Marx, pensador da democracia – parte 3
1- Democracia, conceito polêmico
Essa polêmica pode ser apresentada assim. Na Crítica do programa de Gotha, Marx afirma:
“A liberdade consiste em transformar o Estado, organismo posto acima da sociedade, em um organismo inteiramente subordinado a ela” (6). Marx constrói seu conceito de democracia contra aquele que chama, ainda no mesmo texto, de “a democracia vulgar” (7). Esse tipo de democracia se contenta em proclamar os conceitos democráticos mantendo inteiramente um sistema de separação que priva o povo de qualquer poder efetivo. De fato, como sublinha Marx: “não é ligando de mil maneiras a palavra povo com a palavra Estado que se fará avançar o problema de um só salto” (8). Essa ligação será sempre estéril, pois se trata de refletir sobre “essa máquina do Estado” (9), máquina que retira da sociedade os seus interesses comuns para transformá-los em objeto da atividade governamental, que serão administrados cuidadosamente pelos burocratas, dirão os especialistas. Desnecessário dizer que em Marx essa separação política está sempre ligada com a divisão da sociedade em classes sociais. E essa divisão favorece uma política de classe, mais que a criação de classes políticas: “Após o surgimento da grande indústria e do mercado mundial, a burguesia finalmente apoderou-se da soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é outra coisa que um comitê que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa” (10). Essa política de classe cria uma estruturação política particular do Estado que Marx analisa desde 1843 em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel. Convém assinalar alguns pontos críticos interessantes para se compreender a construção marxista do conceito de democracia e analisar o nosso próprio presente.
Precisamente nesse texto, Marx não se limita a essa apresentação conveniente do marxismo: o Estado moderno não seria senão uma projeção imaginária da burguesia. Muito ao contrário, ele nos oferece a constituição do Estado moderno: notadamente, o lugar importante da burocracia e a supremacia do poder executivo sobre o poder legislativo. A lógica do Estado moderno é a de ser um mecanismo político separado de qualquer controle popular e constituido como instância transcendente. Sobre isso, Marx nos diz: “A abstração do Estado enquanto tal pertence apenas aos tempos modernos, pois a abstração da vida privada aparece apenas nos tempos modernos. A abstração do Estado político é um produto da modernidade.” (11). A reflexão política é essencialmente histórica, pois nela se constituem as formas políticas inéditas: assim é a constituição do Estado moderno que instaura uma ruptura com todos os outros tipos de Estado. Os Estados feudais também se apoiam na separação entre os indivíduos e o poder real, mas eles não pretendem criar uma mediação. O que é precisamente moderno no novo tipo de Estado é que, se apoiando sobre uma separação entre a vontade dos governados e dos governantes, ele justifica essa separação pela distinção entre o saber e a vontade. E a justificação se dá com o nascimento e o desenvolvimento da burocracia. Desse modo, a burocracia se apresenta como a mediação entre a vontade de um povo frequentemente irracional e o conhecimento das verdadeiras necessidades da sociedade. Para se entender a necessidade da burocracia, é preciso fazer uma breve passagem pela crítica que Marx faz à representação política.
O homem da sociedade moderna é o homem da sociedade civil: é um operário, um professor, um comerciante. Por consequência, é um homem que se define pelas características concretas e empíricas, pois é um homem que se inscreve em uma atividade particular, em uma profissão particular. Logo, essas particularidades do trabalhador estão excluídas da política, do Estado, já que há duas categorias de homem que ascendem à política e ao Estado.
1 – Os primeiros são os gestores do Estado. Os gestores do Estado e os representantes dos cidadãos não pertencem à classe dos trabalhadores. Essa não-representação dos interesses dos trabalhadores priva a própria noção de representação de sua dinâmica de figuração. De fato, a noção de representação é animada por uma dupla lógica: uma lógica do mandato e uma lógica da figuração. Aos olhos de Marx, uma representação que queira assumir sua verdadeira dimensão democrática deve jogar em duas dimensões: os diferentes mandatos políticos deveriam representar todos os componentes sociais da sociedade civil. O Estado moderno e representativo é fundado apenas sobre a primeira acepção do termo: trata-se de selecionar por meio de eleição o pessoal escolhido para administrar o Estado. Não existe, pois, a vontade de realizar uma certa similaridade entre os representantes e o povo. Esse viés representativo, próprio do Estado moderno, leva Marx a dizer que ele se apoia sobre uma mentira política: “O interesse do Estado realiza-se aqui, formalmente, mais uma vez como interesse do povo, mas ele não deve ter senão uma realidade formal. Ele tornou-se uma formalidade, uma cerimônia, a mentira de que o Estado é o interesse do povo” (12).
2 – A segunda classe de homens a ascender na política não é ainda o trabalhador, o operário, mas o eleitor, quer dizer, o cidadão abstrato que a cada cinco anos vai depositar uma cédula com um sim ou um não, ou com esse ou aquele nome. Esse cidadão é bem abstrato, pois uma vez passada a eleição, ele é disprovido de qualquer poder político de intervenção. É isso que Marx entende quando ele afirma, na mesma passagem, que “a eleição é uma cerimônia vazia”. Em Sobre a questão judaica, ele acrescenta: “No Estado moderno, o homem é um membro imaginário de uma soberania imaginária” (13).
A conclusão de Marx é que o sistema representativo – longe de ser precisamente representativo – é separador: ele é um dispositivo político que cria uma distância entre os gestores do Estado e o povo. Marx pode então afirmar: “A representação do Estado moderno faz abstração do homem real” (14). Marx, porém, não para aí.
É o que veremos na próxima parte deste ensaio.
Notas
(6) Op. cit., p.33.
(7) Ibidem.
(8) Ibidem, p.32.
(9) La guerre civile en France, texto publicado pela Biblioteca de Ciências Sociais da Universidade de Quebec, e disponível no site www.marxists.org p.21. (Há versão em português no mesmo site – N. T.).
(10) Le manifeste du parti communiste, p.21.
(11) Critique du droit hégélien, p.71.
(12) Critique du droit politique hégélien, p.115.
(13) La question juive, p.7, texto publicado pela Biblioteca de Ciências Sociais da Universidade de Quebec, disponível em www.marxists.org. (Ver a versão em português no mesmo site – N. T.).
(14) Critique du droit hégélien, p.205.