Dez anos pós-neoliberais são marcados por gestos inaugurais
Nesta segunda-feira à noite, o aquário do Centro Cultural São Paulo recebeu o público para um espetáculo diferente daqueles que costumam lotar o teatro de arena. Embora tenha no palco o sociólogo Emir Sader e o economista Márcio Pochmann, quem esteve ali filosofou. Não apenas pela presença militante rara e contundente de Marilena Chauí, mas principalmente pelos raciocínios e sínteses aguçadas do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
É com Lula que podemos entender a essência de seu governo e a lógica do país. Sarcástico com a imprensa conservadora brasileira, ele se questionou como esses grandes editores de jornal, “daqueles caras porretas que têm por aí”, explicam extraordinários índices econômicos mantidos sucessivamente, durante dez anos, que iam contra todas as regras ortodoxas da economia neoliberal, tais como os gastos com programas sociais, reajuste salarial, geração de empregos, estabilidade da previdência, inflação controlada e pagamento da dívida externa.
“Eles devem achar que é muita sorte nossa”, disse ele causando risos. “Agora, mesmo que sejamos todos um bando de incompetentes e tudo não passe de um golpe de sorte, pelo amor de Deus, gente, não votem em ninguém que não tenha sorte”, afirmou ele, provocando ainda mais reações da plateia, inclusive dos repórteres da grande imprensa. Esses, antes do evento, ligavam para seus editores para avisar que a enorme fila de espera era de fãs, que carregavam sacolas com livros, ansiosos para conseguir um autógrafo do ex-presidente. Portanto, dificilmente haveria alguma manifestação de protesto contra Lula, conforme haviam previsto.
Celebração do sucesso
Foi assim, com plateia composta principalmente de estudantes e professores universitários, desses que lêem Chauí, Sader e Pochmann, que o evento foi capaz de fazer uma apresentação rápida, mas nítida, do livro: Lula e Dilma, dez anos de governos pós-neoliberais. Uma coletânea de textos de personalidades intelectuais que analisam diferentes aspectos daqueles governos. O lançamento foi organizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e pela Boitempo Editorial.
O evento foi uma celebração dos sucessos dos governos democráticos e populares, ao transformar o país, após tantas décadas de fracassos neoliberais. Uma celebração carregada de ironias contra aqueles que fizeram “o diabo” para a coalizão de centro-esquerda fracassar. “Quando o Lula venceu a eleição, um ministro da ditadura disse que é bom que o PT se eleja, fracasse e deixe a gente governar o país”, citou Sader, lembrando o clima de acirramento eleitoral.
O sociólogo também chutou o morto ao se questionar o que deve imaginar o ex-presidente Fernando Henrique com seus “milhões de inempregáveis”, quando vê o Brasil próximo do pleno emprego. Lembrando que o livro organizado por ele já é um segundo balanço literário desses governos, ele se perguntou: Cadê o balanço do governo deles? “Não há, porque não é teorizável, porque os pacotes vieram de fora, formatados pelo FMI”, afirmou, prometendo que o próximo livro será o balanço da segunda década de governos pós-neoliberais.
Pochmann revelou como é singular a experiência de analisar um governo de dez anos com unidade programática. Ele lembrou que o país tem no máximo 50 anos de experiência democrática, dentre seus 500 anos de história. “Foi preciso muita coragem começar distribuindo renda para fazer a roda da economia avançar”, afirmou o economista, referindo-se à ousadia do governo Lula ao contrariar a cartilha do ‘desenvolver o país primeiro para distribuir depois’.
Pochmann citou os números mais surpreendentes e reveladores da economia nesses dez anos, afirmando a necessidade de não esquecê-los.“Falava-se no início do século do silêncio dos intelectuais. Agora, os intelectuais estão fazendo barulho. Mas é o barulho do compromisso com o povo e com a democracia que avança no país.”
“A maldição da classe média”
Chauí não deixou por menos. Sem as sutilezas filosóficas das aulas emocionantes que costuma dar em eventos desse tipo, ela foi direto ao assunto. Primeiro, ela usou o Bolsa Família para exemplificar a “revolução feminista” que vem ocorrendo no país, ao direcionar o recurso para a mulher, e depois o exemplo do ProUni, para explicitar o racismo que emergiu com força na sociedade, ao encher as salas de aula do ensino superior de pobre e negros.
No entanto, Chauí explicou porque não aceita que o Governo Lula tenha convertido as classes trabalhadoras mais pobres do país em classe média, como costuma-se dizer. Para a filósofa, a classe trabalhadora apenas passou a ter acesso a produtos de consumo e a direitos sociais que antes não tinha, como foi o caso da classe trabalhadora europeia nos anos 1960. Essa nova classe trabalhadora é resultado das políticas econômicas contra o neoliberalismo, na opinião dela. Para ela, essa nova classe é, majoritariamente, o sujeito político da próxima década.
Ela explicou os motivos teóricos pelos quais chamam essa classe trabalhadora detentora de direitos e capacidade de consumo de nova classe média. São argumentos baseados nos critérios de institutos de pesquisa para a definição de níveis de consumo e público alvo. Mas, para além de explicações teóricas, a filósofa afirmou que tem razões pessoais para não admitir que a nova classe trabalhadora, após anos de luta e conquistas, tenha se convertido em classe média. “Eu odeio a classe média!” enfatizou ela, com letras maiúsculas.
Chauí sugere que a classe média seja um conceito criado para abranger tudo que há de mais conservador, reacionário e arrogante. Para ela, a classe média não tem função econômica, mas ideológica, como correia de transmissão das ideologias das classes dominantes. Ela costuma dizer que, mesmo os intelectuais pertencem, hoje, à classe trabalhadora, já que técnica e ciência viraram forças produtivas. “A classe média é uma abominação política, porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante. Fim”, concluiu ovacionada.
Gestos inaugurais
Estimulado pela filósofa, Lula foi em busca dos pequenos gestos que definem seu governo, em essência. Citando uma lista de grandes realizações de seu governo, Lula afirmou que quando perguntam qual foi seu legado para o país, ele prefere dizer que foi mostrar que é possível ser presidente da República e falar de igual para igual com o cidadão mais simples e pobre.
Daí, a lista de momentos afetivos que o ex-presidente guarda na memória como exemplos de quebra de preconceito, como quando recebeu 500 pessoas com deficiência visual acompanhados de seus cães-guia no Palácio do Planalto, para mostrar que não era possível continuar proibindo pelo país a circulação desses cães, impedindo a acessibilidade daquelas pessoas. “Lembro o dia em que recebi os hansenianos e beijei cada pessoa. Foi uma choradeira coletiva”, afirmou ele, sobre o preconceito milenar que sofrem estas pessoas por causa da doença mutiladora.
Ou quando recebeu os sem-teto no mesmo local, que sempre foi o espaço privilegiado das elites. “Quando foi dada a palavra para eles, disseram que não queriam falar, pois não tinha mais nada pra dizer. Estar aqui dentro do Palácio, em pé de igualdade, é de um simbolismo que não tem preço”, explicou Lula.
Para ele, esta foi uma conquista de uma parte da sociedade que só entrava no discurso para virar estatística ou só era lembrada em época de eleição. “Para mim, a grande conquista foi que a peãozada acreditava que um deles estava lá na Presidência da República”.