O livro de André Singer “Os Sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador” (São Paulo, Companhia das Letras, 2012) é certamente a reflexão mais sistemática e com perspectivas de totalidade sobre o curso da história recente do Brasil a partir do momento em que Lula foi eleito presidente do país, em 2002. Essa reflexão é centrada em um fenômeno político novo – “o lulismo” – mas, de fato, analisa seus sentidos a partir de uma visão que combina dinâmica eleitoral, economia e sociedade em um enquadramento de longas temporalidades.

Exatamente por ser um investimento prodigioso de entendimento, desses que se abrem à aventura da indeterminação pela amplitude da pergunta e pelas complexidades em movimento das relações aí formuladas em resposta, optamos por dialogar com ele em cinco pequenos ensaios. É tal a riqueza das interrogações e respostas formuladas no livro que um ensaio apenas transbordaria de seu conteúdo possível.

Desde já, formulamos uma relação simpática com as grandes teses expostas na obra. A primeira delas é que a combinação dos fenômenos de deslocamento social na base da pirâmide brasileira, fruto das políticas do primeiro governo Lula e consolidadas no segundo governo, mais o episódio equivocamente chamado de “mensalão”, provocou um realinhamento eleitoral a partir das eleições presidenciais de 2006. As eleições de 2010 e também as realizadas em 2012, com as singularidades e mediações municipais, parecem confirmar essa hipótese que vincula setores populares tendencialmente ao voto nos candidatos do PT e certos setores médios tendencialmente votantes do PSDB ou do antipetismo.
A segunda grande tese de interpretação é que “o lulismo” representaria até agora um reformismo fraco, apesar da amplitude histórica das mudanças sociais que foi capaz de promover. Essa noção de “reformismo fraco” se oporia tanto à hipótese sectária de identificar no lulismo um fenômeno regressivo quanto à expectativa de mudanças estruturais nas relações de poder e propriedade do capitalismo brasileiro condensadas no tempo.

A terceira tese de interpretação é que “o lulismo” teria realizado um caminho de despolarização política entre esquerda e direita, no sentido classista e dos valores do socialismo, e de repolarização política entre “povo” e “ricos”, baseada em uma aliança política com setores de centro-esquerda, do centro e mesmo conservadores do espectro político-partidário, dando feição a uma vasta “coalizão produtivista” versus uma “coalizão rentista”, liderada pelo PSDB. Nessa hipótese, a liderança de Lula cumpriria o papel de arbitrar entre extremos, institucionalizando conflitos abertos de classes em uma dinâmica de permanente negociação.
A quarta tese de interpretação é que o PT, com uma temporalidade própria, teria acompanhado a estratégia e o modo de operar do “lulismo”, alterando suas bases sociais e, principalmente, abrigando em seu peito duas almas, uma pragmática alinhada às mudanças possíveis no contexto e outra que continua a marcar, ao fundo, seus princípios e identidades socialistas de origem.

Como se verá, os objetivos dialogais desse e dos próximos ensaios vão no sentido de discutir, ponderar, qualificar e completar esses diagnósticos.
Três conquistas de método e uma falta

Há no esforço de reflexão de André Singer três questões de método decisivas.
Em primeiro lugar, a opção por combinar as tradições de estudo eleitorais – fortemente quantitativas e herdeiras principalmente da bibliografia anglo-saxã de estudos da ciência política – com um viés classista de interpretação que dialoga com os clássicos do marxismo. Não se trata no livro de um empreendimento eclético: as grandes tendências eleitorais de voto no Brasil são interpretadas conceitualmente através do movimento ascensional do chamado subproletariado, pessoas que vivem do seu trabalho mas, pela formação social brasileira, não compõem organicamente o proletariado industrial ou do setor de serviços de forma estável.

Ora, a identificação da importância concedida a esse setor por dois clássicos de interpretação do Brasil – Caio Prado Júnior e Celso Furtado – permite ao autor avaliar a dimensão histórica do fenômeno que estamos vivendo. Mais do que uma tendência eleitoral, mais do que um fato acontecido na dinâmica da disputa partidária, estamos diante de um “movimento nas estruturas”, do qual “a polarização na sociedade é sintoma”.
Na ciência política acadêmica brasileira, em geral os estudos eleitorais são “desfiliados” das tradições interpretativas dos clássicos do Brasil. Fruto da autonomia departamental  da disciplina e sua ambição de cientificização, os estudos de interpretação eleitoral desprezam na maioria das vezes a rica arca de acúmulos de estudos interpretativos do Brasil. André Singer vai em direção contrária: o conceito de “realinhamento eleitoral”, definido como “mudanças de clivagens fundamentais do eleitorado, que definem um ciclo político longo”, procura em seu argumento exatamente amarrar tendências de voto às dinâmicas históricas de classe.

Em segundo lugar, é um grande mérito desse trabalho dialogar, acolhendo inclusive parte das razões, com intelectuais que, a partir de um referente marxista ou de esquerda, denunciam a experiência do “lulismo”. No campo hoje fraturadíssimo do marxismo brasileiro, essa opção por escutar e acolher criticamente as vozes que vêm de fora da cultura do PT – como a voz rouca e nordestina de Francisco de Oliveira, aquela outra historicamente adversária ao PT de Luiz Werneck Vianna, a de Leda Paulani, além de muitas outras – deve ser defendida com ênfase. Se discordamos dos juízos às vezes até insultantes contidos nessas razões adversárias e autointituladas de esquerda, não é o caso de desqualificá-las de partida.
O pensamento ensimesmado sempre se empobrece. O pluralismo das vozes, inclusive à esquerda e para além dela, tem um valor heurístico. Se o lugar social de quem diz é importante, o lugar político de quem critica também o é: se apenas acolhemos as razões de quem defende o PT e nossas experiências de governo, o risco que se corre é encerrar nossas razões em uma lógica da autojustificação. Alternativas, limites, erros podem ser descartados em nome da autodefesa de um partido submetido a uma guerra permanente de desgastes pelas grandes empresas de mídia.

É uma terceira conquista do livro Os Sentidos do Lulismo pensar na escala das longas temporalidades. Atravessamos mais claramente no Brasil desde 2002 uma conjuntura crítica, de alta dramaticidade histórica e violentíssima tensão política. Conjunturas críticas são aquelas que definem os paradigmas de largas temporalidades, interrompem continuidades e abrem novas perspectivas: não se pode pensá-las a partir de análises de conjuntura, estrito senso.
De certo modo, as experiências recentes de transformação na América Latina têm estado às voltas com seu passado: o bolivarismo, o retorno atualizado das tradições do peronismo, a ascensão das culturas indígenas na Bolívia, o experimento uruguaio da Frente Ampla. No Brasil, também não é diferente: o passado represado está vindo à tona, como, por exemplo, as políticas de reparação das heranças escravocratas. Pensar através das largas temporalidades é fugir dos erros do impressionismo, o maior risco de quem se mete a compreender um processo em curso e na vertigem dele.

Talvez o grande limite da reflexão de alta complexidade empreendida por André Singer é não conferir à questão democrática – mais além das tendências de voto – uma centralidade para o entendimento da evolução recente do Brasil. A sociedade brasileira está vivendo fortes movimentos, a correlação de forças entre os partidos também, igualmente a economia, mas em que medida o poder do Estado está sendo transformado? Em que medida, onde e como o Estado brasileiro tem se alterado?
A correlação de forças para mudar leis fundamentais, para reorientar estruturalmente gastos orçamentários, para realizar alterações profundas no sistema tributário ou no sistema de propriedade rural, para permitir a democratização das relações de trabalho, e assim por diante, interfere no ritmo possível das mudanças. A concentração e a propriedade dos meios de comunicação de massa interferem fortemente na formação das legitimidades e na formação da opinião pública. As regras eleitorais e de organização de partidos, bem como o modo de financiamento, interferem diretamente nas dinâmicas partidárias.

Se não há acúmulo suficiente para mudar leis fundamentais, como fazer, o que fazer, se o que se quer é o caminho legitimado e democrático das mudanças? Como o chamado fenômeno do lulismo se relaciona com uma larga conjuntura na qual se governa adversativamente em meio a um Estado profundamente marcado por heranças conservadoras e burguesas? Como superar os impasses que daí resultam?
O “lulismo” como  operador de interpretação

No título do livro de André Singer comparece o conceito de “lulismo”, em geral utilizado por motivos críticos à cultura do PT para nomear o caráter sebastianista, carismático, populista, salvacionista, personalista ou, em uma linguagem mais marxizante, cesarista ou bonapartista dos governos Lula e de sua liderança pública. A intenção desses críticos foi, desde sempre, separar Lula e o PT, autonomizar um de outro, para melhor combatê-los.
Será válido, a partir de uma perspectiva de esquerda, utilizar o conceito de “lulismo” como operador para a compreensão de nossa experiência? Defenderíamos aqui um uso condicionado desse conceito.

De um lado, deve se reconhecer que a liderança pública de Lula atingiu um grau histórico de cristalização inédito na história brasileira. Apenas Vargas gozaria de tal impregnação ou assemelhada no plano histórico. Além disso, a liderança de Lula não parece acompanhada até agora pela liderança ou simpatia do PT na mesma amplitude social. O fenômeno da popularidade de Lula extravasa certamente a simpatia pelo PT. Por isso, subsumir a liderança pública de Lula na cultura petista poderia esconder ou desvalorizar sua singularidade e seu raio próprio de ação.
De outro lado, a liderança pública de Lula nunca foi apartidária ou personalista: é seguramente um homem de partido, um construtor de partido, uma liderança vincada à história do partido de esquerda mais influente da história brasileira. Trata-se de uma liderança carismática mas “progressiva”, e não “regressiva”, para utilizar uma boa distinção de Gramsci: ela não cria vazio a seu redor, não se faz valer por sua excepcionalidade,  mas transmite e forma novas lideranças.

Além disso, Lula foi e é cada vez mais uma liderança de mediações: por sua personalidade histórica passam hoje milhares de fios de ligação com as consciências múltiplas do povo brasileiro, das classes trabalhadoras e dos setores populares. Daí que seu poder de arbitragem é, em geral, de sentido democrático e não opera no sentido unívoco da acumulação solitária de poder.
A liderança de Lula é ainda certamente dinâmica. Cristalizá-la em uma certa correlação de forças seria, de certa forma, aprisioná-la ao contexto. Mas o título do livro foge a esse risco perguntando-se sobre seu “sentido”, sobre sua direção, sobre seu caminho. A questão, posta assim, é aventurosa: lancemo-nos, pois, a ela.

Aqui, Juarez Guimarães trata do chamado “espírito do Sion”, os valores e a cultura do PT no ato de sua origem, ao “espírito do Anhembi”, aquele que presidiu a “Carta ao povo brasileiro”, em 2002

Classes e povo na democracia brasileira
Não seria arbitrário afirmar que André Singer se orienta normativamente no complexo trabalho crítico-analítico que empreende em Os Sentidos do Lulismo – Reforma Gradual e Pacto Conservador pelo que chama de “espírito do Sion”, isto é, os valores e a cultura do PT no ato de sua origem. Mas o que é mesmo o “espírito do Sion”?

A um primeiro golpe de vista, centraliza-se no eixo que vai do classismo ao socialismo, do classismo à “democracia pela base”, de modo crítico e alternativo à chamada herança populista que organizou historicamente no Brasil a relação entre classe e nacionalismo, entre classe e participação corporativa no Estado. O PT nasceu, assim, no encontro das forças classistas em formação, da esquerda constituída na sua crítica à tradição pecebista ou petebista, dos movimentos da Igreja da Teologia da Libertação.
A origem do “espírito do Sion”, na formação histórica da esquerda brasileira, encontra-se certamente em Caio Prado Júnior, que em sua obra seminal sobre a formação social brasileira e principalmente em seu livro de intervenção, A Revolução Brasileira, havia sistematizado em uma forma argumentativa contundente a crítica à tradição pecebista, vinculando seus erros de interpretação do Brasil e de estratégia revolucionária à tragédia de 1964. Lá a formação social do Brasil, desde as origens coloniais já em relação com o processo de acumulação primitiva capitalista que se dava no centro, desautorizava a identificação de uma burguesia local dotada de um projeto revolucionário nacionalista, ao mesmo tempo em que o sistema populista chamado de “capitalismo burocrático” era posto em questão em nome de uma estratégia classista de aliança entre os trabalhadores da cidade e do campo. Mas em Caio Prado Júnior a apologia da cultura classista se vinculava ainda a um caminho histórico obstruído de formação da Nação a partir da dignidade dos direitos do trabalho, abrindo-se a partir daí em seu desenvolvimento histórico e em sua projeção internacional ao sentido do socialismo.

Seria importante identificar, portanto, que entre Caio Prado Júnior e o “espírito do Sion” havia Francisco Weffort com sua atualização do sentido crítico ao populismo, com seu elogio às formas classistas novas anticorporativistas experimentadas em 1968 nas greves de Osasco e Contagem. A grande novidade de Weffort em relação a Caio Prado Júnior estava em sua relação com um deslocamento promovido, em muitas frentes, pela cultura universitária da USP – com a nítida exceção de Antonio Candido, que havia colocado a leitura da formação de uma literatura nacional no centro de seu belíssimo A Formação da Literatura Brasileira: a crítica ao nacionalismo. Na leitura do chamado populismo em Weffort, a crítica ao nacionalismo era levada ao centro, denunciando-o como uma ideologia que velava e desorientava os conflitos entre trabalho e capital. A própria revolução de 1930, entendida como um “estado de compromisso” nitidamente inspirado no 18 Brumário de Louis Bonaparte, de Marx, seria vista como fruto de uma situação histórica em que a burguesia não tinha capacidade de dirigir e o proletariado ainda não tinha forças para revolucionar. A cultura classista em Weffort, então, sintomaticamente em semelhança com a cultura da Polop, era oposta ao nacionalismo, pondo-se a chamada “questão nacional” em ponto morto.
Nesse momento fundante do PT, em que o desafio da identidade se confundia com o desafio da crítica e alternativa às tradições históricas do movimento operário e da esquerda brasileira, tinha origem uma força política de enorme poder de imantação e irradiação que iria progressivamente ao centro da cultura política brasileira nas décadas seguintes. Mas seria importante considerar que o “espírito do Sion”, se carregava um sentimento forte de democracia de base, ainda não tinha uma consciência crítica de Estado; se sua inspiração socialista era nitidamente de viés antiestalinista, ainda não discernia nitidamente os valores de um socialismo democrático; enfim, se o sentimento internacionalista estava presente, o caminho de formação da Nação ainda não se colocava no centro da agenda.

A democratização do poder, como meta e como critério de interpretação, é central para estabelecer as conquistas, os limites e as potencialidades das transformações históricas em curso no Brasil.

Os Sentidos do Lulismo e a revolução democrática
A principal carência do instigante e inteligente livro de André Singer Os Sentidos do Lulismo – Reforma Gradual e Pacto Conservador é não ter fixado como centro de gravidade de sua narrativa histórica o tema da democratização do poder. O que esse terceiro ensaio pretende, então, é a partir dessa perspectiva analítica, menos do que estabelecer discordâncias ante as teses centrais do livro, problematizar, reorganizar e enriquecer alguns de seus argumentos.

Em uma experiência tão marcada pela aderência à institucionalidade como a brasileira, à diferença de outros processos em curso na América Latina em que houve ruptura institucional e criação de novos marcos constitucionais, o critério da democratização do poder é fundamental. Lula se tornou presidente nos marcos de um Estado moldado por uma forte herança conservadora, por duas décadas de ditadura militar, por uma transição conservadora, por um Congresso Constituinte no qual as forças de esquerda eram francamente minoritárias, embora tenham fixado na Carta Magna importantes conquistas, e por uma década de reformas neoliberais. Entre o protagonismo histórico dos trabalhadores e do povo brasileiro liderado pelo PT e as forças conservadoras do Estado, há uma contradição central que condiciona toda a experiência. Há aí uma dialética de transformação/conservação que interroga permanentemente, para falar como André Singer, os sentidos do lulismo.
É este centro analítico-normativo – a democratização do poder – que permite, ao mesmo tempo, opor uma narrativa de sentido da experiência na disputa com os liberais (a tese de um PT desfigurado pelo aparelhamento do Estado) e evitar as armadilhas de um pensamento adaptativo que se satisfaz em esboçar a tese de um “novo desenvolvimentismo”, ou, de modo sectário, denunciar a experiência com a retórica fácil mas conceitualmente inconsistente de um continuísmo neoliberal ou até mesmo de uma regressão conservadora.

Em diálogo com os diagnósticos feitos por André Singer sobre o reformismo fraco e gradual mas historicamente inédito em suas proporções conquistado pelos governos Lula, de um modo aproximativo e realista, seria possível formular o diagnóstico sobre a democratização do poder nestes dez anos de experiência.
Compreendendo o Estado como uma totalidade ético-política, inserida no contexto das relações com o sistema capitalista internacional e dotado de um viés classista, poderíamos submeter a avaliação sobre a democratização do poder às sete visadas: o grau de soberania frente ao sistema capitalista internacional, os modos de planejamento e regulação estatal do conflito distributivo entre capitalistas/trabalhadores e setores populares, a democratização do sistema partidário-eleitoral, a participação democrática nos centros de decisão, a democratização dos meios de comunicação, a mudança histórica nos padrões de opressão das mulheres, a mudança histórica nos padrões de opressão dos negros. Essas sete dimensões analíticas deveriam, em seguida, ser analisadas a partir do conceito de hegemonia, isto é, se foi criada ou não uma hegemonia da esquerda na vida política do país ou se temos apenas uma muito importante mas incerta alteração na correlação de forças políticas que buscam expressar as classes sociais fundamentais.

Ao colocar em primeiro plano as conexões entre o rebaixamento da cultura socialista do PT e um vasto processo de inclusão social de setores populares sem a formação de uma consciência anticapitalista, André Singer, em Os Sentidos do Lulismo, põe em relevo uma problemática que expõe os limites da transformação em curso no Brasil.
Os Sentidos do Lulismo e a formação do cidadão socialista
Um dos temas centrais do argumento de Os Sentidos do Lulismo, de André Singer, é a problematização, a partir de um ponto de vista socialista, de qual será o resultado histórico de um vasto processo de inclusão de dezenas de milhões de brasileiros no mercado de consumo e de trabalho sem a formação paralela ou expressiva de uma consciência e de uma cultura socialistas. Se, no campo do PT, a chamada por ele de “alma do Sion”, que revelaria a identidade socialista histórica do partido, encontra-se amortecida pelo “espírito do Anhembi”, no qual foi aprovada a famosa “Carta ao Povo brasileiro”, expressando os compromissos do primeiro governo Lula com a manutenção dos paradigmas de regulação da ordem capitalista, a dinâmica mercantil de inclusão e de promessas de ascensão social apontaria para uma possível e progressiva acomodação do povo brasileiro aos limites de um capitalismo reformado.
André Singer é muito cioso de apontar os limites de consciência popular expressos no processo histórico em curso. Em primeiro lugar, são setores populares em geral com baixa tradição associativa e de experiência de lutas em movimentos sociais. Em segundo lugar, há uma novidade importante na propagação de religião e seitas evangélicas que alimentam uma “ética do sucesso e do enriquecimento”, para retomar os termos da análise clássica de Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em terceiro lugar, os valores de civilização dominantes nos meios de comunicação de massa são claramente aderentes à lógica do individualismo competitivo e possessivo.

Entre a densidade socialista em baixa da cultura do PT e esse novo dinamismo do mercado capitalista de massas no Brasil circularia, então, a imaginação de um New Deal à brasileira, isto é, de uma democratização da sociedade competitiva de classes sem questionamento de seus fundamentos capitalistas.
A corroborar essa avaliação problemática da formação de uma cultura socialista na experiência histórica do lulismo estão as pesquisas que medem a “posição no espectro ideológico dos brasileiros entre 1989-2010”. Enquanto os que se posicionam “à esquerda” nesse período oscilam em torno de 20%, os que se veem “ao centro” oscilam em torno de 19% e os que se posicionam “à direita”  marcam em torno de 37%. Em todos os institutos  pesquisadores – Datafolha, Fundação Perseu Abramo, Criterium –, os resultados apontam sempre uma predominância entre os que se posicionariam “à direita” no espectro ideológico. A identificação do PT por parte de seus apoiadores teria variado de 50% como “esquerda”, 6% como “centro” e 20% como “direita” em 2002 (Criterium) para, respectivamente, 32%, 16% e 35%, em 2010 (Datafolha). Mesmo levando em consideração que tais posicionamentos são, em uma medida importante, influenciados pelo entendimento precário ou mesmo equivocado do que significa “esquerda” ou “direita” por parte de setores populares, eles indicariam, no mínimo, a dificuldade da construção crescente de uma clara autoidentidade socialista por parte dos setores populares.

Um problema na históriaQuem é o povo brasileiro? Qual a singularidade que resulta de sua particular formação social? Para onde caminha o processo de construção de sua identidade?

Essas são perguntas fundamentais que alimentaram os grandes clássicos da formação do pensamento brasileiro, os melhores intérpretes de cultura do Brasil, seus próprios criadores. Não é o caso aqui, nem seria possível neste espaço, retomar esse riquíssimo e complexo debate que fundamenta como enigma a imaginação brasileira das várias gerações.
Mas há, por parte de alguns deles, uma percepção que é muito importante para nossa reflexão aqui. Ao imaginar o brasileiro como “um herói sem caráter”, mestiço e sincrético, Mário de Andrade estava a nos dizer que, no fundo, o brasileiro ainda não havia constituído uma identidade estável e definitiva na formação de sua cultura. Não se trataria de perguntar o “que é o povo brasileiro”, mas mais propriamente o que ele “está sendo”, a partir de suas origens e em uma história inacabada. Antonio Candido, em uma luminosa comparação contrastante com o processo de formação do povo norte-americano, afirmou certa vez que a origem não havia fornecido um sinal de identidade ao povo brasileiro e que esta, em um complexo e inacabado processo histórico, ainda era um vir a ser. Isto é, a formação de nossa identidade era um processo histórico em aberto. Darcy Ribeiro, em suas utopias do povo brasileiro, como formador de uma  civilização multiétnica, generosa e democrática, trabalha também na mesma linha de que o povo brasileiro não é ainda mas é um pode vir a ser.

Retomando esse método de interpretação, trata-se hoje de compreender que o povo brasileiro e suas classes trabalhadoras não são mas estão vivendo momentos históricos decisivos de seu vir a ser. Esta é, por excelência, uma época de transição de consciências. Juízos não podem ser categóricos sem ser simplificadores. Por isso, os argumentos muito inteligentes de André Singer devem ser tomados como problematizadores de uma expectativa ingênua de que toda mudança social progressiva leva à consciência socialista.
Do nosso ponto de vista, essa consciência crítica da formação de uma consciência socialista no Brasil dos tempos do lulismo deve ser equilibrada também por uma consciência crítica dos impasses históricos da formação de uma consciência liberal de massas no Brasil, isto é, de uma consciência que sedimenta articuladamente valores capitalistas em sua visão de mundo.

O liberalismo aqui – como bem demonstrou Luiz Werneck Vianna em seu clássico, Liberalismo e Sindicato no Brasil, não formou historicamente uma cultura fordista como nos EUA do pré-guerra e em países europeus do pós-guerra. Produção e consumo de massas, individualismo possessivo e horizontes liberais não foram aqui produzidos por um partido liberal em uma experiência histórica de inclusão das classes trabalhadoras. Atrofiado historicamente desde sempre diante da questão social – e sua expressão regional, a questão nordestina –, o liberalismo brasileiro sempre muito cioso de seus ares do mundo também nunca enfrentou a questão nacional. Essa dupla falta – na questão social e na questão nacional – interditou historicamente, como nos ensinou Florestan Fernandes em A Revolução Burguesa no Brasil, a alma democrática do liberalismo brasileiro, empurrando-o para as formas autocráticas de poder.  Parafraseando Marx de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, “liberdade, igualdade e fraternidade” acabaram sendo para a porção dominante do liberalismo brasileiro, que foi decisiva na construção do golpe civil-militar de 1964, “infantaria, cavalaria e artilharia” contra os pobres e os trabalhadores.
Problematicidade de uma cultura socialista classista clássica, problematicidade de uma cultura liberal hegemônica: como compreender o vir a ser do povo brasileiro?

Cinco mediações republicanasEm nossos estudos sobre a cultura e o pensamento brasileiros, que se iniciaram de forma mais sistemática desde meados dos anos 1990, temos formulado que a anima do atual grande ciclo histórico de organização, lutas e conquistas dos trabalhadores e do povo brasileiro alimenta-se de, pelo menos, cinco tradições antiliberais e de sentido geral republicano.

A primeira delas é o nacional-desenvolvimentismo, exemplarmente expressado na vida e na obra de Celso Furtado, que contribuiu decisivamente para formar a nossa autoconfiança nas possibilidades construtivas da nação democrática, um certo sentido de desenvolvimento a partir da superação do subdesenvolvimento histórico e estrutural.
A segunda é o cristianismo social que se formou desde os anos 1950, a partir da magnífica trajetória e obra de dom Helder Câmara, passando pela notável obra libertária de Paulo Freire, até se expressar na linguagem muito alta da Teologia da Libertação, com Leonardo Boff, as militâncias proféticas de tantas lideranças como dom Pedro Casaldáliga, dom Paulo Evaristo Arns e dom Tomás Balduino, e as comunidades eclesiais de base. Apesar de perseguido pela cúpula conservadora da Igreja Católica nas décadas recentes, esse cristianismo continua a soprar com muita força nas bases em movimento da sociedade brasileira.

A terceira tradição é o socialismo democrático, reconhecida por André Singer, na “ala do Sion” do Partido dos Trabalhadores, que alimenta um sem-número de movimentos classistas e populares, em seu pluralismo de tradições, incluindo aí aquelas correntes e partidos em processo de ruptura com a tradição stalinista que formou o principal partido da esquerda brasileira no pré-1964.
A quarta seria representada por “liberais republicanos” ou “liberais cívicos”, isto é, que se nomeiam liberais mas críticos e em pugna permanente com os liberalismos realmente existentes no Brasil, em seus economicismos, em seus sentidos antipopulares e refratários a uma cultura de direitos humanos e democráticos. Um exemplo magnífico dessa tradição é o grande pensador e lutador pelas liberdades democráticas Raymundo Faoro, o principal jurista brasileiro da segunda metade do século 20.

A quinta seria aquela representada pelo povo brasileiro mesmo, em sua cultura popular, negra e mestiça, em seus comunitarismos, seus quilombos e religiões, em sua festa e fé, em seus comoventes testemunhos de que uma outra vida é possível, em liberdade e em fraternidade. De Pixinguinha a Paulinho da Viola, de Caymmi a Gilberto Gil, de Gonzagão a Gonzaguinha, de carnavais a maracatus, de candomblés às festas do cristianismo popular, de garrinchas aos capoeiras, essa tradição é muito viva e resistente, em sua célula erótica matriz, a conformar a personalidade e os destinos do humano a uma acumulação egótica de poderes e riquezas.
A consciência socialista dos brasileiros, se vier a se desenvolver, não é externa a esses antiliberalismos, mas, ao contrário, só pode vir a ser um transcrescimento deles. Se for democrática, ela saberá inclusive respeitá-los em seu pluralismo de matrizes e de futuros.

Nosso ponto de vista é que o lulismo é, em seu sentido histórico profundo, uma experiência sintética dessas tradições em movimento, aberto a contradições e múltiplos desdobramentos. Essa liderança, originada nos movimentos classistas do trabalho e na cultura do socialismo, tornou-se brasileira de raiz em sua expansão histórica.
Mas por qual síntese da cultura do povo e dos trabalhadores brasileiros lutamos?

A formação do cidadão socialista
Essa passagem de culturas antiliberais a uma consciência socialista democrática só pode historicamente acontecer no Brasil em um processo de aprofundamento da revolução democrática. Isto é, só pode ser o resultado do próprio processo de autoformação do povo brasileiro em sua conquista de liberdade, de democratização do poder político em todas as suas dimensões econômicas, sociais e culturais.

Lutamos, então, para que essa consciência de liberdade seja anticapitalista, contra o monopólio da propriedade privada dos meios de produção e a mercantilização da vida social, inclusive e principalmente da própria exploração dos trabalhadores. Uma consciência de liberdade que conceba como públicos, para todos, em igual dignidade e valor, os bens e serviços necessários à reprodução da vida social.
Queremos que essa consciência de liberdade seja feminista, porque se não o for isso será uma caricatura de socialismo.

Desejamos que essa consciência de liberdade seja multiétnica, tenha todas as cores e todas as caras, todas as culturas, do povo brasileiro.
Aprendemos que essa cultura da liberdade deve ser ecológica, deve respeitar e amar a vida em todas as suas manifestações, deve criar novas racionalidades e paradigmas da ciência e do desenvolvimento.

Trabalhamos para formar uma linguagem pública da liberdade que seja internacionalista, solidária com as lutas dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo, a começar pelos povos da latino-américa e do continente africano.
Não queremos, enfim, separar mais a condição cidadã – da liberdade, dos direitos humanos e da soberania popular – da consciência socialista porque uma é condição da plenitude da outra.

Temos certeza que essas razões, esses valores, esses sentimentos são de muito forte receptividade na consciência do povo brasileiro, em sua diversidade e em seu pluralismo. A revolução democrática é exatamente esse processo histórico da autoconstrução do cidadão e da cidadã socialistas brasileiros.
Juarez Guimarães é cientista político, professor na Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate

Publicado na revista Teoria e Debate