Marx, pensador da democracia – parte 1
Por que ler Marx hoje quando as classes sociais foram substituídas pelas tribos, as etnias e outras formas de reivindicações identitárias? Para que ler Marx quando o próprio termo proletariado desapareceu do discurso, inclusive no seio do partido comunista? Marx não é um significante sem significado, um pensamento morto para o nosso presente que não propõe nenhum programa aos excluídos – que substituíram os explorados e oprimidos de antes? Outro fato importante que parece prestar conta do pensamento de Marx: o tribunal da história – o colapso dos regimes comunistas no Leste não é para a filosofia um acontecimento entre outros. Esse colapso é ao mesmo tempo o colapso econômico e moral de um pensamento que justamente via na economia o motor da história humana, e que foi julgado no próprio terreno onde Marx desejaria que o julgasse. A realidade social recusou se curvar a esse projeto do “reino da liberdade” (1). Com esse fracasso que está à altura da utopia derrotada, nenhum filósofo pode se alegrar. Pois ele é também o fracasso da filosofia em sua vontade, constantemente afirmada desde Platão, de transformar o mundo. Tudo nos parece dizer – o acontecimento do malogro comunista nos países do Leste, a mídia – que aqueles que continuam a ter um interesse pelos textos de Marx são uma manifestação dos sintomas de uma doença intelectual incurável: a fossilização do intelecto nas categorias dos pensamentos ilusórios e totalitários.
Mais precisamente, esse fracasso da transformação do mundo exige de nós a reflexão sobre a interpretação que Marx nos oferece sobre a política. Sobretudo, essa reflexão sobre a interpretação marxista da política não pretende ser uma enésima releitura de todo o pensamento de Marx.
Não! Trata-se bem mais modestamente de assinalar alguns pontos conceituais nos textos de Marx que permitam uma reflexão interessante e sempre atual sobre a natureza da democracia. Nosso Marx não será nem o doutrinário que anuncia uma concepção de mundo, nem o messias que propaga uma nova religião de vocação histórica, mas um teórico da democracia. Eu sou consciente de que esse Marx pode ser surpreendente – mesmo sendo um Marx diferente -, pois parece evidente que nele a política remete ao jogo da superestrutura e que “a existência do Estado e a existência da servidão são indissociáveis” (2). De fato, Marx desenvolve um discurso negativo em relação ao Estado. Ele é apenas “uma comunidade ilusória”, podemos ler em A Ideologia Alemã, que deseja ocultar a dominação da classe economicamente mais poderosa. Certo, mas isso quer dizer que Marx não desenvolveu um discurso positivo sobre a política? E isso significa que a política está eternamente condenada a ser a máscara de uma dominação de origem econômica ?
A afirmação sobre o desaparecimento do Estado não é nem sinônimo de eclipse da política em Marx, nem a recusa de se perguntar sobre a possível aliança entre a liberdade e a política. Essa aliança existe muito bem em Marx. E essa existência se apoia em uma crítica da democracia. Crítica não no sentido de uma negação, mas no sentido do discernimento: discernir nas formas históricas da democracia as condições de possibilidade da liberdade política. Essa análise marxista da democracia não caiu com o muro de Berlim, e é sempre atual para nós. Ela nos permitirá indagar sobre esse paradoxo contemporâneo: tornar o povo soberano e lhe recusar a participação no poder. Se o pensamento de Marx pode ter perdido a sua virtude de programa para uma revolução mundial, ele tem o mérito de propor uma retificação dos conceitos que nós utilizamos para legitimar a nossa democracia. O que permanece vivo em Marx é talvez menos um pensamento econômico visando à transformação do mundo do que uma interpretação da democracia que nos ajuda a retificar
certos abusos da linguagem relacionados às tendências oligárquicas de nosso presente.
Nosso discurso terá duas partes e não três como desejaria um pensamento marxista obcecado pela síntese dialética.
– A primeira tratará da definição crítica da democracia e da definição original da política que ela enseja.
– A segunda tratará de avaliar os efeitos dessa definição sobre a nossa política atual.
Notas
(1) O Capital, volume III.
(2) Manuscrits de 1844, Éditions sociales, 1972, p.88. [Ver versão no site www.marxists.org – N. T.]