“Julgamento do Mensalão” é discutido em seminário sobre relação entre justiça e imprensa
Durante o Seminário O Crime e a Notícia, realizado nesta quinta (25/4) em São Paulo, juristas e jornalistas se debateram em opiniões que se contrapunham, ao criticar a espetacularização da criminalidade e a liberdade absoluta de informar os meandros da justiça ao cidadão. É notável como jornalistas se posicionam contra qualquer cerceamento da notícia, enquanto os profissionais do direito apontam os inúmeros casos em que a imprensa interfere diretamente no resultado de um julgamento ao pressionar contra a impunidade. O chamado “julgamento do mensalão”, primeiro a ser transmitido e analisado ao vivo em emissoras de televisão, foi um bom exemplo desses efeitos.
O seminário “O Crime e A Notícia”, promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), ocorreu no Teatro dos Gabinetes da Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O ex-ministro da Justiça do primeiro governo Lula, Márcio Thomaz Bastos, disse que a transmissão ao vivo de julgamentos do STF, como ocorreu no caso da Ação Penal 470, o Mensalão, foi “um erro”. “É impossível fazer agora um caminho de volta, parar com as transmissões. Mas, por outro lado, acho que foi um erro, de fortes consequências, a implantação desse sistema de transmissão ao vivo”, opinou.
Segundo Thomaz Bastos, “meu coração é a favor, mas minha cabeça é contra [a transmissão de julgamentos]”. O ex-ministro disse acreditar que, em casos como o de Mizael Bispo e da Ação Penal 470, o mensalão, nos quais houve transmissão ao vivo pela TV Justiça e ampla cobertura por parte de canais comerciais, ministros, juízes e advogados passaram a atuar para os espectadores e as câmeras de TV. “Houve grande influência sobre a atuação das pessoas envolvidas no julgamento” ressaltou.
Para Thomaz Bastos, a forma como são conduzidas essas transmissões por canais de televisão é danosa para o direito de defesa e gera publicidade opressiva contra o acusado. Comparou julgamentos midiáticos a uma tragédia grega, em que tudo já aconteceu, já é sabido o final e apenas é feita uma representação simbólica dos fatos.
No início de sua exposição, Thomaz Bastos ponderou que quando começou a advogar não falava com a imprensa, pois acreditava que o advogado só deve se manifestar nos autos do processo. A atitude mudou. “Quando o frenesi midiático se instala, as pessoas vão ao julgamento para cumprir protocolo e ver qual foi a pena, pois ocorre praticamente uma condenação prévia”, ressaltou.
Entre suas críticas, esteve também o vazamento de informações usado de forma banalizada. Segundo ele, é necessária uma série de garantias do Estado para evitar que não haja abuso de informações sigilosas em processos e que isso não prejudique o arbítrio. A função dessas informações em uma investigação é de última instância, quando não se pode atingir o objetivo da investigação por outros meios e, quando vazadas, criam a possibilidade de condenação prévia. Mas ressalta com veemência: “Não defendo a censura”.
Leia também:
A construção do Mensalão
A mídia e a disputa pela hegemonia
A ‘escalada democrática’
Mensalão e publicidade opressiva
No evento, Thomaz Bastos comparou a relação dos ministros do STF com a imprensa com o que ocorre nos Estados Unidos. “A Suprema Corte dos EUA é tão cônscia das reservas que deve manter que em uma cerimônia anual na qual o presidente da República fala no Congresso à nação, todos fazem manifestações, menos os nove membros da Corte, que permanecem impassíveis, em uma demonstração de que a Justiça só fala em julgamento. Não se vê um membro da Suprema Corte dando entrevistas à televisão”, pontuou.
“E por que é tão diferente? Porque é preciso desmistificar a história de que a imprensa é mero espelho da realidade. É como se ninguém pudesse se queixar do que ela faz porque ela só reflete os acontecimentos. Não é assim, e essa discussão está se travando em vários países do mundo hoje”, argumentou. “Sou advogado criminal é já participei de julgamentos nos quais vi clientes inocentes serem condenados pela pressão da mídia”, revelou.
“Se alguma vez no Brasil tivemos o que preconizava Nelson Hungria, a publicidade opressiva, foi nesse julgamento [Ação Penal 470]”, disse Thomaz Bastos, que defendeu José Roberto Salgado, ex-vice-presidente do Banco Rural, condenado a 16 anos e 8 meses de prisão pelo STF. A expressão utilizada pelo ex-ministro diz respeito ao Trial by Media (Julgamento pela Mídia), que, por interferir no curso dos procedimentos oficiais, já causou até mesmo anulação de processos em países como Inglaterra e Estados Unidos.
Já Theodomiro Dias Neto, advogado e professor da Escola de Direito de São Paulo (Direito FGV), entidade que apoiou o evento, foi mais incisivo. ”O Judiciário está sendo presidido por um ministro que sempre que pode mostra desprezo pela advocacia.
Acobertar segredos
Para o jornalista Eugênio Bucci, ex-presidente da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), há fatores positivos nas transmissões realizadas pela TV Justiça das audiências do Supremo. “Considero positivo porque a sessão é pública por definição, salvo exceções. Um dos efeitos da transmissão foi um ‘efeito Concílio Vaticano II’: o Judiciário foi obrigado a deixar de falar latim, para falar português. Esse contraste entre os olhos do público e a linguagem da justiça promoveu, por reação, um imperativo de clareza na manifestação dos ministros. Isso trouxe arejamento ao Judiciário do Brasil, em alguma medida.”
“O que é uma notícia senão um segredo revelado?”. Com essa indagação, Bucci resumiu a relação dos jornalistas com o sigilo das informações que até eles chegam. Durante mesa de debate “Direito de Defesa, Imprensa e Democracia”, ele explicou ser falsa a ideia de que o segredo de Justiça impediria o profissional de abordar determinado assunto.
“O dever do jornalista é considerar a publicação daquela informação. Pode até decidir não publicá-la, mas é seu dever ter lealdade com o público”, comentou. “Jornalistas não são responsáveis por acobertar segredos de Estado. Ao contrário, seu compromisso é descobrir, revelar e publicar segredos.”
Bucci alertou para o perigo de qualquer tentativa de se fazer censura prévia ao trabalho da imprensa com o objetivo de preservar direitos. “Não pode haver barreira à liberdade de imprensa e ao trabalho dos jornalistas e dos meios de comunicação, que, no entanto, são responsáveis por abusos que vierem a cometer”, disse Bucci.
O palestrante questionou, ainda, se a liberdade de imprensa é um valor absoluto e a relação entre imprensa e mundo jurídico. “Assim como o Estado de Direito não pode admitir obstáculo para o cidadão que busca a Justiça, não se pode impor obstáculo também para o cidadão que busca se informar ou informar”, disse.
Para o jornalista, também formado em direito, o direito à informação e a liberdade de imprensa, de um lado, e o direito de defesa e o respeito às garantias individuais, do outro, não existem um sem o outro. “O acesso à Justiça e a liberdade de imprensa são valores interdependentes. Convivem, não competem”, afirmou Bucci.
Ele ressaltou que o valor absoluto de cada um desses direitos fundamentais remete ao conceito de direito absoluto, mas essa seria uma abordagem equivocada, pois um direito deve sempre conviver com outros. “A liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro ou o direito de um termina onde começa o direito do outro”, acrescentou.
Quarto poder
Para Bucci, a imprensa não teria condições de fiscalizar o poder público se for conivente com ele. “Há uma série interminável de segredos publicados que prestaram serviço público e do qual hoje somos beneficiados”, relata Bucci
Bucci e o criminalista Antônio Claudio Mariz, que também participou da mesa, falaram sobre os papeis da liberdade de imprensa e do direito de defesa na construção da liberdade. “Não há antagonismo de interesse entre a liberdade de imprensa e o direito de defesa, mas uma comunhão, que é a de melhorar o País e a vida em sociedade” explicou o advogado.
Lei inconstitucional
O voto do ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, sobre a Lei de Imprensa foi lembrado pelo jornalista. Em 2009, a Corte, por sete votos a três, entendeu que a lei era inconstitucional. Na ocasião, o ministro entendeu que a imprensa é vista por ela mesma e também pela sociedade “como ferramenta institucional que transita da informação em geral e análise da matéria informada para a investigação, a denúncia e a cobrança de medidas corretivas sobre toda conduta que lhe parecer (a ela, imprensa) fora do esquadro jurídico e dos padrões minimamente aceitáveis como próprios da experiência humana em determinada quadra histórica”.
Já o mediador Theodomiro Dias Neto, advogado e professor da Escola de Direito de São Paulo (Direito GV), apoiadora do evento, disse que equívocos na cobertura jornalística de casos criminais devem ser combatidos “com boas informações estatísticas criminais”. “O Estado deve produzir e divulgar dados sérios e consistentes sobre as ocorrências criminais, e os jornalistas precisam aprender a lidar bem com essas informações. Má informação se combate com boa informação”, disse.
O espetáculo da criminalidade
Sobre o “julgamento do mensalão”, o advogado criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira ressalvou que “o processo é público, mas não para o público”. “Não diz respeito ao princípio da publicidade você transformar o processo para o público de uma forma geral, o risco da dramatização é muito grande. A mídia captura a vaidade de todos nós. Se não fosse a televisão, o resultado do Mensalão seria o mesmo?”, questionou Mariz, que defendeu no julgamento da Ação Penal 470 a ex-vice-presidente do Banco Rural Ayanna Tenório, absolvida. “Assisti pronunciamentos desnecessários, visivelmente midiáticos, de ministros. Gente que se preocupou não só com o conteúdos dos seus votos, mas com aspectos físicos, cabelo, gravata…”
Mariz de Oliveira, citando o julgamento da Ação Penal 470, criticou o que ele julga ser um cerceamento do trabalho dos advogados. “Fiquei muito angustiado com o Mensalão. Ali ocorreram coisas incríveis do ponto de vista da prática jurídica porque nós, advogados, fomos colocados à margem”, disse ele, que também destacou o papel da mídia em processos da esfera criminal. “A imprensa escrita melhorou muito, mas não a televisão. A mídia televisada tem prestado um grande desserviço para o sistema penal e ao exercício do direito de defesa”.
Embora os direitos individuais do acusado e a liberdade de imprensa coexistam, a realidade prática demonstra que essa relação nem sempre tem sido construtiva,causando prejuízos a pessoas processadas ou investigadas criminalmente. “Vai falar a vocês um advogado angustiado, ansioso e preocupado com o direito de defesa, mas consciente da importância da liberdade de imprensa e informação. O fim da liberdade de um é o fim da liberdade de outro”, disse Oliveira.
A fala do advogado criminalista, ainda que emocional— afinal, aqueles que já o ouviram falar sabem de sua eloquência —, foi carregada de conteúdo filosófico e arrancou aplausos da plateia. Para Mariz de Oliveira, o crime não é um fenômeno do qual a sociedade esteja distante e pelo qual também não tenha responsabilidade.
“Qualquer um de nós pode ser acusado de cometer um crime. Eu não sei, por exemplo, se um dia posso vir a praticar um homicídio ou uma lesão corporal. Quando a sociedade quer colocar na cadeia um adolescente que foi abandonado quando criança e cometeu um crime posteriormente, ela está tentando encobrir algo gestado por ela mesma”, explica.
O evento, cuja primeira mesa teve também a participação do jornalista Eugênio Bucci, foi promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) no Teatro dos Gabinetes da Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, apoiador da iniciativa junto com a Escola de Direito de São Paulo (Fundação Getulio Vargas).
Para Mariz, esse fenômeno está enraizado na opinião pública e é reproduzido sistematicamente pela mídia, em especial pela mídia televisiva, para quem o crime seria uma patologia de que sempre padece o outro.
A abordagem sobre o delito, de acordo com Mariz de Oliveira, deve partir desse pressuposto, deslocando-se o ponto de vista da culpa e da punição para a gênese do crime, de modo a alcançar uma discussão profícua sobre o tema. Além disso, é necessário pautar o debate em torno do “fenômeno da criminalidade”.
Agindo de forma diversa, a imprensa, de acordo com ele, acabaria por espetacularizar a tragédia humana. Tal opção faria reproduzir o medo exacerbado do crime e sensações de insegurança, que não refletem a realidade e apenas alimentam a indústria da mídia sensacionalista.
Outro assunto colocado em pauta foi a escassez de estudos sobre o crime e suas causas. “Elas nunca são discutidas. O crime é uma tragédia humana, não é espetáculo. A televisão está a serviço da insegurança. Quando não passa notícia de crime no Brasil, a televisão exibe filme americano ou europeu sobre crime”, critica. A justificativa, aponta, “são os interesses de faturamento”. “A imprensa precisa nos ajudar a superar isso. Quando um crime ocorre, toda expectativa é pela culpa, não pela inocência.”
Mariz de Oliveira, no entanto, não adstringiu sua crítica à visão que a imprensa tem do criminoso. Discutiu, além disso, a abordagem que se faz em relação à figura do próprio advogado, que, para o palestrante, parece ter adquirido, como efeito da exposição midiática, um status de defensor do crime em si e cúmplice de seu cliente.
Essa visão do advogado tem se refletido no Poder Judiciário, que o trata mais como um indivíduo a ser “tolerado” no processo do que como um ator com funções indispensáveis à administração da Justiça. Segundo ele, o advogado não é um obstáculo à Justiça, mas sim um de seus efetivos promotores, sem os quais a realização daquela é inviável.
Segundo o criminalista, a atuação do advogado de defesa está mais difícil do que na época da Ditadura Militar. Cita, como exemplo para embasar a tese, o acesso aos processos e aos inquéritos criminais nos fóruns e delegacias de São Paulo. “Meus estagiários sempre reclamam que não tiveram vista dos autos. Muitas vezes, descubro que meu cliente foi condenado por meio da imprensa, quando o jornalista liga pedindo entrevista. Isso é obscurantismo puro.”