I – A definição crítica de democracia em Marx: aposta por uma determinação original da política

Já na nossa introdução sublinhamos que parece difícil fazer do pensamento de Marx um terreno fértil para a caracterização e a realidade da democracia. De fato, Marx não apenas parece dizer que toda política, incluindo aquela que se apresenta como democrática, serve de biombo à dominação econômica, mas também que ela, sobretudo e de forma mais inquietante se coloca sob a bandeira da ditadura, a da ditadura do proletariado. Nós estaríamos então frente a uma dupla impossibilidade de pensar a democracia com Marx, pois seu pensamento se colocaria precisamente sob uma recusa dupla: recusa de fazer – da política uma atividade autônoma, já que ela é o ventríloquo das relações de classe, e recusa do sistema democrático, muito rapidamente associado à burguesia, substituído por ele pela ditadura do proletariado. Será preciso então mostrar que:

– Primeiro, Marx desenvolve uma definição original da política que não se reduz à máscara ideológica.

– Segundo, que a expressão ditadura do proletariado pode ter um sentido surpreendente que o desconecte de qualquer ideia totalitária para se aproximar de uma experiência democrática.

Nós começaremos pelo segundo ponto e a análise dessa expressão ditadura do proletariado. Efetivamente, ao se deslocar essa expressão de seu solo filosófico original logo se estabelece um paralelo entre o pensamento de Marx e o totalitarismo. Não há dúvida de que os países do Leste Europeu desenvolveram sistemas totalitários. Mas o pensamento político de Marx nos parece animado por uma lógica que transparece nesta afirmação: “A democracia é a essência de todas as constituições políticas” (3). A forma política designada pela ditadura do proletariado, para Marx, não pode estar em contradição com a democracia que é para ele o princípio de toda política visando à igualdade e à liberdade.

Essa afirmação pode receber a crítica de uma certa visão althusseriana dos diferentes textos de Marx. De fato, pode-se nos replicar que a Crítica da filosofia do direito de Hegel seja um texto de juventude. Texto de juventude significando para a vulgata althusseriana um texto ainda vinculado ao pensamento humanista, quer dizer, um texto pequeno-burguês. Nós respondemos afirmando que nos demarcamos dessa periodização realizada por Louis Althusser entre a fase humanista pequeno-burguesa e a fase anti-humanista e científica da obra de Marx. A razão disso é simples: o conceito de democracia que Marx elabora em 1843, em sua obra Crítica da filosofia do direito de Hegel encontra seus prolongamentos conceituais em textos bem posteriores, como aquele de 1871, A guerra civil na França. Para nós, entre esses dois textos ocorre o desenvolvimento consequente de uma mesma tese: a única maneira de realizar a liberdade é através de uma república democrática. Ou, caso se queira dar a palavra a Marx: “o partido não pode esquecer esse ponto fundamental, a saber: o reconhecimento daquilo que se chama a soberania do povo ocorre apenas em uma república democrática” (4). Para aqueles que desejam ter uma confirmação dessa ideia pelos textos, se não mais canônicos, pelo menos mais conhecidos, ouçam  Marx em O manifesto do partido comunista: “O objetivo da revolução proletária é a conquista da democracia” (5).

E é apenas por um esclarecimento do que Marx entende por democracia que se pode criar um terreno filosófico e político para a ditadura do proletariado. Parece-nos que Marx constrói seu conceito de democracia em três tempos:

1º – É um conceito polêmico, que sobretudo remete a uma crítica da modernidade que transforma a política em burocracia, termo bastante presente em Marx desde 1843. Esse momento tem por objetivo ligar as palavras às coisas: a questão política não se reduz apenas em saber se os conceitos de poder do povo, de vontade do povo são legítimos, mas sobretudo se eles são reais, se provocam efeitos na realidade.

2º  –  É um conceito positivo. Marx oferece uma definição positiva da democracia afirmando que ela é a essência de todas as constituições políticas. Ele oferece os elementos institucionais que definem esse regime político enquanto tal.

3º  – É uma realização histórica. Ao afirmar isso não estamos querendo dizer que a democracia seria um ideal que imanta o tempo histórico, ou seja, que toda a história seria justificada pela realização da democracia comunista. Não! Essa democracia não é um fim, ela se realiza na história com a Comuna de Paris de 1870. A Comuna, na visão de Marx, é essa experiência histórica de realização de uma República democrática.

Comecemos pelo primeiro momento da análise marxista da democracia.

Notas

(3) Critique du droit politique hégélien, Éditions sociales, Tradução de Baraquin, 1975.
(4) Critique des programmes de Gotha et d’Erfurt, 1875. Texto publicado pela Biblioteca de Ciências Sociais da Universidade de Quebec, disponível em www.marxists.org, p. 33. (O leitor brasileiro poderá consultar a versão em português da Crítica ao programa de Gotha no mesmo site – N. T.).
(5) Le manifeste du Parti communiste, 10/18, 1962, p.44. (Ver versão em português no site www.marxists.org – N. T.).