Partido da Ordem vs. Louis Napoleão

Marx não era um historiador liberal, que tomava as aparências dos fenômenos sociais por sua essência. Por isso, afirmou: “Antes de prosseguirmos com a história parlamentar, são indispensáveis algumas observações, para evitar erros correntes acerca do caráter global da época que nos ocupa. Segundo a maneira de ver dos democratas, aquilo do que se trata durante o período da Assembleia Legislativa como durante o período da Constituinte é a simples luta entre republicanos e monarquistas (…). No entanto, examinando mais de perto a situação e os partidos, esfumaça esta aparência superficial que encobre a luta de classes e a peculiar fisionomia desse período”.

Em outras palavras: era preciso ver o que, de fato, estava por detrás dos envólucros republicano e monarquista e, também, das diversas casas dinásticas. “Os legitimistas e os orleanistas formavam as duas grandes frações do partido da ordem. O que ligava estas frações aos seus pretendentes e mutuamente as separava seriam apenas as flores-de-lis e a bandeira tricolor, a Casa dos Bourbone a Casa de Orléans, diferentes matizes do realismo? Sob os Bourbon governara a grande propriedade territorial, com seus padres e seus lacaios; sob os Orléans, a alta finança, a grande indústria, o grande comércio, isto é o capital, com todo o seu séquito de advogados, professores e bem-falantes. A realeza legítima era simplesmente a expressão política da dominação herdada dos senhores de terra, do mesmo modo que a monarquia de julho era apenas a expressão política da dominação usurpada dos arrivistas burgueses. O que, portanto, separava estas frações não era nenhum dos pretensos princípios, eram as suas condições materiais de vida, duas espécies diferentes de propriedade, era a velha oposição entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e a propriedade fundiária” (MARX, 1982:51-52).

Continua Marx: “Se os orleanistas e os legitimistas (…) procuravam convencer-se a si próprios e convencer os outros de que o que os separava era sua lealdade às suas casas reais, os fatos demonstraram mais tarde que eram mais os seus interesses contrapostos que impediam a união das duas casas reais. E assim como na vida privada se distingue entre aquilo que um homem pensa e diz de si próprio e aquilo que realmente é, e faz, nas lutas históricas há que distinguir ainda mais entre as frases e o que os partidos imaginam e os seus interesses efetivos, entre a representação que têm de si e a realidade. Orleanistas e legitimistas encontraram-se na República uns juntos com os outros e com idênticas pretensões. Se cada parte queria impor à outra a restauração de sua própria casa real, isto apenas significava uma coisa: que cada um dos dois grandes interesses em que se divide a burguesia — a propriedade fundiária e o capital — aspirava restaurar sua própria supremacia e a subordinação do outro” (MARX, 1982:51-52).

Estranhamente, essas duas frações de classes — que se vestiam com roupas de duas dinastias distintas e em conflito — só poderiam manter o seu poder através da República, com a qual antipatizavam. “A República parlamentar era algo mais do que o terreno neutro onde podiam coabitar uma ao lado da outra com direitos iguais as duas frações da burguesia francesa, os legitimistas e os orleanistas, a grande propriedade fundiária e a indústria. Era a condição inevitável para sua dominação comum, a única forma de Estado em que o seu interesse geral de classe podia submeter simultaneamente as pretensões de suas diferentes frações e as de todas as outras classes da sociedade” (MARX, 1982:100).

Os monarquistas mais ingênuos não se cansavam de apresentar anualmente moções pedindo respeitosamente a revogação do exílio das famílias reais depostas em 1830 e 1848. E o parlamento, majoritariamente realista (nos dois sentidos), simplesmente desconsiderava tais pedidos e mantinha seus amados monarcas bem longe do território da República francesa. Isso mostra que os seus interesses de classe eram mais fortes do que as insígnias dinásticas que ostentavam em seus uniformes de gala.

A revolução, contudo, não havia se esgotado completamente e ainda continuava dando susto nas classes dominantes. A partir de fevereiro de 1849 foi se constituindo uma coligação entre os operários e pequeno-burgueses, que se chamaria social-democracia. Coligação que também seria conhecida como Montanha, referência à ala democrático-radical da Revolução Francesa. Essas duas forças sociais construíram um programa democrático e lançaram candidatos comuns. O acordo foi selado com inúmeros banquetes populares, que era a única forma permitida de manifestação pública. É preciso não confundir esse partido social-democrata com o seu homônimo socialista, nascido sob inspiração de Marx e Engels na segunda metade do século 19.

Nas eleições de maio, a social-democracia obteve uma grande vitória política elegendo 200 deputados para a Assembleia Legislativa Nacional. Os republicanos tricolores — abandonados por sua classe — elegeram apenas 50 parlamentares. Os quinhentos deputados restantes eram do Partido da Ordem. Outro fato marcante, que assustou as classes dominantes, foi que os social-democratas haviam conquistado eleitores entre a população rural e contavam com quase todos os deputados eleitos por Paris. Até o Exército — baluarte da ordem — sufragou três suboficiais de tendência democrática. Ledru-Rollin, chefe da social-democracia — elegeu-se por cinco departamentos. Sinal de que ainda havia brasa sob as cinzas.

O Partido da Ordem passou a utilizar contra os democratas pequeno-burgueses — vanguarda da social-democracia — o mesmo estratagema empregado pelos republicanos burgueses contra os operários parisienses em junho de 1848. Tentou provocá-los e conduzi-los a uma luta desigual a fim de esmagá-los. Escreveu Marx: “A força do partido proletário estava nas ruas, e a dos pequeno-burgueses na própria Assembleia Nacional. Tratava-se, pois, de os tirar da Assembleia Nacional para as ruas e fazer com que eles próprios destroçassem a sua força parlamentar antes que tivessem tempo e ocasião para a consolidar” (MARX, 1982:56).

A provocação começou em junho, quando o general Oudinot, sob ordens de Bonaparte, bombardeou Roma, expulsou os republicanos de Mazzini e abriu o caminho para a volta do reacionário Papa Pio IX, que havia sido expulso pela Revolução e se refugiado no reino de Nápoles. A Constituição francesa afirmava que a República “não empreenderá guerra de conquistas e jamais usará suas forças contra a liberdade de outro povo”. E as decisões sobre o uso de forças militares no exterior deveriam passar necessariamente pela aprovação do parlamento. Diante disso, o líder da oposição Ledru-Rollin apresentou um projeto de impeachment contra o presidente e seus ministros. Como era esperado, a ampla maioria dos deputados votou contra a proposta.

Uma ala mais radical da social-democracia declarou Bonaparte “fora da Constituição” e ameaçou com o uso das armas para defendê-la, coisa que não pretendia e nem tinha condição de fazer. No dia 13 de junho realizou-se uma grande manifestação dos setores democráticos da Guarda Nacional desarmados, ao qual se uniram dezenas de milhares de pessoas. Clamavam pelo respeito à Constituição e à República. Contudo, a multidão foi obrigada a se dispersar ao se ver diante de si as tropas do exército fortemente armadas, lideradas pelo general Changarnier. Este era o herói do Partido da Ordem, como o general Cavaignac o fora para os republicanos burgueses.

O estado de sítio foi novamente declarado na cidade de Paris. Iniciou-se a caçada aos líderes social-democratas. Alguns tiveram que deixar o país e outros acabaram sendo processados e presos. As guarnições da Guarda Nacional ligadas a essa corrente política foram dissolvidas. O próprio parlamento caiu sob um rigoroso controle. Tudo o que fora acumulado pelos democratas pequeno-burgueses nas eleições escorreu pelos vãos dos dedos e eles tiveram que sair de cena.

Cai o Partido da Ordem

A maioria parlamentar do Partido da Ordem — como o fizera os republicanos burgueses — não se deu conta de que “ao entregar numerosos deputados, sem mais cerimônias, à requisição dos tribunais, suprimia a sua própria imunidade parlamentar. O regulamento humilhante que impôs a Montagne  (refere-se ao partido social-democrata) elevava o presidente da República na mesma medida em que rebaixava cada um dos representantes do povo. Ao estigmatizar, como anarquista, como destinada a subverter a sociedade, uma insurreição em defesa do regime constitucional, a burguesia proibia a si própria o apelo à insurreição quando o poder executivo violasse contra ela a Constituição” (MARX, 1982:60). Assim, ia cavando sua própria sepultura.

Alguns meses depois — em 1º de novembro —, o presidente demitiu o ministério Barrot, afinado com o Partido da Ordem. Bonaparte soube usar bem os seus serviços para realizar as tarefas sujas de pôr fim à Assembleia Constituinte, bombardear Roma e esmagar o partido social-democrata. A destituição do ministério era o sinal de que a guerra estava recomeçando no andar de cima. E isso acontecia cada vez que os do andar de baixo tinham sido calados.

O Partido da Ordem agora estava fora do governo, sem os privilégios e prerrogativas dos postos executivos. Toda máquina estava nas mãos exclusivas de um presidente que sonhava com a coroa e o manto imperiais.

Em todos esses anos tanto os burgueses republicanos quanto as correntes monarquistas tiveram um discurso monocórdico em defesa da ordem e contra a anarquia vermelha. Acenando com o fantasma do comunismo, procuraram manter a burguesia, a aristocracia rural e a classe média sob rédeas curtas. Agora, era a vez de Bonaparte esgrimir com os mesmos argumentos contra seus ex-aliados conservadores.

Escreveu Marx: “Quer se tratasse do direito de petição ou do imposto sobre o vinho, da liberdade de imprensa ou da liberdade de comércio, de clubes ou da Carta municipal, da proteção da liberdade individual ou da regulamentação do orçamento do Estado, a senha se repete constantemente, o tema permanece sempre o mesmo, o veredito está sempre pronto e reza invariavelmente: socialismo. Até o liberalismo burguês é declarado socialista, o desenvolvimento cultural da burguesia é socialista, a reforma financeira burguesa é socialista. Era socialismo construir uma ferrovia onde já existisse um canal, e era socialismo defender-se com um porrete quando se era atacado com um florete”.

“A burguesia tinha a percepção correta de que todas as armas por ela forjada contra o feudalismo se voltavam contra ela mesmo, que todos os meios de cultura criado por ela se rebelavam contra sua própria civilização, que todos os deuses que tinha criado a abandonavam. Compreendia que todas as chamadas liberdades civis e órgãos de progresso atacavam e ameaçavam, ao mesmo tempo, na base social e no vértice político, a sua dominação de classe e, portanto, tinham se convertido em ‘socialistas’ (…) Portanto, quando a burguesia excomunga como ‘socialista’ o que antes exaltava como ‘liberal’ confessa que seu próprio interesse lhe ordena que evite os perigos do seu autogoverno; que para impor a tranquilidade no país, tem que impô-la, em primeiro lugar, ao seu parlamento burguês; que para manter intacto o seu poder social tem que enfraquecer o seu poder político; que o burguês privado só pode continuar a explorar outras classes e gozar pacificamente da propriedade, da família, da religião e da ordem com a condição de a sua classe ser condenada com as outras classes à mesma nulidade política; que para salvar a bolsa há que renunciar à coroa” (MARX, 1982:70-71).

Enquanto iniciava a peleja entre Louis Bonaparte e o Partido da Ordem, um acontecimento deu-lhes um susto e voltou a unir, momentaneamente, os contendores. Nas eleições de 10 de março — convocadas para preencher as vagas dos deputados cassados —, dos 21 cargos em disputa, 11 foram preenchidos pelos social-democratas. Em Paris as três cadeiras em jogo ficaram nas mãos dos “vermelhos”. Entre os eleitos estava um dos insurgentes de junho, Paul Deflotte. O cadáver teimava em se levantar do caixão para assustar as pessoas de bem. Era preciso pôr um fim definitivo nisso.

Novamente, a burguesia coligada preparou um golpe branco. Em 31 de maio, o parlamento aprovou nova lei eleitoral estabelecendo uma taxa a ser paga pelo eleitor e proibindo que votassem aqueles que algum dia tivessem sido processados pela justiça francesa ou que residissem a menos de três anos na mesma circunscrição eleitoral. O patrão forneceria o atestado que provava o tempo de domicílio e a polícia o atestado de bons antecedentes. Na prática, essas medidas representavam o fim do sufrágio universal, pois numa só penada excluiu do direito ao voto cerca de três milhões de pessoas, a quase totalidade representada pelos trabalhadores pobres. “A lei eleitoral de 31 de maio de 1850 o excluiu (o proletariado) de qualquer participação no poder político. Isolou-o da própria arena. Atirou novamente os operários à condição de párias que haviam ocupado antes da Revolução de Fevereiro”, disse Marx. A social-democracia perdia assim uma grande parte do seu eleitorado e os políticos burgueses o pouco de respeito que ainda tinham junto ao povo.

O Partido da Ordem, para retomar a rédea do poder, agora depositava todas as suas esperanças na letra da Constituição, que impedia a reeleição do presidente e ainda mantinha a necessidade de qualquer dos candidatos ter mais de 2 milhões de votos. Se o quorum não fosse atingido, a decisão cairia nas mãos do parlamento; ou seja, nas mãos do Partido da Ordem. A situação, aparentemente, se tornou mais favorável com a redução drástica do número de eleitores. Diante disso, a questão da reforma da Constituição passaria a ser uma questão de vida ou morte para Louis Bonaparte.

Os social-democratas, os republicanos burgueses e parte do Partido da Ordem, por motivos diferentes, eram contra a revisão da Constituição. E para aprová-la era preciso do voto de pelo menos 3/4 dos deputados. Algo quase impossível naquele momento. Se nada de novo ocorresse, os dias do presidente estavam contados.

Bibliografia

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