O câncer da América Latina
Quando o então presidente da Venezuela Hugo Chávez qualificou como “muito estranho” a sucessão de diagnósticos de câncer de vários líderes da América Latina e levantou a possibilidade de alguém ter desenvolvido “uma tecnologia para induzir” esta doença, a imprensa deu muito espaço a suas palavras. Chávez citou em cadeia nacional de rádio, televisão e internet os casos de Lula, Dilma, Fernando Lugo e até o falso positivo de Cristina Kirchner, e recomendou cuidados extras a Evo Morales, presidente da Bolívia, e a Rafael Correa, do Equador.
“Seria estranho que tivessem desenvolvido uma tecnologia para induzir o câncer e ninguém saiba até agora e se descubra isso apenas dentro de 50 anos?”, perguntou Chávez, na ocasião. “É muito difícil explicar o que está acontecendo”, acrescentou. Rindo, ou com voz séria, a mídia amplificou a mensagem. Agora, os melhores especialistas do assunto alertam na revista britânica The Lancet Oncology que “a América Latina enfrentará graves problemas devido ao câncer”, e as matérias sobre o assunto não aparecem.
No Brasil, o relatório publicado em abril (The Lancet Oncology 2013; 14: 391-436) passou quase despercebido, mesmo tendo sido divulgado na conferência do Grupo Latino-Americano de Cooperação em Oncologia (Lacog), em São Paulo. O resto da mídia latino-americana também deu pouca atenção, apesar de – quebrando as próprias regras – a revista britânica ter publicado o informe também em espanhol, com a possibilidade para qualquer um acessar o texto de forma gratuita (ver aqui). Não apenas isso. Os poucos que escreveram sobre o assunto nem parecem ter lido o informe, apenas o press release,segundo a crítica que faz Pere Estupinyà no Tracker, site onde se comenta matérias do jornalismo científico do programa Knight Science Journalism do MIT (ver “Excesivo corta-pega en cobertura del extensísimo estudio publicado en Lancet sobre câncer en América Latina“).
Mas, afinal de contas, será que o paper merecia destaque da mídia? Não apenas tenho certeza de que sim, como recomendo lê-lo porque dele podem surgir muitas pautas.
De algum modo, os habitantes do Sul somos privilegiados. Há muito menos risco de adoecermos de câncer na América Latina (163 casos por 100.000 habitantes) que na Europa (264 por 100.000) ou nos Estados Unidos (300 casos por 100.000 habitantes). Porém, não há nada para comemorar. Se este for o paraíso, infelizmente é preciso dizer que o éden já está perdido.
Como no mundo todo, a incidência do câncer está aumentando também na América Latina. “Na América Latina e no Caribe, estima-se que para o ano 2030 se diagnosticarão 1,7 milhões de casos de câncer e haverá mais de um milhão de mortes por ano”. Sem uma planificação proativa, haverá sérias consequências humanas e econômicas – alertam os pesquisadores no mencionado estudo.
O que deveria preocupar as autoridades públicas (e os jornalistas) não é um suposto plano diabólico de apagar do mundo um grupo de governantes com afinidade pela esquerda, mas sim que a América Latina não está preparada para fazer frente ao alarmante aumento dos casos de câncer que se preveem, e as altas taxas de mortalidade que há na região. Porque se é verdade que adoecemos menos, também é certo que morremos mais. A proporção de pessoas que morrem de câncer na América Latina é quase o dobro que a proporção nos Estados Unidos. Os números são claros: nos EUA morrem 13 de cada 37 doentes, na Europa 13 de cada 30, na América Latina 13 de cada 22 diagnosticados.
Pautas
A comissão que redigiu o informe ligou os holofotes, agora é a vez de os jornalistas cumprirem as pautas. A mídia pode – e deve – se comprometer nessa luta.
Vamos por partes. O crescimento no número de doentes está relacionado ao envelhecimento da população, e nada podemos fazer contra o tempo. Mas isso também se deve ao incremento de estilos de vida sedentários, hábitos alimentares não saudáveis, a exposição à radiação solar, o fumo, o consumo de álcool e aos nossos contaminantes ambientais cancerígenos de cada dia. Neste Observatório já afirmei o que acredito ser nossa obrigação no quesito educação para a saúde (ver “A tosse de Lula pode salvar muitas vidas“).
O consumo de tabaco é o fator de risco de câncer mais importante. Todo mundo sabe disso, já não dá para fazer matérias inovadoras. Falar que o fumo contribui com o 26% de todas as mortes por câncer (pulmão, boca, laringe, faringe, esôfago, fígado, pâncreas, estômago, rins, bexiga, colo uterino, intestino e possivelmente também de mama) é apenas acrescentar um dado. Por outra parte, todo mundo tem a sensação de que as condições estão melhorando: a placa “Proibido fumar” é onipresente. É um fato (e uma pesquisa nacional sobre o hábito de fumar o verifica) que os fumantes são cada vez em menor número e os que ainda consomem tabaco declaram uma redução (modesta) no número médio de cigarros fumados nos últimos anos. Foi por isso que fiquei surpreendida com um número divulgado pelo relatório da Lancet, que sem dúvida vale uma reportagem.
“A popularidade do consumo de tabaco entre os adolescentes é particularmente preocupante. Em muitos países de América Latina, as taxas de tabagismo entre os jovens de 13 a 15 anos são agora maiores do que entre os adultos. O uso corrente [do tabaco] entre as mulheres adolescentes superou o dos homens na Argentina, Brasil, Chile, México e Uruguai.”
No Brasil, a frequência de consumo de tabaco em adultos (17%) é a metade da dos jovens (30%), sendo destes a maioria mulheres (30,8% versus 28,7% dos garotos). Nesses números dá para enxergar o futuro.
Tarde demais
Quando a prevenção é insuficiente, mais cedo ou mais tarde chega a hora do diagnóstico e do tratamento. O avanço da medicina está conseguindo que o câncer seja tratado, porém por problemas no acesso aos serviços de saúde isso acontece por aqui em etapas muito avançadas. Sem chegar ao extremo da Angelina Jolie, que operou seu câncer antes de tê-lo, é um fato que nos EUA 60% dos casos de câncer de mama são diagnosticados e tratados já nas primeiras etapas.
E no Brasil? Apenas o 20% chegam ao atendimento na fase inicial. Quando o diagnostico atrasa, o resultado ruim se torna mais provável. Isso é do conhecimento popular, não dá matéria. Mas afirmar que o atraso de mais de 12 semanas no diagnóstico de câncer de mama (ou de cinco semanas no caso do câncer de colo uterino) pode afetar a sobrevivência é um dado concreto do informe da Lancet que, se divulgado, teria uma utilidade pública importante.
O paper é interessantíssimo porque analisa os distintos países, assinala os potenciais de melhora dos sistemas de saúde e faz alertas sem discurso fatalista nem ideologias, mas com informações. O relatório está cheio de números, daqueles que ficam bonitos nos títulos e infográficos.
O gasto médico médio total por paciente é de 8,04 dólares no Brasil, comparado com 183 dólares no Reino Unido, 244 dólares no Japão e 460 dólares nos Estados Unidos. (Ao menos, os dados nos comparam favoravelmente diante da China e da Índia.) A conclusão é que o investimento em saúde é baixo, a distribuição desigual, e não parece haver noticia nova por ali. “Matérias assim ninguém lê mais”,pode dizer o editor ao jornalista que pretenda fazer uma reportagem nessa linha. Mas o diferencial aqui é que o informe vem com propostas feitas com um olho na medicina e outro na economia:
“Duas mudanças fundamentais mudariam o futuro. Em primeiro lugar, é necessário aumentar as despesas totais em assistência sanitária e redistribuir para dar cobertura às populações marginalizadas. Quando a incidência de câncer avançado e a mortalidade se reduzirem, os investimentos poderiam voltar de novo à prevenção e ao tratamento das etapas iniciais da doença para aliviar ainda mais a carga da enfermidade.”
O brasileiro
O Brasil e usado como case para comparar a saúde pública e a privada. Vejamos alguns exemplos.
>> No Brasil, a quimioterapia de primeira geração é praxe para a maioria das pacientes de câncer de mama. Isto só é verdade nas instituições públicas. Nas privadas, aquele tratamento já é administrado a menos de um terço das pacientes.
>> Em 2009, o Ministério de Saúde brasileiro informou que a adição de terapias com anticorpos à lista de medicamentos cobertos pelo sistema público aumentaria as despesas para o tratamento do linfoma em 900%, o que o tornava impossível a providência. Isso só foi incorporado em 2011, e com uso mais restringido do que na rede privada.
>> Há uma terapia (trastuzumab) recomendada para alguns tipos de câncer de mama que chega este ano no Brasil, oito anos depois de sua aprovação nos EUA.
Há outros exemplos. O relatório menciona uma pesquisa realizada no Brasil que encontrou correlações entre as vendas nacionais de pesticidas e o câncer de próstata, dos tecidos brandos, lábio, esôfago, pâncreas e a mortandade por leucemia em homens.
Brasileiro sofre demais
Este poderia ser um título respaldado pelos especialistas. Usa-se pouco a morfina e outros opiáceos necessários para controlar a dor severa em câncer avançado. Os dados: nos EUA se usa 693,4 mg/pessoa; no Brasil, o valor está perto de 12 mg/pessoa. Aliás, os autores do estudo destacam que no país há obstáculos sérios para una prestação ótima dos cuidados paliativos. “O novo código de ética médica no Brasil menciona os cuidados paliativos, mas não se ocupa da educação em cuidados paliativos: não é um ensino obrigatório nas faculdades e poucas o oferecem”, resaltam.
O informe sobre o câncer na América Latina é abrangente, pelo que se vê nos exemplos escolhidos. Vai do acesso aos serviços básicos à medicina personalizada, da contaminação nuclear à saúde dos indígenas, dos grupos de apoio das crianças com câncer aos interesses dos laboratórios farmacêuticos. Os autores batem palmas ao Brasil várias vezes. Mas vou deixar essa informação para que o jornalista que esteja suficientemente interessado em fazer clique no link do estudo a procure por si próprio.
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Roxana Tabakman é bióloga e jornalista, autora de A Saúde na mídia. Medicina para jornalistas- jornalismo para médicos (lançamento previsto da edição em português previsto para setembro de 2013, pela Editora Summus)