Relato de Istambul: “O medo foi derrotado”
Em tempos sensíveis, há que ser delicado. A violenta repressão a um protesto singelo contra a destruição do Parque Gezi, junto à Praça Taksim, para a construção de um empreendimento imobiliário, pode derrubar o governo turco. Os confrontos contra ambientalistas transformaram-se num dos maiores movimentos de revolta contra o Governo de Taryiip Erdogan, no poder há mais de 10 anos. Seja a destruição do parque, a proibição contra manifestações no 1o. de maio, ou a restrição ao consumo e venda de bebidas alcoólicas, os motivos para protestar não param de aparecer, espalhando insatisfação por todo o país. Várias centrais sindicais turcas decidiram, esta segunda-feira, marcar greve. A condenação da violência governamental e os ataques à democracia estão na primeira linha da denúncia das organizações sindicais.
A violência do governo foi tal que, segundo relatos da imprensa internacional, muitos estabelecimentos e hotéis abriram as suas portas para os manifestantes conseguirem água e abrigo, mas em alguns casos a polícia disparou também latas de gás para dentro dos edifícios, como salas de espera de hospitais, bem como para as estações de metro (veja imagens no vídeo abaixo). Estudantes portugueses em Istambul confirmaram à RTP que o acesso às redes sociais como o Facebook ou o twitter esteve bloqueado e que apenas os canais de televisão internacionais passavam as imagens dos protestos em direto na televisão. O silêncio na mídia tia terá sido um dos motivos para que a revolta dos manifestantes se virasse para os carros de emissoras de televisões.
Até quem ficou em casa contribuiu com seu gesto de protesto: durante o dia, muitos habitantes de Istambul batiam tachos e panelas à janela, e à noite apagavam e acendiam as luzes de casa, criando um efeito espetacular, visível em toda a cidade.
Por seu lado, o governante acusa a oposição de estar por detrás dos protestos e promete não recuar no projeto de transformação da praça Taksim nem nas restantes leis que ameaçam as liberdades individuais. “Sé é para organizar manifestações, então quando eles juntarem 20 pessoas, eu vou juntar 200 mil. Onde eles juntarem 100 mil, eu mobilizarei um milhão de membros do meu partido”, afirmou Tayyip Erdogan após as manifestações em 48 cidades turcas.
Leia o relato na primeira pessoa de um fim de semana a ferro e fogo nas ruas de Istambul, por Kivanç Eliaçik, diretor do Departamento de Relações Internacionais do DISK – Confederação dos Sindicatos Progressistas da Turquia – e membro da plataforma para salvar o parque Gezi da Praça Taksim:
O meu sindicato faz parte da plataforma com outras associações profissionais e de bairro. Esta plataforma contesta as obras na praça Taksim que irão demolir o parque que lá existe. Foi por isso que pude seguir as campanhas sobre a praça Taksim.
Quando soube que as escavadoras chegaram para cortar as árvores do parque, corri para lá. Em vez de acabarem com esta construção ilegal – o tribunal tinha suspenso o projeto de construção – a polícia usou gás lacrimogéneo contra as pessoas que queriam salvar as árvores.
Na primeira noite, levámos tendas e sacos-cama e fomos para o parque. Cantámos e conversámos até de marugada. Milhares de pessoas juntaram-se ali essa noite e havia um concerto no palco. Discutíamos a reabilitação urbana, destruição ambiental, os direitos humanos e dos trabalhadores. Todas as discussões sublinharam que estes temas resultavam todos das políticas do Governo. Estabeleceu-se um comité que foi crescendo e mudando a sua composição.
Quando acordei de manhã, o acampamento estava afogado em gás lacrimogéneo e toda a gente corria de um lado para o outro. A polícia deitava fogo à tendas. Arrancaram as pequenas árvores que tinham sido plantadas na véspera. As escavadoras voltaram ao trabalho, protegidas pela polícia de choque.
Nós não queríamos vingar-nos da polícia. Alguém estava a ler-lhes um romance com a ajuda dum megafone que se salvou do incêndio. Outro perguntava, cantando: “mas porque é que deitaram fogo à minha guitarra?”.
Quando conseguimos entrar no parque montámos tendas maiores. Ao fim da tarde já se juntavam dezenas de milhares de pessoas na praça. Entre eles, músicos famosos que cancelaram os seus concertos e vieram para o parque.
Pessoas de diferentes orientações juntaram-se… pessoas e trabalhadores em greve vindos de regiões que sofreram com a sede de lucro das empresas e do governo… adeptos de futebol, partidos da esquerda radical, associações estudantis, feministas, anarquistas, vegans…
Na noite seguinte estávamos melhor preparados. O lixo era recolhido periodicamente. Os voluntários das equipes de segurança patrulhavam a zona. As mulheres podiam andar confortavelmente e em segurança na área do acampamento. As novas leis do governo sobre o álcool tornaram o seu consumo em ação política. As pessoas cantavam slogans e canções enquanto bebiam.
Até de manhã foram distribuídas centenas de óculos de proteção, máscaras de gás, limão, vinagre e preparações caseiras a partir de comprimidos para as dores de estômago para diminuir os efeitos do gás lacrimogéneo. Havia milhares de pessoas no parque quando a polícia atacou às 5 da manhã. Não houve nenhum aviso e de repente já não conseguíamos ver nada. Evacuámos o parque, seguindo o plano que traçáramos antes.
Os confrontos nas ruas continuaram até ao amanhecer. Consegui esgueirar-me para dentro do parque sem problemas, aproveitando o cansaço da polícia. Olhei para a ponte do Bósforo bebendo o meu chá à sobra de uma árvore. Espero que não tenha sido a última vez que contemplo esta vista.
Os manifestantes tentaram entrar no parque, juntando-se várias vezes nas ruas laterais. A polícia impedia-os recorrendo ao uso da força excessiva. Toda a cidade se transformou numa arena de comício. Alguns manifestantes atravessaram a ponte que liga a Ásia à Europa.
Então, quem são estas pessoas que se juntaram na praça? Estaria a mentir se dissesse que todas partilham as mesmas opiniões e os mesmos objetivos. A única coisa que os juntava era a fúria contra o governo… A violência policial contra a juventude que protegia aquelas árvores despoletou a reação das pessoas e toda a gente que é contra o governo tinha saído às ruas.
Milhares de mulheres e homens que nunca tinham participado numa manifestação política enfrentaram a polícia noite dentro. Seguiram para uma nova manifestação sem sequer tomar o pequeno-almoço. Com as suas máscaras caseiras, revoltaram-se contra a polícia, às vezes cantando, outras vezes com gritos de indignação. Havia manifestantes de famílias abastadas, mas também desempregados… De associações muçulmanas aos partidos socialistas, muitos grupos diferentes caminharam ombro a ombro…
As pessoas que procuravam refúgio nas barricadas twitavam, carregavam fotos para o Instagram com um capacete da polícia. Os mais novos desenhavam graffitis desagradáveis para o primeiro-ministro. Outros bebiam cerveja quando podiam descansar… Encontrei um casal que planeava o seu casamento numa cabine telefónica onde me protegi da chuva de balas de borracha.
Nos últimos cinco dias, um número crescente de manifestantes divertem-se e manifestam-se ao mesmo tempo, sem dormir nem descansar. O slogan mais gritado é “Demissão do Governo!”. A violência da polícia não os está a afastar. O medo já foi derrotado. Aprendemos a levantar a nossa voz quando estamos zangados. Algumas pessoas lutam, outras dançam. Há os menos sóbrios que lançam ataques ali à volta, enquanto outros recolhem o lixo e tratam os animais de rua.
Não sei o que irá acontecer amanhã” Mas hoje é um novo dia e somos todos pessoas novas. O que é que estou a fazer agora? Enquanto dezenas de milhares de manifestantes estão a exigir a demissão do primeiro-ministro por muitas razões diferentes, eu estou a escrever-te em cima do capô dum carro da polícia derrubado.
Publicado no blogue De omnibus dubitandum. Traduzido por Luís Branco.
No vídeo abaixo, um apelo para que, diante do silêncio da mídia turca, as pessoas divulguem as informações e imagens pelas redes sociais: