Os desafios da Venezuela de Maduro
A convite do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, uma espécie de nosso TSE, mas sadiamente sem acumular poder de polícia, tive a oportunidade de acompanhar as eleições presidenciais de 14 deste abril e compartilhar opiniões com outros companheiros de missão, Samuel Pinheiro Guimarães, Olívio Dutra, Fernando Moraes e o ministro Dias Tóffoli, além de representantes da Unasul e do Mercosul, e de instituições internacionais de quase todos os países do mundo – americanos, mexicanos como Cuauhtémoc Cárdenas, coreanos, ingleses, suíços, argentinos, franceses, canadenses, jornalistas (gente das mais diversas agencias noticiosas internacionais), observadores, especialistas, juristas, escritores… O Mundo estava em Caracas.
Contrariando a expectativa que me fôra criada pela leitura da imparcialíssima imprensa brasileira, encontrei, às vésperas do pleito, uma Venezuela tranquila e uma Caracas serena coberta de outdoors dos dois principais candidatos e animada pela imprensa (jornais e televisão), em sua maioria esmagadora oposicionista. Após a caminhada de Capriles, sem incidentes, descrita como monumental, assistimos, na quinta-feira, a impressionante mobilização popular com a qual Maduro encerrou sua campanha. Oposição, situação, imprensa não chegaram a acordo na avaliação da multidão que encheu ruas e avenidas da capital, calculada entre dois e três milhões de pessoas.
Fora dos atos de campanha, aos observadores internacionais foi oferecida uma série de palestras com especialistas e funcionários do CNE, em minuciosas explicações do processo eleitoral. Na sexta-feira 12 participamos de debates com os comandos das campanhas de Capriles e de Maduro. No sábado, conhecemos o processo de montagem das máquinas de votação (as urnas eletrônicas como chamamos aqui), seus sistemas de segurança e distribuição.
No domingo 14, dia da eleição, os observadores foram distribuídos em equipes que se espalharam por todos os Estados da Venezuela. Coube-me integrar um dos grupos de Caracas, tendo a oportunidade de visitar algumas seções eleitorais em pleno funcionamento e assistir a três apurações de votos em papel. Explico a seguir como se dá o processo do voto para que meu eventual leitor possa entender. Antes, assinalo a ordem, a paz e mesmo a alegria que conheci, nas ruas e nos locais de votação, livres de manifestações ou ‘boca de urna’. Pode ser uma visão impressionista, mas recolhi a certeza de que o povo estava consciente da importância cívica do ato do qual era o sujeito.
O processo de votação. Ao ingressar na sala de votação (em todas as seções por mim visitadas encontrei delegados dos dois candidatos principais), o eleitor é submetido à identificação datiloscópica eletrônica, infalível. Este processo, que na Venezuela é universal, no Brasil é apenas ensaiado, e ainda timidamente.
Confirmada a identidade e o pertencimento àquela seção, o eleitor é autorizado a ingressar na cabina indevassável, muito similar às nossas. Lá, diante de uma tela, na qual se encontram as fotos de todos os candidatos, pressiona a imagem do seu candidato, estampa que surge no visor da máquina eleitoral, onde ele confirma seu voto e colhe dele um recibo. É a comprovação material, gráfica, de seu voto eletrônico. Aí ele sabe que a máquina realmente registrou sua vontade (o que, no Brasil, é impossível). Esse recibo o eleitor, à frente de todos, deposita-o numa urna, que, ao final da votação, é lacrada. Feito isso, assina a folha de votação, onde também deixa suas impressões digitais, e tem um dedo das mãos embebido em tinta indelével por uma semana (admito que não entendi a utilidade disso). Por que o depósito na urna? Se o recibo garante a autenticidade do voto, o depósito na urna possibilita, em qualquer hipótese de dúvida, a conferência, mediante a comparação entre o relatório da máquina e os votos impressos. Explico. Após a votação, encerrado seu processo, o chefe da seção, em ato publico, aciona a máquina eleitoral, que lhe fornece em segundos um relatório do qual constam o número de eleitores da seção, total de votantes e os votos de cada um dos candidatos, inclusive os nulos e brancos e os votos por partido.
A conferência, ainda impossível no Brasil, não é, porém, mera hipótese. Pela lei, independentemente de requerimento de qualquer candidato, imediatamente após a votação e o relatório da máquina, 54% das urnas são abertas e conferidos os votos, cédula a cédula. Isto foi feito ao final da votação do dia 14. Nenhuma discrepância nas conferências de 54% das urnas/máquina de votação, atestado de sua lisura e consequente confiabilidade.
Ao final da apuração, com a eleição apertada de Maduro, anunciou-se a presença, no pleito, de quase 80% dos eleitores inscritos, cifra que se pode considerar elevada se considerarmos que na Venezuela, ao contrario do que ocorre entre nós, e aqui acertadamente, o voto não é obrigatório. (Nas eleições presidenciais brasileiras de 2010, segundo turno, a abstenção chegou a 21,47% do eleitorado apto a votar)
Encerrado o pleito, anunciado o resultado, a presidente do CNE, antes do que entre nós chamaríamos de ‘diplomação’ do eleito, recebe os observadores internacionais (personalidades e instituições) e deles seus relatórios. No caso, todos afirmativos da segurança do processo, garantidora da confiabilidade do resultado eleitoral.
O candidato Capriles, quando questionou o resultado, sabia que estava fazendo encenação, demagogia impatriótica, açulando seus seguidores para um confronto inglório e inútil e acima de tudo irresponsável. Apesar das mortes, lamentáveis, não houve o caos tentado, e a Venezuela volta ao trabalho e à tranquilidade institucional. Para isso foi fator relevante o pronunciamento dos Estados sul-americanos, a atuação da UNASUL e a presença dos presidentes dos países da região na posse de Maduro. Aos poucos se afirma a autonomia sul-americana, superando, com a união de nossos Estados, a supervisão norte-americana. Quedou-se no vazio a resistência de Washington em reconhecer o resultado do pleito.
Mas isso não é, todavia, a história toda. O resultado do pleito também revela uma sociedade perigosamente partida ao meio, e, diante dessa divisão, um governo que nasce fragilizado pelos números eleitorais, minado pela política desestabilizadora dos EUA, fustigado diuturnamente pelo monopólio ideológico da informação que desempenha papel decisivo na formação da consciência política, sempre na contramão dos interesses nacionais e populares. De outro lado, e cumulativamente, enfrentará uma oposição que, em embates anteriores, já disse qual é seu compromisso com as regras da democracia. Nenhum.
O governo Maduro e as forças progressistas organizadas, deverão, enquanto é possível, promover uma profunda avaliação desses ricos 14 anos de governo, mas, de especial, do período que dista de outubro último a essas eleições. Nesse curto período de seis meses, a vitória de Hugo Chávez, com cerca de 10% de vantagem sobre os votos de seu adversário, reduziu-se aos minguados de 1,7% de Maduro, apesar de a campanha haver sido envolvida emocionalmente pela morte do grande líder. Há que se buscar explicação, pois, evidentemente, parte do eleitorado fiel a Chávez em 18 eleições migrou para o adversário. É insensato, portanto, o senhor Maduro acusar o ‘avanço’ da burguesia, quando, na verdade, o candidato oposicionista teve quase metade dos votos. Nessa metade, por óbvio, estão os ricos, uma minoria mínima em face da persistente concentração de renda, está a classe media, e muitos pobres, trabalhadores, descamisados e favelados, a base de sustentação social do chavismo. Observadores atentos me dizem que essa migração para Capriles pode ter tido razão na desvalorização do bolívar (a moeda local), de quase 50%, promovida por Maduro como Presidente interino, medida de imediato impacto nos preços, e na crescente deterioração da segurança pública na grande Caracas. Pode ser. Mas, ainda, não é tudo.
O futuro do governo Maduro – pois, é preciso dizê-lo, nas circunstâncias atuais ele não tem assegurada a integralidade de seu mandato de seis anos – depende muito dessa auto-reflexão, depende da solidariedade dos governos e povos do continente, depende de seu desempenho político (sua capacidade de alargar o atualmente restrito arco de alianças sociais) e depende de seu desempenho na gestão da economia nos próximos três anos, pois nasce ameaçado pela convocação de um referendo revocatório de mandato, novidade introduzida pela Constituição bolivariana, com o qual já acena a oposição, inconsolável com mais uma derrota, mas cheia de esperança para voltar ao poder.
A interligação dos processos políticos em nosso subcontinente diz que não há mais desenvolvimentos isolados, não somos mais ilhas perdidas entre si. O arquipélago transforma-se em continente. O que ocorre na Venezuela (e em cada um de nossos países) diz respeito a todos.
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Publicado em Carta Capital