Senhora Dona de Vilarana

 


Em Vilarana a maré era dona de tudo. Muito embora, de meia em meia hora, o relógio da igreja repartisse o tempo com ponteiros de aço mal concertados; sempre a cargo do zelador Bibiano Ramos. Ou, às vezes, em casos complicados consertados pelas mãos mágicas do eletricista Guitão Pereira, o faz tudo da vila que nem vila era. Havia desacordo entre aqueles dois tempos na vida ribeirinha. O relógio marcava vintes quatro horas fixas pelo sol, dia e noite, com as respectivas batidas de sino. Era a máquina do tempo orgulho dos habitantes do Fim do Mundo, relembrava a história do engenho Tem-Tem. Indústria de aguardente onde o tal relógio veio parar no passado importado, paresque, da Inglaterra na bela época da Borracha, para ser doado na falência pelo falecido coronel Leopoldino Ribeiro, como óbulo para construção da dita igreja matriz..

 

Masporém, na outra parte da história, quem deveras dava hora certa na varja do Curralpanena era maré lançante anunciada desde a madrugada pelo bico da saracura: três potes, três potes, três potes… quebraram um, quebraram um… Sinal de que as águas quebravam, na reponta. Saracura cuidava de avisar navegantes deste rio tal qual desde os começos do mundo: aí relógio não mandava nadinha… A senhora do tempo, de vera era a lua. Com antão povo da cidade não havera de saber? Mais que Fim do Mundo aqui eram mundos diferentes, lado a lado.

 

Não foi uma nem duas vezes que o relógio da igreja andava atrasado ou parou sem aviso prévio. Como se naquelas carcomidas engrenagens, paresque, projetadas da Cabala e fabricadas com técnica secreta na velha Europa se retardasse a marcha da história de Vilarana, com seus cardumes de gados do rio e rebanhos bovinos, equinos, ovinos e bubalinos: descompasso do astro do dia e patetice da população metida em rede para dormir desconformes sestas. “Oh tu que dormes, não vês que o sono é preâmbulo da morte?”, resmungava o doutor Virgílio dizendo ele ter tirado esta do almanaque do Pensamento, palavras dum filósofo cujo nome ele esquecera agora… Era notório que doutor Virgílio padecia de insônia e implicava com gente que tinha mania de fazer a sesta depois do almoço, pois ele vivia pedindo erva cidreira à dona Mindota pra fazer chá antes de se deitar.  Já o Liduíno do Boi dormia que era uma beleza e vivia repetindo e bocejando o que, diz-que, ouviu padre Eurico falar: “Deus fez o homem pra dormir e sonhar”… Será? E se a vida for pesadelo? A santa Bíblia não conta que o santo guerreiro Josué parou o movimento da Terra, à força de reza a Jeová, para matar maior quantidade de inimigos seus, chamados Filisteus; antes da noite chegar? Aí a história foi inventada ou o relógio do tempo parou de verdade.

 

Já com a maré e a lua nunca acontecia desacerto, por jito que fosse… Ultimamente, a velha corrente de ferro fundido, que dava corda ao relógio da igreja matriz; puxada pela mão invisível da gravidade se corrompia com frequência deixando em terra desnorteados passageiros de igarités que perdiam o sono e a viagem governada tão-só pela soberania da maré. Paresque, a ferrugem herdada do engenho de fogo morto ia aos poucos se espalhando e findando o tempo de vida daquele memórável relógio da matriz. Antão, carecia muitos rogos do zelador frente à porta do eletricista suplicando a este para dar tudo de si a fim de forjar novas peças e substituir elos quebrados, consertar rodas dentadas e outras peças daquele quebra-cabeças de mil e um pedaços. Cuja corrente vital parecia pender do céu à terra desde engenhos invisíveis.

 

Já o pessoal da beira do rio parecia ter um infalível despertador e ponto certo com a vigilante saracura, que nunca perdia maré nem o tempo da lua. Era caso de acreditar, como dizia Vovó Tapuia, que este relógio natural da varja vigia desde a primeira noite do mundo donde se surdiu o tempo da vela de jupati… A velha se referia assim a tudo quando, no Curralpanema, vinha de uma longa antiguidade antes mesmo da chegada dos brancos com suas tremendas inglezias.

 

O tempo da maré nunca atrasava nem adiantada. A corrente deste tempo, sem relógios e calendários inventados, só se rompeu uma vez pra nunca mais haver conserto…  Quando os brancos avezaram de levantar currais, construir cercas, engenhos de açúcar e fazer escravos pra plantar, criar e abrir canavial. Haja a mandar derrubar mato, medir tarefas, moer cana, trazer lenha pra acender caldeiras…

 

Com uma tal quizília, desconforme, entraram os senhores destes mundos e fundos a arengar com os padres e a judiar de índios e pretos que pagaram o pato. Tansferiram a muque da praia à margem da baía grande a freguesia pra beira do rio, que ficou apinhado de sítios, pastos e canaviais. Desta maneira, foi deixada ao abandono a velha aldeia com sua antiga capela praiana: eterna tristeza de Nossa Senhora do Tempo confinada ao altar-mor da igrejinha de pedra e cal… Deixa estar que, em certas noites de lua desde a primeira noite do mundo, Vilarana fugindo do cativeiro da dura realidade vira mundo mágico. Diz-que, a ilhinha fronteira ao Fim do Mundo se transforma em Cobragrande e navio encantado. Em terra, moradores insones tal qual o doutro Virgílio passando noites em claro até ouvir o galo cantar; calhavam de ver uma certa dama toda vestida de branco caminhar ao longo da estrada que, antigamente, levava à praia. Era, dizem, Nossa Senhora que ia em busca da sua velha capela coberta de palha junto à aldeia dos pescadores. Quando clareava o dia os devotos podiam ver sobre o altar da igreja a imagem da santa com a barra do manto molhada de sereno e areia do caminho em seus pés. Tal prodígio era um desconforme espanto, na vila que nem vila era; pronto a ser consumido por muitas eras e gerações!

 

O mistério habitava Vilarana, noves fora encantados imemoriais do fundo do rio e das matas profundas onde reina o curupira e a terrível matinta pirera. Mamãe Adélia, coitada, vivia meio assombrada neste fim de mundo, ela levou o filho a visitar o Senhor Morto na igreja numa sexta-feira santa: malcomparado, o morto em seu sepulcro era que nem a imagem do avô Afonso, quando este chegou em casa, de repente, dentro do caixão… A igreja em luto fechado e as imagens cobertas de panos roxos, o pirralho queria saber onde Deus estava e o que fazia na hora que seu avô morreu, a bem dizer sozinho; rio acima.  A mãe dizia: “Ele está aqui no santíssimo sacramento”… Onde? Que o menino não via pra crer…

 

Uma pequena lâmpada encarnada acesa em riba do altar era o sinal alegórico de que Deus morava na igreja, quando descia da carrugem das nuvens com raios de sol por esplendor trazido pelas asas da brisa. O pequeno herege imaginava os santos, lá muito humanizados em suas necessidades diárias, tão-logo o zelador trancava a porta eles desciam do oratório e corriam pelo chão como crianças jogando bola e a conversar que nem gente na porta do mercado sobre os pecados mais recentes de Vilarana. Ali não era tribunal pra condenar ninguém e tudo terminava em caçoada e risavas… Nossa Senhora, risonha como a mãe de todos, fura boto mata piolho. Cadê o queijo que estava aqui?… Pisava com seus divinos pés em riba da cabeça da Cobragrande.  A tal monstra que morava no sometume debaixo da vila: caso tirassem a imagem da santa do altar onde ela estava, era capaz da serpente fazer o diabo levando Vilarana e tudo mais, num medonho tremor de terra, pro fundo das águas…

 

O Padre eterno, perdendo o sono da eternidade com aquela zoada seráfica, ponha-se a ralhar com voz de trovão reboando longe desde a baía trazendo vento de chuva, que nem Tupã chamado, antigamente. Masporém, o que Quinquinhas via em realidade, embaixo do altar-mor, era o Senhor Morto estirado com corpo coberto de pancadas e chagas. Tal qual um ser humano estafado e torturado em sua mais frágil fragilidade. Animalidade do mundo que se abatia sem dó sobre o indefeso homem… Mamãe Adélia disse ao filho, “te ajoelha e beija os pés do santo”…

 

“Eu não, os pés do homem tão inflamados!”, gritou o pirralho uma precoce rebeldia que ele mesmo desconhecia até então. O protesto do menino pareceu tirar os santos de sua santidade fechada para liberdade portas afora. Saiu da igreja correndo e seguido pela mãe sob ralhos severos. Foi se consolar com Vovó Tapuia, senhora de remédios e conselhos caseiros. Durante espichadas procissões pelas três únicas ruas de Vilarana debaixo de sol escaldante, respirando poeira quente com ar de bosta de vaca e cavalo que pastavam bucolicamente a solta, a título de penitência sentenciada por Mamãe Adélia, seguia a Banda e o povo devoto a cantar “no céu, no céu, na santa glória um dia, co’mea mãe estarei…”. Batia fome na boca do estômago. O relógio da igreja batia meio-dia: panela no fogo, barriga vazia… A gente entrava ofegante no templo, trazia o sol preso nos cabelos e a cara incendiada. A fome apertava mais: era ver, antão, se a maré deu peixe neste dia, graças a Deus o açaí tirado da varja na véspera já estava garantido no alguidar pronto a amassar, coar na peneira e comer com farinha. Amém.

 

 

 José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com