Ascensão dos republicanos burgueses

Sob as cinzas das barricadas de junho, ergueu-se o domínio exclusivo dos chamados republicanos burgueses, também conhecidos como tricolores. A quem representavam esses republicanos? Segundo, Marx, “não representavam nenhuma grande fração da sua classe assentada em bases econômicas. Possuíam apenas o significado e o título histórico de terem feito valer, sob a monarquia (…), o regime geral da classe burguesa, o império anônimo da República, que idealizavam e adornavam com arabescos antigos, mas onde saudavam, acima de tudo, a dominação da sua camarilha”. Ou seja, eles eram os frágeis e instáveis representantes das frações burguesas que ascenderam em fevereiro de 1848.

No lugar da Comissão Executiva foi estabelecida uma ditadura constitucional provisória comandada pelo general republicano Louis Eugéne Cavaignac. Esses senhores se aposssaram de todos “os ministérios, das chefaturas de polícia, da direção do correio, das prefeituras, dos postos elevados do exército (…). O seu redator en chef, Marrast, passou a ser o presidente permanente da Assembleia Nacional Constituinte” (MARX, 1984:66).

Os socialistas reformistas, como Louis Blanc, já haviam sido excluídos do governo antes mesmo do levante operário. Todas as veleidades de uma República Social, anunciadas nas barricadas de fevereiro, estavam sendo sepultadas pela burguesia. Mas, não foi somente o proletariado que perdeu diante desse jogo bruto.

“Com a quebra do poder revolucionário dos operários, afirmou Marx, quebrou-se ao mesmo tempo a influência política dos republicanos democráticos, isto é dos republicanos no sentido da pequena burguesia, representados na Comissão Executiva por Ledru-Rollin, na Assembleia Nacional Constituinte pelo partido da Montagne e na imprensa pelo Reforme. Em 16 de abril tinham conspirado juntamente com os republicanos burgueses contra o proletariado e nas jornadas de junho tinham-no combatido juntamente com eles”. Contudo, “a pequena burguesia só pode se afirmar revolucionariamente contra a burguesia quando o proletariado está por detrás dela” (MARX, 1984:65-66).

Por isso, com a derrota de junho, os republicanos pequeno-burgueses puderam ser, facilmente, escorraçados de seus cargos pelos seus amigos de ontem. “Desprezados e rejeitados como aliados”, escreveu Marx, “desceram ao nível de satélites secundários dos tricolores aos quais não podiam arrancar qualquer concessão, mas cuja dominação tinham de apoiar todas as vezes que esta, e com ela a República, parecesse posta em questão pelas frações burguesas antirrepublicanas.” (MARX, 1984). A sua base social — a massa de pequeno-burgueses citadinos — também se deu conta de que, “ao derrotar os operários, tinha se entregue sem resistência nas mãos de seus credores. A sua bancarrota, que desde fevereiro se arrastava cronicamente e parecia ignorada, manifestou-se claramente depois de junho”. No parlamento burguês, “o entendimento amistoso entre credor e devedor foi rejeitado nos seus pontos essenciais” (MARX, 1984:69-70).

Assim, os deputados burgueses, sem a pressão operária e pequeno-burguesa, puderam tranquilamente elaborar a constituição da sua República, que não se confundia com a República Social e muito menos com a República do Trabalho, anunciadas diversas vezes pelo povo pariesiense nas ruas e nas barricadas. A lei que limitava o tempo de trabalho a 10 horas foi revogada e a prisão por dívidas, restabelecida. E esta era uma espada pendendo sob a cabeça dos trabalhadores e pequenos proprietários, sempre endividados com agiotas.

No primeiro projeto de Constituição, elaborado antes de junho e sob vigilância dos operários armados, ainda se falava em “direito ao trabalho”. Como disse Marx, esta teria sido “a primeira fórmula canhestra em que se condensavam as exigências revolucionárias do proletariado”, pois, “no sentido burguês, o direito ao trabalho é um contrassenso, um desejo piedoso, mas por detrás do direito ao trabalho está o poder sobre o capital, por detrás do poder sobre o capital a apropriação dos meios de produção, a sua submissão à classe operária associada, portanto, à abolição do trabalho assalariado, do capital e da sua relação recíproca. Por detrás do ‘direito ao trabalho’ encontrava-se a insurreição de junho. A Assembleia Constituinte, que pusera efetivamente o proletariado revolucionário ‘hors la loi’, fora da lei, tinha que rejeitar, por princípio, a sua fórmula da Constituição, da lei das leis; tinha de lançar o seu anátema sobre o ‘direito ao trabalho’” (MARX, 1984:74). No seu lugar, os republicanos burgueses, como bons samaritanos, estamparam o “direito à assistência pública”. A filantropia foi o máximo de consciência social que atingira esses burgueses.

Outro feito desses republicanos foi a rejeição do artigo que estabelecia o imposto progressivo sobre a riqueza e a renda. Acreditavam, assim, estarem salvando o sagrado direito à propriedade das artimanhas dos comunistas. Ao fazerem isso, na verdade, estavam exorcizando o seu próprio passado, pois o imposto progressivo foi adotado na França revolucionária sob o comando de Maximilien Robespierre, o incorruptível. Este “ditador sanguinário” também havia dado ao país o sufrágio univesal. A contrarrevolução liberal-conservadora, que se seguiu à sua destituição e execução, pôs um fim a essas duas medidas de caráter democrático.

Ridicularizou Marx: “o imposto progressivo não é apenas uma medida burguesa, realizável em maior ou menor grau dentro das relações de produção existentes; era o único meio de amarrar as camadas médias da sociedade burguesa à República ‘honesta’, de reduzir a dívida do Estado, de dar cheque à maioria antirrepublicana da burguesia. Por ocasião dos concordais à l’amiable, os republicanos tricolores tinham sacrificado a pequena burguesia à grande. Por meio da proibição legal do imposto progressivo elevaram este fato isolado a um princípio” (MARX, 1984:74). A responsabilidade maior pela sustentação financeira da pesada máquina estatal burguesa continuaria nas costas da pequena-burguesia e dos trabalhadores.

No seu O 18 de Brumário de Louis Bonaparte Marx fez uma apresentação primorosa da essência da Constituição republicano-burguesa, aprovada em 21 de novembro de 1848. Uma análise que, por sinal, serve para compreendermos todas as demais Constituições liberal-burguesas. “O inevitável Estado-Maior das liberdades de 1848 — a liberdade pessoal, de imprensa, de palavra, de associação, de reunião, de ensino, de culto etc. — recebeu um uniforme constitucional que as tornava invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades foi proclamada como direito incondicional do cidadão francês, mas com comentário adicional de que essas liberdades são ilimitadas na medida  em que não são limitadas pelos ‘direitos iguais de outros e pela segurança pública’ ou por ‘leis’ que precisamente devem mediar essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública (…). Portanto, a Constituição remete constantemente a futuras leis orgânicas que devem precisar aquelas reservas e regulamentar desse modo o uso daquelas liberdades ilimitadas de modo que não se choquem entre si, nem com a segurança pública” (MARX, 1982:35-36).

A Constituinte de 1848 criou uma espécie de poder dual, com duas cabeças: o parlamento e a presidência da República eleitos por sufrágio universal. “De um lado, estão 750 representantes do povo (…); que constituem uma Assembleia Nacional incontrolável, indissolúvel, indivisível, uma Assembleia Nacional que goza de onipotência legislativa, que decide em última instância acerca da guerra, de paz e dos tratados comerciais, a única que tem o direito de anistia e com a sua permanência ocupa constantemente o primeiro plano da cena. De outro lado, o presidente, com todos os atributos do poder régio, com a faculdade de nomear e demitir os seus ministros independentemente da Assembleia Nacional, com todos os meios do Poder Executivo nas suas mãos, sendo ele que distribui todos os lugares e quem, portanto, decide na França da sorte de mais de um milhão e meio de existências, que dependem dos 500 mil funcionários e oficiais de todos os graus. Tem sob o seu comando todo o poder armado” (MARX, 1982:38-39). O que aconteceria quando os interesses de classe, expressos nesses dois poderes, se chocassem?

Os republicanos burgueses — avalistas da Constituição — não tinham dúvida da sua vitória na eleição presidencial de 10 de dezembro de 1848, consolidando o seu poder político e social. Afinal, seus principais inimigos, o proletariado e a pequena burguesia democrática, haviam sido colocados fora de combate. O candidato dos republicanos tricolores era o general Cavaignac, o carrasco das revoltas dos “selvagens” argelinos e dos “bárbaros” operários parisienses: portanto, o salvador da boa sociedade. Havia mais três candidatos: Ledru-Rollin, representando os democratas pequeno-burgueses; François Raspail, porta-voz do proletariado; e Louis Bonaparte, cujo maior título foi ser sobrinho do imperador morto. Em relação à candidatura de Raspail, afirmou Marx, foi “o primeiro ato através do qual o proletariado, como partido político autônomo, se separou do partido democrático”.

Como cláusula de segurança, a maioria parlamentar republicano-burguesa estabeleceu que se nenhum dos candidatos ultrapassasse os dois milhões de votos a decisão passaria para a Assembleia Nacional. Nada poderia dar errado, mas deu. O general Cavaignac conseguiu apenas um milhão de eleitores e, surpreendentemente, Louis Napoleão obteve a espantosa cifra de seis milhões. Os candidatos dos operários e dos democratas pequeno-burgueses tiveram uma pequena votação, demonstrando que ainda não haviam se recuperado da grave derrota sofrida meses antes. Como explicar esse resultado, aparentemente, irracional? O que estava por trás da vitória de um ser tão desprezível quanto Louis Napoleão? As forças políticas estavam atônitas.

O fim do reino dos republicanos burgueses

Marx procurou fornecer uma resposta, baseada na conformação de classes francesa: “O 10 de dezembro de 1848 foi o dia da insurreição dos camponeses (…). Napoleão era o único homem que representara, exaustivamente, os interesses e a fantasia da classe camponesa recém-criada em 1789 (…). Para os camponeses, Napoleão não era uma pessoa, mas um programa. Com bandeiras, ao som de música, dirigiam-se aos postos eleitorais gritando: plus d’impôts, a bas les riches, à bas la republique, vive l’Empereur. Fora com os impostos, abaixo os ricos, abaixo a república, viva o Imperador! Por detrás do imperador escondia-se a guerra dos camponeses. A República que eles derrubavam com os votos era a República dos ricos”. Para eles, era a República que os enchia de impostos. E camponês quando pensava no diabo era sob a forma de coletor de imposto. Continuou Marx: “As restantes classes contribuíram para completar a vitória eleitoral dos camponeses. A eleição de Napoleão significava para o proletariado a destituição de Cavaignac, (…) a cassação da vitória de junho. Para a pequena burguesia, Napoleão era a dominação do devedor sobre o credor. Para a maioria da grande burguesia, a eleição de Napoleão era a rotura aberta com a fração de que, durante um momento, teve de se servir contra a revolução, mas que se lhe tornou insuportável logo que procurou consolidar esta posição momentânea como posição constitucional. Napoleão em vez de Cavaignac era, para ela, a monarquia em vez da República, o princípio da restauração realista (…). Finalmente, o exército votava por Napoleão contra a Guarda Móvel, contra o idílio da paz, pela guerra”. E conclui: “Todavia, por muito diferente que fosse o sentido do nome Napoleão na boca das diferentes classes, cada uma delas escrevia com este nome no seu boletim de voto: abaixo o partido do National, abaixo Cavaignac, abaixo a Constituinte, abaixo a República burguesa (…). Napoleão era o nome coletivo de todos os partidos coligados contra a República burguesa” (Marx, 1984:76-77).

Os constituintes já haviam decidido manterem-se reunidos até a aprovação das leis complementares, que sabiam ser os braços e as pernas da Constituição recém-aprovada. Não podiam deixar essa tarefa para os representantes de outros setores sociais. Começaria assim a guerra surda entre os poderes Executivo e Legislativo, e entre os republicanos tricolores e o Partido da Ordem.

Bonaparte formou imediatamente um ministério assentado no Partido da Ordem e tendo à frente Odilon Barrot. O que era o Partido da Ordem? “O partido da ordem constituiu-se imediatamente a seguir às jornadas de junho. Porém, só depois do ‘10 de dezembro’ lhe ter permitido livrar-se da camarilha do National, dos republicanos burgueses, se revelou o segredo da sua existência: a coligação dos orleanistas e legitimistas num mesmo partido. A classe burguesa cindia-se em duas grandes frações que alternadamente —o a grande propriedade fundiária sob a monarquia restaurada, a aristocracia financeira e a burguesia industrial sob a monarquia de Julho —o tinham mantido o monopólio da dominação. Bourbon era o nome régio da influência preponderante dos interesses de uma das frações; Orléans, o nome régio da influência preponderante dos interesses da outra fração” (MARX, 1984:93).

Uma das primeiras medidadas do novo grupo no poder foi apresentar uma proposta pedindo o encerramento dos trabalhos da Assembleia Constituinte, tendo em vista o novo quadro que se abrira com a ampla vitória eleitoral de Louis Bonaparte. Segundo ele, “a dissolução era necessária para restabelecer o crédito, para consolidar a ordem, para pôr fim àquela indeterminação provisória e criar um estado de coisas definitiva” (MARX, 1982:44). Petições neste sentido vieram de todas as províncias, mostrando o isolamento dos republicanos burgueses e a ascensão dos seus rivais monarquistas do Partido da Ordem.

Em 29 de janeiro de 1849, quando a Assembleia Constituinte deveria discutir a proposta de dissolução ou não, a sede onde se reuniria foi cercada por tropas do exército. Os representantes do Partido da Ordem deram um ultimatum aos republicanos, que cederam sem grandes resistências e fecharam a Constituinte. Este foi um golpe dos monarquistas coligados a serviço de Bonaparte. Mais tarde, os primeiros sentiriam o mesmo sabor amargo em suas bocas. Começavam os preparativos para um novo 18 de Brumário.

Bibliografia

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MARX, K. & ENGELS, F. Las revoluciones de 1848. México: Fondo de Cultura Econômica, 1989.