seu colunismo isento, arguto e atilado.

Na Folha deste domingo, Eliane Cantanhêde, por exemplo, salientava que desde 1999 vem alertando para a crise final do processo bolivariano.

E não é que passados 14 anos de erros e acertos, golpe de direita, sabotagens, cerco midiático mundial, 17 consultas eleitorais vitoriosas e a incerteza trazida pela dramática morte de Chávez, ainda assim, na 18ª ida às urnas, 50,6% votaram pela continuidade, com Maduro?

Por que tanta e tão longa insensatez?

Alguns detalhes escapam – lá, como cá – aos analistas de larga visão.

Quase a metade da população urbana da Venezuela vivia entre a pobreza e a miséria em 1999, quando tudo começou.

Hoje, esse percentual caiu a 28%.

A capital venezuelana é conhecida pelo elevado grau de criminalidade. Mas entre as 26 principais cidades da América Latina, é a que apresenta a menor taxa de desigualdade de renda.

Na Venezuela, mais de 80% das residências são de propriedade dos seus moradores.

Na prestigiada Colômbia, essa taxa é inferior a 50%.

Cerca de 95% dos lares venezuelanos têm saneamento básico…

É suficiente? Não.

Mas são marcos de um processo inconcluso, que a maioria decidiu continuar.

O que ela decidiu continuar, sob circunstâncias arestosas, digamos assim, não é pouco.

A Venezuela, hoje, é onde a América Latina ousa ir mais longe no aprendizado para o socialismo.

Não é um caminho de flores.

Nunca foi.

Nunca será.

Aqui, a insurreição armada de Che Guevara fracassou, em outubro de 1967, na Bolívia.

Aqui, a via democrática de Salvador Allende para o socialismo foi massacrada, em setembro de 1973, no Chile.

Desde então, o socialismo passou a figurar no discurso progressista hegemônico – o que não implica negligenciar as posições minoritárias à esquerda dele – como a margem de um rio desprovida de pontes e embarcações de acesso.

O ciclo de regressividade neoliberal parecia ter implodido as pontes e queimado todas as caravelas, sem chance de uma nova travessia.

O revés mercadista lubrificou o acanhamento de uns e a rendição de outros.

Reduziu-se o socialismo a um horizonte imaginário pouco, ou nunca, articulado às ações da realidade presente.

A tese da radicalização da democracia política ocupou esse espaço como uma legenda-ônibus, recheada da difusa intenção de erguer pinguelas sobre um vazio estratégico negligenciado.

Esse buraco está prestes a completar 45 anos.

O debate sobre os erros do passado e, sobretudo, a busca de alternativas, devem ser retomados à luz da nova realidade recortada por um duplo divisor: a emergência de um colar de governos progressistas na região e o preço devastador da desordem neoliberal em sua ofensiva de restauração.

Até a ascensão de Chávez, eleito pela primeira vez, em 1998, nunca mais o socialismo havia sido reconsiderado como projeto de governo e horizonte concreto de superação dos conflitos e contradições da luta por justiça e desenvolvimento na América Latina.

É evidente que uma Venezuela sozinha jamais será socialista.

O que o processo bolivariano evidencia –e a eleição apertada de Maduro é um testemunho– são as possibilidades, limites e riscos de retrocesso de um estirão pioneiro.

Não se trata de pedir aos venezuelanos que parem a sua história.

Antes, cabe perguntar o que mais o processo de integração latino-americano pode fazer para ancorar o seu percurso.

Temos todos a aprender com os avanços e tropeços dessa experiência.

Por isso, entre outras razões, é preciso defender o seu direito de prosseguir. E contribuir para que ela não retroceda.

Os sinais de que uma etapa se esgotou são ostensivos.

O povo venezuelano há 14 anos dá mostras de sua pertinácia.

Mas sua coragem não pode mais ser a única fiadora do resgate de uma agenda que interessa a todos os democratas e progressistas da região.

Não fosse por outro motivo, porque seu eventual fracasso não ficará circunscrito às fronteiras do chavismo.

E isso diz respeito sobretudo ao Brasil, o único aglutinador capaz de deter uma presumível espiral de crises destinada a apear Maduro e rachar o Exército.

Ou alguém acredita que eles vão aguardar até a próxima oportunidade eleitoral para tentar outra vez?

Mais que nunca, a Venezuela precisa de sócios, parceiros, apoio político, estratégico e financeiro para afrontar esse processo com a velocidade necessária.

Capriles deixou de ser uma caricatura de perdedor; forças locais e internacionais contrariadas pelo chavismo fizeram dele um vertedouro de ocupação do espaço político venezuelano.

Ou Maduro se torna algo semelhante na direção oposta ou será afogado em ondas sucessivas de desgaste.

Como Allende o foi. E como Lula quase foi, em 2005.

Insista-se: quem pode liderar esse cinturão em torno da Venezuela é o Brasil.

A ver.

Publicado em Carta Maior