Como vimos na parte anterior deste ensaio, o Estado moderno deve gerir a distância entre os gestores do Estado e o povo, deve justificá-la e não negá-la simplesmente, recobrindo-a por um discurso ilusório: “Eu, o Estado, sou o povo”. Assim, uma questão se coloca em relação ao pensamento de Marx: ele tem dois enfoques sobre o Estado moderno.

O primeiro, mais conhecido, é o da política que utiliza um discurso ideológico visando a encobrir uma dominação. É verdade, como acabamos de ver a respeito da representação. Trata-se aqui de esconder o fato de que ele apenas representa e defende certos interesses.

O segundo: caso o Estado queira ter duração política, ele não pode se contentar em manter essa ilusão, ele deve desenvolver uma outra estratégia: elaborar um discurso legitimando o viés representativo; isso vai ser, como veremos, a tarefa da burocracia. Mas então há contradição, tensão no próprio seio do pensamento de Marx? Talvez. Mas pensamos que Marx é sensível à elaboração de um novo discurso, aquele da burocracia que tende a suplantar o outro da máscara da generalidade. Ou pelo menos que o discurso legitimando a burocracia nos propõe esse registro da representação: o interesse geral deve ser confiado aos especialistas.

Analisemos, pois, com Marx a construção desse novo discurso por meio do desenvolvimento da burocracia.

A burocracia estabelece uma disjunção no seio da política entre a vontade e o saber. A política realça menos a vontade e mais o saber. Então, a questão determinante a ser levantada é a seguinte: quem detém esse saber sobre a sociedade? Evidentemente não é o povo, pois como nos diz Marx ele é considerado como “não sabendo o que quer” (15). A legitimação de um corpo de burocratas – nos dirão os especialistas – projeta a ideia de que para verdadeiramente saber-se o que se quer é preciso possuir um conhecimento, uma inteligência política, econômica que, precisamente, o povo não possui. Por consequência, o Estado moderno necessita de altos funcionários com uma inteligência profunda e englobante da natureza das istituições políticas e das necessidades reais do Estado.

Desse modo, para Marx, a burocracia ao tornar-se o conhecimento e a autoconsciência da sociedade tem por função “auto-administrar a sociedade civil burguesa” (16). Essa administração da sociedade se define como sendo “a vontade e a força do Estado” (17). Ao se definir dessa maneira, a burocracia não somente considera o povo uma massa irracional incapaz de ter um conhecimento adequado sobre o real, como também pensa que a sociedade é incapaz de tomar iniciativa, desprovida de finalidade própria. É por essa razão que a burocracia coincide com essa pretensão política: detendo sozinha o conhecimento sobre a sociedade, ela pretende deter o saber sobre as finalidades do Estado e da sociedade. É o que nos mostra Marx nesse texto exemplar:

A burocracia se considera como o fim último do Estado. Os fins do Estado se transformam em fins da repartição e os fins da repartição em fins do Estado. A burocracia é um círculo  do qual ninguém escapa Sua hierarquia é uma hierarquia do saber. A cúpula confia aos círculos inferiores a visão do singular e os círculos inferiores  retribuem confiando à cúpula a visão do universal e, desse modo, eles se enganam reciprocamente” (18).

Com essa pretensão, a sociedade aparece como o objeto de sua atividade: todo o real deve ser planejado segundo seus regulamentos e seu conhecimento. É por isso que ela se define como a causa primeira dessa sociedade: “A burocracia quer fazer tudo, ou seja, fazer de sua vontade a primeira causa O burocrata vê no mundo apenas o simples objeto de sua atividade” (19).

Parece evidente que a lógica burocrática deseja legitimar o fato de que o povo deva ter apenas um poder eleitoral: ele deve eleger a classe dirigente e confiar a ela o cuidado de avaliar as verdadeiras necessidades da sociedade. Mas também,colocando sua autoridade em um princípio de saber que o conjunto dos cidadãos não possui, a burocracia não é favorável a um espírito crítico a suas decisões. Toda burocracia, toda lógica do especialista é favorável a uma política de segredo: “O espírito da burocracia é o segredo, o mistério guardado no interior da burocracia pela hierarquia, e no exterior da burocracia por sua natureza de coorporação fechada. Toda manifestação do espírito político e do espírito crítico é vista, então, pela burocracia como uma traição para com o seu mistério” (20). Com essa reflexão sobre a burocracia, Marx nos sensibiliza para essa ideia. Ocorre a instauração de um novo tipo de oligarquia que pretende dirigir, não em razão do nascimento ou de um estatuto hereditário, mas em razão de sua aptidão pela gestão, da posse de um saber.

Nós estamos diante de uma dupla estratégia para afastar o povo de uma real participação política: apresentar toda ação governamental como voltada para o bem comum, evitando qualquer intervenção dos cidadãos, e apresentar essa ação como sendo necessariamente dirigida por especialistas que dispõem do conhecimento da sociedade sobre ela mesma. Essas duas estratégias continuam operando ainda hoje: especialmente por ocasião do referendo sobre o tratado europeu.

Se a democracia vulgar repousa sobre uma separação entre o particular e o universal, sobre uma distância sempre mantida entre o povo e a participação no poder, a verdadeira democracia suprime essa distância. Passemos ao conceito positivo da democracia.

Notas

(15) Critique du droit hégélien, p.112.
(16) Ibidem, p.89.
(17) Ibidem, p.90.
(18) Ibidem, p.91-92.
(19) Ibidem, p.93.
(20) Ibidem, tradução Papaionnou, 10/18, 1976, p.144.